sábado, 6 de agosto de 2016

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

A vida começa no fim da sua zona de conforto

Ruth Manus
15 Junho 2016 | 10h01

Conforto. Conforto é uma palavra deliciosa. Conforto nos remete diretamente à ideia de um edredom branco, bem fofinho e cheiroso no qual nos afundamos nos finais de semana. Mas experimente colocar um “zona de” na frente do conforto para vê-lo estragar automaticamente.
Eu me lembro bem. Faltava meia hora para minha banca de mestrado, eu estava tão apavorada… Com enjoo e tudo mais, surtando. Lembro de me perguntar por que é que eu me metia nessas coisas, ao invés de ficar “de boa”. Segundos depois me deparei com a seguinte frase solta pelas redes sociais “a vida começa no fim da sua zona de conforto”. Parei. Li outra vez. Aquilo fazia algum sentido. Transformei o pânico em frio na barriga. Entre na sala, defendi minha dissertação e deu tudo certo.
É engraçado pensar quantas vezes nós usamos desculpas esfarrapadas para esconder nossa falta de coragem. Não vou me candidatar a esse curso porque não tenho tempo (e não por medo de não ser aprovado), não vou fazer essa viagem porque não quero gastar dinheiro (e não por medo de avisar no trabalho que vai ficar uma semaninha fora), não vou ligar para ele porque ele não é tudo isso (e não por medo de ouvir um não).
A vida é povoada de nãos, de medos, de riscos. E sair da zona de conforto é trabalhoso. Custa coragem, custa tentativa, custa alguns erros, alguns empregos, alguns relacionamentos, algumas certezas. Mas a zona de conforto, frequente e ironicamente, é bastante desagradável. É o trabalho das 8 às 18. O trânsito na ida e na volta. É a mesma comida, a mesma coisa na televisão. O mesmo domingo, as mesmas queixas. A zona de conforto está lá, nos cozinhando em banho maria, matando os nossos dias devagarzinho, acinzentando nossos hábitos.
Não tem jeito: se a gente não fizer mais do que costuma e sabe fazer, a vida vai ficar sempre igual. Se a gente não se meter em umas encrencas, não se colocar em certos desafios, não jogar meia dúzia de coisas pro alto, a vida nunca vai ficar mais vida do que ela é.
Adoro o Kung Fu Panda porque ele é exatamente isso. Ele se sente extremamente inapto para os desafios que a vida lhe impôs- não sabe lutar, não sabe treinar, não se sente à vontade naquele ambiente, preferia ficar comendo, sentado num cantinho- mas sabe que precisa encarar. E sabe que, de um jeito ou de outro, tudo vai dar certo.
Eu me sinto como o Kung Fu Panda em muitas esferas da vida. Um certo sentimento de inadaptação. De não saber se sou capaz. É assim toda quarta-feira com o blog, dá medo. Foi assim quando tive que escrever o livro. Quando entrei no mestrado. Quando advogo em causas grandes. Quando mudei de país. Quando entrei no doutorado. Mas a gente tem que acreditar. Tem que pegar os desafios pelo chifre, rir da zona de conforto e seguir em frente.
E não há sensação melhor do que conseguir. Às vezes com maestria, às vezes com uma certa mediocridade, mas conseguir. E mesmo nas vezes em que a gente não consegue… Tentar também faz muito sentido. Faz sentido sair do raso, do previsível, do seguro (que morre de velho ou morre de chato).
Faz sentido abrir a janela, abrir a porta, colocar a cara no sol. Porque a vida tá lá fora. E ficar sempre aqui dentro é uma escolha. Uma escolha triste, mas possível e até bastante confortável. Esse é o perigo.

http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/a-vida-comeca-no-fim-da-sua-zona-de-conforto/ 

Viver de mala

Ruth Manus
20 Julho 2016 | 11h56

Para alguns, a decisão de viver de mala foi uma escolha. Deliberada, pensada, definida calmamente. Para outros, foi surpresa. Foi no susto, na marra, na raça. Para todos, viver de mala será sempre um misto de liberdade e tormento.

