sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

La La Land

Reclamamos de Trump. Mas adoramos erguer muros por aqui

Leonardo Sakamoto

Donald Trump deu, nesta quarta (25), ordem para que um muro gigantesco, separando os Estados Unidos e o México, comece a ser erguido. Na verdade, que continue a ser construído – uma vez que parte dele já foi colocado por administrações anteriores. Considerando as barreiras já existentes, o conjunto deverá ter cerca de 3 mil quilômetros no total. Uma sandice monumental que, veja só, poderá ser vista do espaço.
Dou o braço a torcer: apostava que ele não seria capaz de tal idiotice, prometida repetidas vezes na campanha eleitoral a fim de enganar os incautos que culpam os ''de fora'' pelos próprios problemas sociais, econômicos e de segurança interna.
Muros assim são um símbolo da ignorância humana. Mais do que cimento e/ou aço, são instrumentos que auxiliam na construção do discurso do medo – que brada que o outro, o bárbaro, precisa ser mantido à distância para o bem da sociedade. Na verdade, contudo, quem está sendo controlada é a sua população.
E a própria economia. Pois, ao ameaçar impor taxas sobre produtos mexicanos para financiar o muro, ele pode estar dando início ao desmonte do tratado de livre comércio da América do Norte (Nafta). Trump parece burro, mas não é.
O sentimento de proteção entregue por muros altos, cercas eletrificadas, circuitos fechados de TV e seguranças particulares é uma ficção do autoengano. Na prática, voltam-se contra seu criadores. Que acham que deixam os perigos de fora quando, na prática, transformam a própria vida em uma triste prisão.
Por outro lado, o aumento da migração de pessoas por esperança ou desalento – fugindo de guerras e de catástrofes ambientais, econômicas e sociais – para um país com maior oportunidades de emprego e maior qualidade de vida tem mostrado o que certas nações têm de pior.
Os Estados Unidos erguem um muro entre eles e o México para regular o fluxo de faxineiros, operários e serventes. Na Inglaterra, brasileiros levam bala no metrô. Na Espanha, turistas, se piscarem, são tidas como profissionais do sexo (com todo o respeito a elas) querendo invadir o território. Parte da União Europeia transforma o Mediterrâneo em um cemitério ou dá rasteira em famílias que fogem da guerra.
O que poucos contam é que parte das guerras e das catástrofes ambientais, econômicas e sociais que levaram à migração foram causadas por governos e empresas de países que, agora, fecham as portas a essas pessoas.
Em todo o mundo, culpamos os migrantes por roubar empregos, trazer violência, sobrecarregar os serviços públicos porque é mais fácil jogar a responsabilidade em quem não tem voz (apesar de darem braços para gerarem riqueza para o lugar em que vivem) do que criar mecanismos para trazê-los para o lado de dentro do muro que os separa da dignidade – que, inclusive, gera recursos através de impostos.
Grande parte desses migrantes faz o trabalho sujo que poucos querem fazer, limpam latrinas, recolhem o lixo, extraem carvão. Até porque os países que recebem esses trabalhadores ganham com sua situação de subemprego e o não pagamento de todos os direitos. Não se enganem: a porosidade de fronteiras ajuda na regulação do custo de mão de obra.
Também gostamos muito de erguer muros por aqui, concretos ou simbólicos.
Em São Paulo, por exemplo, a xenofobia tem perdido a vergonha e brotado do esgoto. Ataques violentos a bolivianos e haitianos foram registrados. Pedidos de devolução de refugiados sírios são lidos nas redes sociais.
Se centenas de milhares de bolivianos, paraguaios, haitianos, senegaleses, chineses fossem às ruas, bloquear São Paulo, pedindo para que fossem respeitados como os estrangeiros ricos que vêm trabalhar na cidade, seriam duramente reprimidos. Deportados até.
E muitos autointitulados ''cidadãos de bem'', que consideram que o tratamento que os EUA dispendem aos seus migrantes, com deportações e muros, é o ó do borogodó, ficariam incomodados com protestos de nossos migrantes. ''O que eles querem mais? Calem a boca e continuem costurando!” Como sempre foi até agora.

