quinta-feira, 10 de outubro de 2013

O bilhete em braile

IVAN MARTINS
09/10/2013 08h26

As duas caminhavam à minha frente, conversando. Quando eu me preparava para ultrapassá-las, a mais alta se inclinou na direção da amiga e disse a frase devagar, com raiva: “Juro, no dia em que eu for embora, vou deixar para ele um bilhete em braile. O cara é cego!”
Se eu fosse metade do jornalista que eu gostaria de ser, teria parado naquele instante, girado 180 graus, e perguntado à moça, sem hesitação, quem era o tal sujeito e o que ele fizera para merecer uma jura tão triste, e tão bonita.
Mas não. Eu apenas atrasei o passo e prossegui, lentamente, com olhos e ouvidos voltados para trás, na esperança de ouvir o resto da história. Não adiantou. A moça alta se calou com ar resignado e a amiga dela, que não tinha olhos de poeta, pareceu aliviada com o silêncio. Amores tristes, nós sabemos, podem ser infinitamente chatos.
A frase da moça, porém, ficou comigo. Mesmo sem um enredo que lhe desse substância, aquela imagem – o bilhete em braile - teve a força de despertar em mim a memória de uma dezena de situações em que eu poderia ter dito o mesmo.
Todos que já foram deixados, ignorados, enganados ou simplesmente esquecidos sabem como pode ser doloroso enxergar quando o outro se recusa a abrir os olhos.
(A pessoa que você mais quer no mundo está ali, trocando você por uma roubada, ou agindo da maneira mais escrota, e não há o que dizer. Ela não percebe. Está cega. Age como se você não existisse. Mudou inteiramente de lealdades. Não é mais a pessoa que costumava ser. Tornou-se distante e fria. Você sabe que ela está fazendo uma bobagem, você a conhece. Sabe, ou imagina saber, que dentro de algum tempo ela se dará conta, enxergará, mas então será tarde. Você tem seu orgulho, afinal. A vida é breve, a fila anda, corações lastimosos encontram amparo e futuro. Então, a pessoa que você mais quis no mundo estará lá, pedindo, e você não terá nada a dizer. Sinto muito, talvez. Talvez nem isso.) 
Não há nada que cegue tanto quando o cotidiano. 
Ver alguém um milhão de vezes é como deixar de ver. As retinas preguiçosas recusam novidades. Aos olhos de hoje, aquela pessoa é a mesma de ontem, de uma semana atrás, de um ano. Estranhamente, não é mais aquela criatura fascinante dos primeiros dias. A beleza já não impressiona, a inteligência não surpreende, o temperamento não comove. Aquilo que todos enxergam o cego de convívio nem percebe. Está tudo lá, mas ele não vê, miseravelmente. Talvez seja preciso um pé na bunda. Ou talvez baste um bilhete em braile.
Somos assim, eu acho. Não há culpa. De quando em quando deixamos de ver o outro, embora ele esteja lá, ou talvez por isso o mesmo. É necessário redescobri-lo. Às vezes o colírio de uma briga faz o milagre. Outras vezes é preciso vestir os óculos do abandono para enxergar.
Nada disso é certo, porém.
Alguns amores perderão contorno com o tempo, irremediavelmente. Com outros, teremos logo cedo a sensação aborrecida de ter visto tudo. Poucos nos manterão de olhos arregalados e queixo caído. Um número ainda menor entrará no nosso universo e fará parte dele - sem fogos de artifício e sem holofotes girando no céu da madrugada. Apenas estará lá, como um pedaço discreto e irremovível da nossa vida. Até que uma cegueira nos separe.
Você sabe, não há garantias contra isso.
Somos presunçosos e bobos. Acreditamos, sem qualquer razão, que amanhã será melhor que hoje, mesmo que hoje seja um dia lindo. A esperança está na nossa natureza e ela é cega. A esperança cega. Ela nos põe com os olhos no futuro, a esperar, enquanto a vida acontece agora, em sua plenitude casual. Você acorda numa manhã chuvosa de primavera e ao seu lado há um ser humano adormecido. Você o conhece, você o deseja, o dia será longo e bom ao redor dele. Mas os olhos insistem em não ver o óbvio.
Por isso eu gostaria de conversar com a moça da rua. Saber a razão da mágoa dela. Entender aquilo que o cego não percebe. Enxergar por ele, talvez. Me redimir do tanto que deixei de ver. Me confortar por tantas vezes em que deixei de ser visto. Sabendo, como eu sei, que há um quê de inexorável na escuridão dos sentimentos. Elas acontecem e voltarão a acontecer. Se ao menos pudéssemos contá-las, sairiam das sombras onde moram as tristezas invisíveis. Daríamos voz ao que não se vê.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)

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