Viver de mala, na ponte aérea, no ônibus intercidades, na mudança semanal de casa, costuma trazer sensações duplas: a de pertencer a vários lugares e ao mesmo tempo não pertencer a nenhum. A de não ter a vida serena, repousada num único lugar e ao mesmo tempo ter uma vida livre, que se coloca numa sobre rodas e se leva para onde quiser.

A vida de mala é desgastante. Uma peça que a gente sempre esquece. Um sapato que nunca cabe naquele canto. Um dorzinha persistente nas costas por causa da alça, do peso, por puxar tanto e sempre aquele necessário trambolho. Sempre tem algo que falta, algo que sobra, algo que a gente insiste em esquecer.

Depois de um certo tempo, a mala já funciona como um braço ou uma perna. Ela já faz parte da gente. Já conhecemos seus defeitos. O zíper que enguiça na curva, a alça que trava na hora de levantar. Você sabe quanto ela deve pesar- apesar de frequentemente desrespeitar as regras que estabeleceu como limite.

A gente não entende muito bem o que sente. Por vezes, pára de se perguntar sobre isso, para evitar chororô ou outros resmungos. Porque isso cansa. Cansa não saber bem a diferença entre lar e residência ou entre domicílio e hospedagem. Cansa ver o xampu vazar outra vez, a camisa amassar outra vez, a etiqueta de identificação sumir outra vez. Às vezes é melhor a gente não se perguntar muita coisa.

Porque até a mala fica cansada do vai e vem. Ela começa a reclamar do tempo e da quilometragem. A roda já não roda do jeito que deveria rodar. As costuras rebelam-se contra os anos e contra os livros carregados ao longo deles. O tecido denuncia os esbarrões em quinas, a falta de cuidado fruto dos atrasos ou da falta de paciência.

A palavra “mala” é utilizada não apenas para designar o objeto que transporta nossa sobrevivência, mas também, com alguma injustiça, para designar uma pessoa chata, que incomoda, pesa, dificulta tanto quanto uma mala, por vezes, sem alça.

Sim, é uma designação injusta. Porque no fim, é você e ela. São vocês dois que se atrasam juntos, correm juntos, chegam juntos. É ela que te alegra ao aparecer nas esteiras, ao não ter sumido dos porões. Ela que te permite carregar essa vida que te escolheu de alguma forma.

Viver de mala é o avesso da vida confortável, em todos os sentidos. É não ter o conforto do mesmo travesseiro sempre, da presença dos amores palpáveis diariamente, da gaveta certa, te esperando cheia de tudo no fim do dia. Mas é também não ter o conforto na sua acepção negativa. O conforto do excesso de segurança, de não viver todas as hipóteses, de não embarcar, de não fechar aquele bom e velho zíper que tem som de asas.

Viver de mala é aprender que as raízes vivem dentro da gente. Que uma peça de roupa esquecida não é nada frente às estradas da vida. Que “lar” é onde houver amor. Amor de parceiro, de filho, de pai, de mãe, de irmão, de vocação, de trabalho. É encarar o cansaço, dobrar as roupas, encaixar os livros, apertar as tampas, fechar a mala e dizer para ela “vamos lá, vamos que a vida é curta demais para ficarmos presos a armários embutidos.”