Por fim, logo após a fundação da vila de São Paulo, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la ''segura de todo o embate'', como descreveu o próprio jesuíta. Sim, São Paulo já foi uma cidade fisicamente murada. Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial, como na fracassada invasão de 10 de julho de 1562. Tecnicamente, porém, os invasores eram os brancos portugueses. Mas a história é contada sempre pelo lado do vencedor.

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/01/26/reclamamos-de-trump-mas-adoramos-erguer-muros-por-aqui/ 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Somos todas vadias

POR RUTH MANUS
04/01/2017, 10h22



Mulheres morrem todo dia. Homens também. Homens morrem de câncer, de enfarto, de bala perdida. Mulheres morrem de câncerde enfarto, de bala perdida. Mas homens não morrem por serem homens. E mulheres morrem por serem mulheres. É uma lógica simples.

Mulheres morrem não apenas na chacina de Campinas. Mulheres morrem viajando na América Latina. Mulheres morrem no Oriente Médio. Mulheres morrem na China, na Índia, no Canadá. Morrem aí, do lado da sua casa. Morrem porque são mulheres. Porque nasceram mulheres e porque mulheres se fizeram.

Mulheres morrem por ciúmes. Morrem porque olharam para o lado. Morrem porque tentaram ir embora. Porque tentaram. Mulheres morrem porque atrasaram o jantar. Porque saíram para jantar. Porque quiseram uma vida que fosse além de servir o almoço e servir o jantar.

Mulheres morrem por serem mais bonitas do que deveriam. Por serem menos bonitas do que deveriam. Mulheres morrem porque sempre devem. Sempre estão devendo. Mulheres morrem por fazer muito sexo. Por fazer pouco sexo. Por não querer fazer sexo. Por pensar demais em sexo. Por pensar demais.

Mulheres morrem por causa da saia. Por causa da blusa. Do perfume. Do sapato. Da maquiagem. Do cabelo. Mulheres morrem porque alguém decidiu que poderia interpretar e julgar uma peça de roupa, a cor de um batom e um corte de cabelo. Cortes. Porque julgam que certos cortes não são para mulheres. E que outros são: o da navalha, o do canivete, o da faca.

Mulheres morrem e não são vítimas. Mulheres levam tiros, facadas, chutes na cabeça. E seguem sem ser a vítima. Mulheres provocam. Mulheres dão causa. Mulheres não medem consequências. Mulheres sempre poderiam ter feito melhor. Mulheres tentam avisar. Tentam denunciar. Mas são sempre elas que deveriam ter tomado mais cuidado. Ter ficado dentro de casa. Ou ter trancado a casa. Ou ter fugido de casa.

Poderia dizer que as mulheres que morrem são filhas de alguém. Esposas de alguém. Irmãs de alguém. Mães de alguém. Mas elas são mulheres, apenas mulheres. Que não deveriam precisar ser nada de ninguém para ter importância. Mas precisam. Deixou filhos, deixou um marido inconsolável, deixou um pai debruçado sobre seu caixão. Só assim elas importam. Porque se ela for só uma mulher, ela será só uma mulher.

Homens morrem. Morrem por causa do tráfico, por causa da briga, por causa do ódio. Homens não morrem por questões de gênero. Mulheres morrem. Morrem porque seguem não sendo livres. Livres para opinar, livres para mudar de ideia, livres para ir embora, livres para dizer “nunca mais”.

Mulheres morrem porque homens resolvem que elas são vadias. Vadias por não aguentar mais. Vadias por dizer basta. Vadias por errar como tantos deles erram. Vadias por querer o que todos eles querem. Vadias por acreditar que poderiam ser iguais. Vadias por querer viver.

