quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Enem: A meritocracia e outras fábulas para ninar adultos

Leonardo Sakamoto

Passando perto de um local de realização do Enem, neste sábado, parei um pouco para ver o pessoal que seguia, cheio de pensamentos, para as salas de prova. Perto de mim, dois pais conversavam sobre o futuro de suas filhas e, claro, sobre o país. Não consigo reproduzir exatamente as palavras, mas a conversa foi mais ou menos esta:
– Nunca poupamos investimento na minha família para a educação. Educação sempre em primeiro lugar. A Paulinha, desde cedo, frequentou os melhores colégios, teve todos os livros que pediu, viajou para fora para ampliar a cultura…
– Se o Brasil fosse justo, um lugar em que o mérito fosse levado a sério, nossas filhas estariam com vaga garantida. Mas essas cotas distorcem tudo.
– É. Acaba entrando quem não merece, quem não se esforçou o bastante.
Sempre acho que essas coisas são pegadinha. Olho em volta, procuro câmeras escondidas, fico esperando surgir o Sérgio Mallandro e gritar “Rá! Te peguei!''. Mas, não. Ele nunca aparece.
Deu até vontade de, educadamente, perguntar se eles acreditam mesmo que a meritocracia é hereditária. E se crêem que suas filhas saíram do mesmo ponto de partida que outras pessoas às quais foram negadas todas as condições para poderem conseguir o melhor de si.
Pois, desse ponto de vista, quem tem o mérito maior: quem saiu do zero e, apesar das adversidades, conseguiu estar na média ou quem sempre teve todos os recursos à mão, mas avançou muito pouco, ficando um pouco acima da média?
Pois, se por um lado, as cotas garantem um acréscimo de condições para o candidato pobre, negro e/ou indígena, por outro a desigualdade social garante um acréscimo de condições para os candidatos mais ricos.
Contudo, reclamar do primeiro é “justiça'' e, do segundo, “inveja''.
A “meritocracia'' funciona em um debate como um coringa num jogo de buraco: quando falta carta para bater, ela aparece para salvar uma sequência incompleta. Não fica lá a coisa mais bonita do mundo, mas resolve sua vida porque todo mundo aceita que aquela carta pode preencher um vazio de sentido.
Não sou contra que competência e experiência individuais sejam parâmetros de avaliação. Mas muitas vezes não é o “mérito'' que está sendo avaliado em um contexto que desconsidera fatores externos. Além do mais, uma coisa é o mérito em si e, outra, um sistema de poder criado em torno dele como justificativa para manutenção do status quo.
O problema é que o uso dessa palavra como verdade suprema acaba servindo a quem ignora que as pessoas não tiveram acesso aos mesmos direitos para começarem suas caminhadas individuais e que, portanto, partem de lugares diferentes. Uns mais à frente, outros bem atrás.
Há muita gente contrária a conceder benefícios para tentar equalizar as condições de quem recebeu menos sorrisos da sorte. Acreditam que a única forma de garantir Justiça é tratar desiguais como iguais e aguardar que as forças do universo façam o resto.
E esse discurso é tão bem contado que, não raro, são apoiados por pessoas que, apesar de largarem em desvantagem, venceram. “Tive uma infância muito pobre e venci mesmo assim. Se pude, todos podem.'' Parabéns para você. Mas ao invés de pensar que todos têm que comer o pão que o diabo amassou como você, não seria melhor pensar que um mundo melhor seria aquele em que isso não fosse preciso?

Espero que ambas as filhas tenham ido bem no exame, se tiverem se dedicado para isso, claro. Mas, olhando como não conseguimos compreender os outros, pensamos primeiro em nossos umbigos e consideramos que sucesso diz respeito apenas ao esforço individual, penso que falta muito para deixarmos de ser uma espécie com tamanho nível de mesquinharia.
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2015/10/25/enem-a-meritocracia-e-outras-fabulas-para-ninar-adultos/ 