http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/viver-de-mala/ 

Tem tanto Biel por aí

Ruth Manus
03 Agosto 2016 | 12h43

O cantor Biel, que vem ganhando mais fama por suas frases infelizes do que por sua música, foi pauta mais uma vez esta semana. Não satisfeito com seu tão machista way of life, Biel recentemente assediou uma repórter durante uma entrevista, chamando-a de “gostosinho” e dizendo que “quebraria-a ao meio”.
Ao se pronunciar acerca da acusação de assédio, acusou a repórter de prejudicar sua carreira- colocando-se em inconcebível posição de vítima- e disse que não pretende mudar seu jeito nem suas “brincadeiras”. Internautas, então, decidiram resgatar no twitter do cantor diversos posts dos últimos anos, de cunho não apenas machista, mas também racista, homofóbico e transfóbico.
Mas o que mais me assusta é que muitos dos posts contêm expressões como “nada contra” e “na minha opinião”. Biel parece até pretender algum cuidado antes de dizer certas aberrações. E o pior: não podemos negar que convivemos com uma boa meia dúzia de pessoas que fazem esta mesma inútil introdução antes de vomitar seus preconceitos de alma mais leve.
Pergunto-me se há, de fato, algumas pessoas que não percebem a gravidade do que estão dizendo. Sinceramente, custa-me acreditar nisso. É muito fácil travestir discriminação de piada. E é mais fácil rir delas do que comprar a briga com o falso comediante.
Biel fala de mulheres com quem fala de utensílios. Menciona os gays como se fizesse um grande favor de tolerá-los. Diz que tem nojo só de imaginar transexuais.  Tudo com “muito bom humor”.
Pois é. Mas então vamos lá. Quantos exemplares de Biel você conhece? No trabalho, na faculdade, na família? Quanta gente que enfia risos no meio de tanto ódio para parecer que não é escroto, mas apenas um ácido bem humorado? Quanta gente que acha que a Adele não é boa o bastante por não ser magra? Que gay “até pode ser gay, desde que não dê muita bandeira”? Que “não tem preconceito” mas nunca namoraria um negro? Que mulher com decote “está pedindo”?
Eu não sei se o comportamento inexplicável do Biel é fruto de falta de educação, de falta de noção, de falta de limites, de falta de punição ou se tem até algum marketing insano no meio disso tudo. Não sei.
Mas sei que o Biel é só a ponta do iceberg. Porque é ele quem diz e são milhares os que aplaudem. E no meio dos que não aplaudem, tem muitos que se julgam bem diferentes dele, mas que estão sempre com seus comentários na ponta da língua. Ainda há lugar para os que não falam, mas que pensam do mesmo jeito.
Que bom que todo esse nojo veio à tona. Que lindo ver tanta revolta. Mas que delícia seria se o Biel estivesse sozinho nessa. Se o Biel fosse a exceção. A aberração. Que delícia seria não encontrar meia dúzia de Biel todo dia, no escritório, no bar, no metrô, no elevador, no jantar da família. Que fácil seria se o Biel fosse só um.
Boicotar esse Biel é fácil. Difícil é encarar 3, 5, 10 exemplares de Biel por dia. Difícil, sim. Mas pode vir, Biel nosso de cada dia, nós estaremos aqui, firmes, para condenar sua “piada” machista, para denunciar seu comentário racista ou homofóbico, para mostrar todo dia que por nós, queridinhos, vocês não passarão.
http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/tem-tanto-biel-por-ai/ 