Mulheres morrem porque, independentemente do que façam, alguém se achará no direito de matá-la por julgá-la vadia. Não é um direito?! No fim, não importa quem somos, o que fazemos ou o quanto merecemos viver, porque aos olhos de alguém somos todas vadias e isso é o que basta para que mulheres morram.

http://emais.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/somos-todas-vadias/ 

Ele

POR RUTH MANUS

21/12/2016, 13h21

Ele é muita coisa.
Ele é muito mais coisa do que eu precisava que ele fosse.
É café. É cerveja. É placebo. É chá de erva doce.
Ele é muitas das horas de cada um dos meus dias.
Com quem eu divido as maiores angústias e os sagrados remédios pra azia.
É um ombro ossudo que poderia ser desconfortável.
Mas é o ombro que eu passei a chamar de lar.
É o braço firme que me puxa quando tento cruzar a rua sem olhar.
É a toalha úmida que eu uso quando a minha ficou pendurada no varal.
É sujeito nos meus textos que eu tento, sem sucesso, usar de modo impessoal.
Ele é tudo o que eu não sou.
É terra, pé no chão, é cada um dos silêncios que minha boca desrespeitou.
Ele é aquele que sempre volta.
Nem sempre às 18. Às vezes demora.
Mas ele é desse tipo bom, que volta, sempre volta.
Ele é desses que trabalha além do expediente.
Que trabalha muito, mas nunca o bastante para tornar-se ausente.
Ele é um domingo à noite, hora sem pressa.
Ele é a moeda que cai do lado certo quando a gente arremessa.
Ele é a cozinha bagunçada.
É tentativa e erro.
Panela com coisa queimando sem qualquer indício de desespero.
Ele é combustível.
Tipo raro.
Que me quer com asas, voando em céu claro.
Ele não vê no sucesso uma ameaça.
Vê meta conjunta, parceria, mapa que a gente abre, rota que a gente traça.
Ele é gente grande, homem imenso.
Ele é ainda assim, muito maior do que eu penso.
Ele é chato. Mil manias restritivas de direitos.
Mas que nunca é definido por qualquer tipo de conceito.
Ele é muito.
Ele é tanto.
E é forte.
E ter muito
e ter tanto,
é ter tudo da sorte.

