terça-feira, 8 de outubro de 2013

Tinder: apenas um jogo, num álbum de figurinhas

ROGÉRIO SIMÕES
08/10/2013 07h02

A busca pelo amor ou uma companhia para uma noite fria deste começo de Primavera voltou a ser assunto na mídia e nas mesas de bar. A edição da semana passada de ÉPOCA trouxe uma reportagem de Júlia Korte sobre o aplicativo para celulares Tinder, uma nova ferramenta para quem deseja conhecer alguém. Popularizado meses atrás na Europa e nos Estados Unidos, é um brinquedinho que parece funcionar como um atalho para sexo sem compromisso ou uma vida feliz a dois. Na prática, é muito mais, ou menos, que isso. O Tinder é essencialmente um jogo, divertido e popular, porque se adéqua perfeitamente a esta nossa vida moderna e digital, cada vez mais próxima do século XXII do que do XX. O Tinder reduz a vida social a um álbum de figurinhas, descartadas no hiperespaço ao mero deslize de um dedo – com pouco espaço para o mundo real.
Com esse novo aplicativo, cada possível pretendente recebe a atenção típica que a vida em uma cidade como São Paulo permite: alguns segundos. Na última década, ficaram famosos entre europeus e americanos os speed datings, eventos em que mulheres ficavam sentadas em uma mesa, enquanto homens se revezavam à sua frente. Cada um ganhava três, quatro ou cinco minutos de sua atenção, tempo em que deveriam dizer e fazer tudo o que pudesse despertar o interesse da moça. O rapaz, claro, também construía a sua opinião. Ao final, se houvesse interesse mútuo, aqueles “matches”, podiam se encontrar posteriormente. O Tinder radicaliza, ao reduzir esses poucos minutos a um olhar. Tudo se resume a uma rápida observação de uma ou poucas fotos, seguida de um movimento com o dedo que aprova ou descarta uma pessoa. Que até então ainda nem é uma pessoa, mas sim uma fantasia, uma imagem – ou mesmo uma miragem. Se você não gostar de uma foto, nos poucos segundos em que você se deparar com ela, você a descartará. Nunca saberá se aquela foto que lhe chamou a atenção representava mesmo uma pessoa. Poderia ser apenas um truque, um perfil inexistente do Facebook (fonte de todos os perfis do Tinder), uma fase de um jogo eletrônico alimentada por cenas criadas por computador. Como um típico videogame, o Tinder oferece essencialmente imagens, não pessoas.
Qualquer um que já esteve em um bar, festa ou outro evento social sabe que a primeira impressão nem sempre fica. A imagem pode ser enganosa. A garota que por segundos parece linda transforma-se, numa mera virada de rosto, em algo esteticamente desagradável aos olhos do observador. Isso mesmo antes das primeiras cervejas. Julgar alguém pela primeira impressão visual geralmente resulta em equívocos, mesmo que o único fator de julgamento seja a estética. Como o Tinder resolve isso? Não resolve. Na verdade, elimina o problema. Um segundo depois de descartar uma garota ou um rapaz quase na velocidade da luz, o usuário pode se arrepender e desejar uma segunda observação. O Tinder não deixa. Essa imagem, que ainda não é pessoa nem tem identidade, perdeu-se para sempre. O que fica é apenas a esperteza do aplicativo, que brinca com a capacidade do usuário de julgar uma foto apenas pelo olhar, lançado sobre a minúscula tela de um telefone celular. Fica fácil imaginar a tonelada de equívocos cometidos por alguém que selecione candidatos no Tinder na madrugada, no meio de um bar, com várias doses de álcool na cabeça.
Uma das características do Tinder, apontada pelos especialistas do setor como uma das razões do seu sucesso, é permitir que o usuário faça o que quiser com a imagem diante de si, sem que o seu dono saiba. A não ser que haja um “match”, você pode gostar ou descartar uma foto sem informar seu dono. É o fim do constrangimento associado tanto ao interesse como ao desprezo. Como um jovem que coleciona fotos de modelos nuas, que pode se excitar ou ridicularizar as formas da moça sem que ela esteja ouvindo, o usuário do Tinder está desobrigado de dar explicações, assumir as consequências de seus atos ou imaginar o que o outro possa estar pensando. Estamos nos tempos da individualização extrema, em que todos querem fazer o que quiser sem dar satisfação a ninguém – e o Tinder colabora com a realização desse prazer. Se seu objetivo fosse mesmo facilitar o encontro entre pessoas, o aplicativo aproximaria o admirado de seu admirador. Afinal, nada melhor para quebrar o gelo de um coração reticente e cético do que saber que ele acelerou a batida de outro. Mas não: como um jogo acima de tudo, o Tinder não se preocupa em reparar uma avaliação apressada e equivocada. Alguém interessante foi descartado de forma precipitada? Siga jogando, centenas de outros virão. Na tela do Tinder, pessoas são transformadas em figurinhas de um álbum, expostas para receber afagos ou tomates de um usuário em busca de divertimento.
Em algum momento, a brincadeira pode ter alguma consequência, no caso de interesse mútuo. Uma moça gostou de um rapaz – ou vice-versa ou ambos podem ser do mesmo sexo, não importa –, que também gostou dela. Os dois são então avisados de que houve um “match”. Pronto, aparece uma janela de comunicação, e eles podem dialogar. O jogo ganha um pé na realidade, como se dentro de um ou outro pacote de figurinhas viesse um “vale-conversa”, um bônus que lhe dá a chance de interagir com uma das pessoas por trás do álbum. A realidade recebe, enfim, uma chance no mundo da fantasia digital. É o momento em que se acorda de um sonho inconsequente e divertido – para o qual a maioria voltará minutos depois.
As pessoas acreditam ter hoje tão pouco tempo para interagir com outros seres humanos que um aplicativo colocou centenas de milhares de homens e mulheres enlatados em fotos 3x4, para que sejam escolhidas ou descartadas a cada três segundos. É a Revolução Industrial da relação amorosa. Como prêmio por se engajar em um formato tão intenso e massificado de paquera, todos ganham uma conversa aqui e outra ali, por meio de teclas do seu celular, sem ter a mínima ideia de como se move o sorriso de quem está do outro lado. Enquanto isso, centenas de pessoas de carne e osso trabalham, bebem, comem e dançam em torno dos usuários do Tinder. A elas, fica cada vez mais rara a chance de uma troca de olhares sequer. Afinal, não passaram por um processo de seleção digital em série. São apenas pessoas – e delas, cada vez mais, muitos parecem querer distância.

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