O silêncio que nos devora

IVAN MARTINS
20/07/2016 - 08h55 - Atualizado 20/07/2016 14h21

Em tempos de amor nas redes sociais, o silêncio nos devora. A gente manda uma mensagem, a resposta não vem, entramos em colapso. Se, na tela do aplicativo, surgem dois sinais azuis – indicando que a mensagem foi lida – e não retorna uma palavra de carinho, enlouquecemos. Por quê?
Acho que somos mentalmente frágeis, e as redes sociais não estão ajudando. Nosso tempo interior foi acelerado pelas mensagens digitais. Viramos reféns da instantaneidade. Se a resposta pode vir imediatamente, ela tem de vir. Senão o outro não nos ama. Senão fizemos algo errado. Senão a nossa estabilidade já era.
Outro dia, mandei uma mensagem a uma amiga por celular, contando algo que lhe dizia respeito. Ela respondeu com uma brincadeira, eu levei a sério, ela saiu do ar. Durante sua ausência, pirei. Achei que tinha feito algo errado. Ensaiei explicações. Me preparei para uma briga. Escrevi que o silêncio dela – sempre o silêncio – era intolerável. Depois de uma hora, ao sair do médico e ler minhas mensagens, a amiga ligou, perguntando se eu estava louco. Estava, né?  Profunda e temporariamente maluco. Não há outra explicação.
Ontem, enquanto preparava este texto, fiquei orgulhoso por esperar 24 horas antes de cobrar a resposta a um e-mail. Isso mesmo. Só depois de 24 horas fritando no óleo do silêncio eu peguei o celular e mandei uma mensagem, perguntando se a pessoa havia visto meu e-mail. A resposta veio segundos depois: “Não vi, desculpe, não abri o e-mail, estou fora do escritório desde ontem. O que aconteceu?”. Seguiu-se uma onda de alívio tão intensa que eu parecia mergulhado num tanque de endorfina. Me senti como uma criança chorando no ombro da mãe. Ridículo, patético, novo normal.
É claro que a amiga não é qualquer amiga e que a pessoa que não leu o e-mail não era qualquer pessoa. Nos dois casos havia expectativas emocionais. As duas esperas tinham carga afetiva elevada. Aí reside o problema: nossos sentimentos, naturalmente voláteis, trafegam agora numa rodovia de oito pistas sem limite de velocidade. As redes sociais. Os acidentes vão se suceder de forma espetacular. Avançamos a 200 quilômetros de ansiedade por hora e a natureza – a nossa natureza – não tem freios.
Recomendo que todos leiam o texto do comediante americano Aziz Ansari publicado no Brasil pela revista Piauí. Ele vai fundo na ansiedade introduzida nas conversas românticas pelas redes sociais. A essência do problema é o tempo. Há estudos mostrando que a avaliação que fazemos de outra pessoa depende do tempo que ela demora a nos responder. Somos alvos fáceis de manipulação. E podemos aprender a manipular. Talvez devêssemos. Leiam e tirem suas próprias conclusões.
Da minha parte, acho que precisamos reaprender o silêncio. As pessoas não nos devem respostas imediatas. Elas respondem quando quiserem, se quiserem, e a gente que pare com aflição e o mi-mi-mi. Quem mandou a mensagem e pôs seu desejo na reta que aguente as consequências. As chances de frustração são tão elevadas como as de sucesso.
Esse sofrimento digital coletivo me parece mais um exemplo da dificuldade moderna em estar consigo mesmo. Nossos pais e avós passavam muito tempo sozinhos na cabeça deles. Viam TV, ouviam rádio e conversavam. Liam, claro. Mas havia silêncio. Ao caminhar na rua, ao esperar o ônibus, guiando o carro, sentados na sala depois de jantar, na hora de acordar e de dormir, eles pensavam, em silêncio. Nós não.
Estamos o tempo todo falando, digitando. Mandando ou recebendo mensagens. Esperando. Mal suportando o silêncio dos intervalos. Roendo as unhas enquanto a resposta não vem, enquanto a aceitação do outro não chega. Ao chegar, ela nos enche de alegria por dois minutos, contados no cronômetro. Depois, recomeçamos a enviar e a esperar. Um inferno.
O amor, que nunca foi fácil, agora convive com esse vício afetivo e neurológico. Se não bastassem os problemas criados por 50 mil anos de cultura humana – ciúme, medo, culpa, violência –, agora temos de lidar com a ansiedade turbinada das redes. Viramos todos adolescentes temperamentais e inseguros. Fazemos exigências, damos chilique, temos pressa. Os nossos sentimentos à flor da pele se espalharam pela superfície do planeta. É hora de recolhê-los, talvez. Entendê-los e, de alguma forma, controlá-los. É hora de reaprender a ficar em silêncio.

http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2016/07/o-silencio-que-nos-devora.html