http://emais.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/ele/ 


A alegria que não depende dos outros

IVAN MARTINS
14/12/2016 - 08h42 - Atualizado 14/12/2016 13h33

A vida é cheia de desapontamentos, sobretudo com pessoas. A gente espera algo delas, quer que pensem como nós, acha que sentem a mesma coisa que sentimos. Mas não. Elas têm seus próprios desejos e planos. São diferentes de nós, e por isso é comum que nos desapontem, mesmo que gostem da gente.
É fácil sentir-se frustrado com quem nos atrai.
Lembrei-me disso nesta semana, ao sair com um amigo que passou 2016 brigando com o mundo. Depois de uma relação em que se sentiu rejeitado, ele virou um poço de ressentimento. Deu um jeito de brigar com todas as mulheres que gostavam dele. Depois, brigou com as mulheres que não se apaixonaram por ele. Não sobrou ninguém para brigar. Agora, jura que vai passar o Natal e o Ano-Novo na casa dos pais, no interior, onde espera não brigar com mais ninguém. Duvido.
A raiva é um sentimento duradouro, e a dele, claramente, ainda não acabou.
Quando a gente se aproxima de alguém e é recusado, um sentimento viscoso nos invade. Por mais que estejamos acostumados, dói. Às vezes é alguém que mal conhecemos, de quem esperávamos quase nada, e, mesmo assim, machuca. Quando é alguém que admiramos e desejamos, pior.
O “não” de hoje ecoa outros “nãos” dentro da gente, maiores e mais importantes, fazendo um barulho desgraçado. Afinal, somos traumatizados com rejeição, sensíveis à frustração. Nossa resposta é sempre raiva, escancarada ou secreta.
Como desejar é biologicamente inevitável, e se frustrar com os desejos também, a vida parece necessariamente cheia de fúria. Mas não.
Há dentro de nós uma alegria que não depende dos outros.
Ela aparece, por exemplo, depois de uma crise, depois de um susto, depois de um drama, quando a situação volta ao normal e a gente parece que recomeçou a respirar. Nessas ocasiões é bom ficar sozinho. A gente sente que está vivo, nem ansioso e nem amargurado. Vivo, somente. Fica claro, então, que a vida tem uma dimensão solitária, tão boa e tão intensa quanto as outras – a gregária, cercada de amigos e família, e a íntima, quando estamos a sós com alguém – e, assim como elas, é perfeitamente acessível.
Se a gente consegue entrar nesse estado de autonomia e conforto, a urgência das relações externas diminui, e com ela a frustração. As conexões se tornam naturais. Se alguém quiser gostar da gente, gostará. Se quiser ser amigo, será. Sem desespero. Sem chantagens. Não há motivo para brigar com o mundo.
Isso não significa que o “não” daquela criatura de olhos escuros não vá doer. Sempre dói. Mas lidaremos com ele de maneira mais elegante, com menos frustração e menos raiva – como alguém que já rejeitou e foi rejeitado, e sabe que essas coisas acontecem.
Se me perguntam como se atinge esse estado de graça, a resposta é simples: não faço ideia. Sei que ele existe, porque já experimentei. E sei que é possível voltar a ele, por já ter voltado. Mas permanecer ali, na solidão contente, não é fácil. Exige maturidade, tem algo a ver com a idade, pode estar ligado à personalidade. Há gente naturalmente feliz e mais independente do que outras.
O que eu sei – com toda certeza – é que não se pode viver de frustração e ressentimento, com raiva.
Em algum momento da nossa história, precisamos fazer as pazes com o mundo e com a gente mesmo, ainda que provisoriamente. Não dá para não passar a vida desejando quem não nos quer e sofrendo com isso. Há que achar paz dentro da gente, para que os outros possam encontrá-la em nossa companhia.

http://epoca.globo.com/sociedade/ivan-martins/noticia/2016/12/alegria-que-nao-depende-dos-outros.html 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sobre voltar

No fundo, estar "aqui" ou "lá", nem é o grande problema.

Tudo é questão de costume...

"Aqui" você acostuma com a presença.

Acostuma em ver Netflix a noite com a Ana
Em ter a cama arrumada
A sair com os amigos e tomar uma cerveja na 4a feira a noite.

Acostuma a comer costelinha com mandioca no almoço,
Que foi preparada especialmente porque você gosta disso.
A ver quem você gosta sempre. Tipo todo dia, se quiser.

"Aqui" você se acostuma com a proximidade.
Com a facilidade.
Com a agilidade.
Com ser "mimado".

Mas "lá", lá você também se acostuma.

Acostuma com a correria.
A ser um ótimo profissional.
A ajudar a desenvolver o seu time e fazer algo que você acredita e gosta.

Acostuma a achar as coisas caras,
Mas a entender que o seu salário no fim do mês é bem mais do que suficiente para pagar o que você quiser.

Quando vê, já está acostumado até com a distância
Com o avião no fim de quase toda sexta-feira.
Com o Whatsapp que tá sempre apitando
E os minutos ilimitados da TIM resolvendo vários problemas - nem que seja o da distância.

.

Mas o foda, o "foda" mesmo é voltar
E tentar dar algum sentido ao "aqui" e ao "lá"
Ao mesmo tempo

E conectar mundos diferentes
Mundos distantes
Mundos deliciosos

A entender que aquilo e quem você ama está de um lado
E que a mega carreira profissional está do outro.

Aí nessa hora, é difícil entender.
Muito.

Até que passe uns dias.
E você entra no ritmo.
E você se acostuma com tudo.

E quando vê, já é fim de semana e você está voltando.

E quando vê, jé acabou o fimde semana e você também está voltando.

Mas até lá, o meio do caminho, o "voltar", esse sim é o difícil e dolorido.

É. Nessa hora você sabe que, realmente, o ano começou!