terça-feira, 8 de outubro de 2013

Somos fracos, mas os filhos nos fazem fortes

ISABEL CLEMENTE
06/10/2013 10h00 - Atualizado em 06/10/2013 13h10

Certa vez, tive que me submeter a uma ressonância magnética com contraste, um exame que me foi prescrito como parte de uma nova rotina de prevenção. Para quem nunca fez, uma rápida descrição: você entra num tubo com um minicatéter na veia por onde será aplicado o contraste.
Dentro daquele túnel um tanto apertado, você ficará na mesma posição por 20 minutos, tirintando de frio se for friorento como eu porque uma máquina como aquela requer um ar condicionado capaz de reproduzir o clima do ártico. O barulho que ela emite é ensurdecedor, entrecortado por paradas breves, rápidos silêncios que só servem para aumentar a expectativa em relação ao próximo estrondo. Tampões de ouvido reduzem o desconforto, mas minha alma claustrofóbica precisa mais do que isso para não surtar dentro de um túnel gelado sem ninguém em volta para dar apoio moral.
Controlar o medo era o meu desafio porque o frio parecia não ter jeito, apesar do cobertor sobre minhas pernas e a camisolinha de hospital. A meu favor, contava a vergonha. Só a vergonha me impediria de apertar sem querer a campainha que só deve ser acionada em caso de emergência. "Se a senhora sentir alguma coisa", explicou a enfermeira.
Eu estava sentindo frio e medo, mas acho que frio e medo, mesmo sendo "alguma coisa", não caracterizam situação de emergência. Havia também apreensão com o resultado, sabe lá. Ninguém passa sem ficar um pouco tenso por um escrutínio desses. Vai que, no detalhe, aparece um defeito no meu corpo? O que farei? Também não era o caso de parar o exame por causa disso e eu fora bem orientada pela gentil enfermeira. Não mexe para não atrapalhar o exame. Diga isso para minhas pernas que não param de tremer de frio.
Só que o tempo, esse inimigo implacável dos ansiosos, não passava. Na minha cabeça, aquela revolução em torno do meu campo magnético - mesmo restrita à sala do exame - estava destrambelhando todos os relógios da clínica. Era a única explicação para o tempo, esse traidor, não passar.
As marteladas e as sirenes me soavam como as trombetas do apocalipse. O mundo vai acabar comigo aqui dentro, eu tinha certeza. Eu tinha que me acalmar. Eu precisava sobretudo voltar inteira para minha família, meu marido e minhas filhas, o trio que dá sentido à minha vida. Tratei de dizer coisas boas para mim. Que privilégio fazer um exame tão detalhado. Que honra, pensei, ter médicos tão atentos, não é verdade? Essa era eu, não mais Isabel, mas Polyanna.
Foi quando me ocorreu uma ideia mais elevada. Imagina se fosse uma criança? Antes eu do que minhas filhas. Antes eu, antes eu. Mas e se uma delas estivesse no meu lugar? O que eu faria para acalmá-la? Iria cantar, cantaria tão alto que minha voz calaria a máquina e a mente da gente. E quem sabe assim, melodia, versos e poesia viriam nos salvar das trombetas irritantes.
Eu iria também fantasiar. Porque fantasia é um lugar para onde podemos ir toda vez que a realidade parecer assustadora de mais. Estamos no meio de uma potente demonstração de tecnologia, pura ficção-científica, quem sabe dentro de um foguete em reparos. Ou prestes a decolar. Percebe o barulho da engrenagem?
Para resistirmos à viagem, precisamos de vitamina. Ir para a lua não é para qualquer um. Esse líquido geladinho entrando pela veia nos dará superpoderes no espaço, eu posso sentir, e você? Estranho, mas genial! Ele passeia pelo meu corpo agora.
Àquela altura, com gadolínio circulando nas veias, eu já era uma mulher mais forte, uma mutante, com garras de Wolverine e poderes da Tempestade. Nunca mais serei a mesma. Vou fazer chover e relampejar quando sair daqui.
Esse frio todo vem da lua, lugar inóspito onde, dizem, poucos pisaram. Os próximos seremos nós, comemorei com ar de vitória. Minha mente inquieta decidida a acalmar uma criança imaginária entoou todas as músicas preferidas das minhas filhas na viagem rumo ao espaço. As canções embalaram os minutos finais do exame. E o tempo, um rebelde resistente já dominado, voou.
Esqueci os barulhos do lado de fora. A vida dentro de mim estava mais divertida. Se a ressonância captasse pensamentos e reproduzisse imagens dos meus sentimentos, imprimiria depois uma pauta musical colorida com versos infantis, falando de natureza, de lagarta e borboleta, de Léo e Bia, de dias brancos, piratas e princesas.
Para tirar minha mente daquele tubo gelado, eu ficava apenas imaginando o sorriso inocente das duas crianças. Sem nada saber do que tinha me acontecido, elas apenas me saudariam em casa com um oi embrulhado em sorrisos, prontas para viajar comigo nas nossas aventuras interplanetárias.
É isso o que os filhos fazem pela gente. Mesmo longe, continuam presentes. As minhas filhas transformaram uma menina cheia de medos numa mulher um pouco mais valente.
P.S: esta coluna é minha contribuição pessoal à campanha Outubro Rosa, pela conscientização sobre o papel dos exames preventivos no combate ao câncer de mama. Você já fez o seu?

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