terça-feira, 27 de outubro de 2015

30 dias sem álcool

IVAN MARTINS
02/10/2015 - 09h34 - Atualizado 02/10/2015 22h05

Lembro como a bebida se tornou um hábito na minha adolescência. Estávamos na oitava série e o ano letivo ia se encerrando. Movidos pela nostalgia antecipada, eu e meus dois amigos mais próximos começamos a matar aulas para frequentar o bar moderninho que dava vista para o mercado municipal da Penha. O garçom nos vendia cerveja às 3 ou 4 da tarde, mas punha uma garrafa de guaraná em cima do balcão.
Tínhamos 14 anos, nem sombra de buço sobre os lábios e ainda usávamos uniformes escolares. Todos fumávamos, naturalmente. Os anos 70 na zona leste de São Paulo podiam ser tão permissivos quanto os anos 60 nos escritórios publicitários de Manhattan, senão mais.
Daí para beber com regularidade foi um pulo. Aos 17 anos, no colégio, íamos ao bar quase diariamente. Uma cervejinha antes da aula, uma pinguinha com limão depois. Às vezes, alguém levava um cantil com conhaque para dentro da escola, para espantar o frio. Era comum chegar em casa bêbado, nos fins de semana, depois dos ensaios do grupo de teatro e dos arremedos de boemia nos bares do centro da cidade.
Minha mãe, que não bebia nem champanhe na noite de Ano Novo, mal conseguia disfarçar o pânico. Temia que eu virasse um pé de cana. Não virei, mas um dos amigos daquele bar da Penha, virou. Faz alguns anos, recebi um e-mail da mulher dele pedindo ajuda para lidar com o alcoolismo do sujeito. Não sei se adiantou.
A rotina de um adulto que bebe contém álcool, mas em proporções menores do que a rotina das garotas de 20 anos preocupadas com a pele contém água.
O sujeito toma uma latinha de cerveja à noite, quando chega em casa depois do trabalho. Às vezes duas. Outras vezes, racha uma garrafa de vinho, se houver companhia. Se for ao bar com os amigos assistir a um jogo, bebe mais. Nos fins de semana, começa a tomar no almoço (quem bebe água durante um churrasco, ou acompanhando a feijoada?), e às vezes continua na festa ou na balada, noite adentro. As manhãs de ressaca são frequentes.
Minha rotina era mais ou menos essa até um mês atrás, quando me convidaram para um retiro espiritual no interior de Goiás. Como o pessoal não bebia, não bebi. Não doeu nada. Ao sair de lá, depois de cinco dias, resolvi ficar abstêmio mais um tempo, por conta própria.
Nos últimos anos, vira e mexe eu considerava dar um tempo com a bebida, fazer uma espécie de detox. Depois dos 50 anos a gente começa a pensar essas coisas. Aproveitei a parada acidental e comecei. Ontem, completaram-se 30 dias que bebi pela última vez. São 30 dias sem álcool, pela primeira desde a adolescência, que eu me lembre.
Nas últimas semanas, eu me levanto e olho no espelho todos os dias, esperando mudanças espetaculares. Quem sabe eu fique mais bonito, ou pareça mais jovem, ou pelo menos consiga uma cara mais saudável. Até agora nada nisso aconteceu, mas eu mantenho a esperança.
Perdi dois quilos na primeira semana, mas ainda bem que eles voltaram. Com 1,77 de altura e 67 quilos de peso, minha magreza é mais que suficiente. Uma moça gentil disse que a minha pele tem estado mais bonita nos últimos dias, mas acho que ela está tentando me estimular. Também digo coisas positivas para os gordinhos em regime.
Objetivamente, minha vida mudou pouco nos últimos 30 dias. Viver sem ressacas, por exemplo, é uma novidade. Fico no bar com os amigos, tomando suco ou cerveja sem álcool, e no dia seguinte estou pronto para correr ou escrever às 7 horas da manhã. Minhas manhãs ficaram mais longas e produtivas. A sensação é ótima.
Alguém me disse que junto com a ressaca eu perco também o prazer das festas e dos encontros, mas não é bem assim. Tenho feito coisas bem divertidas sem um pingo de álcool na cachola. Inclusive comer feijoada. A euforia de quem está sóbrio é menor, mas ainda é bom estar no meio do bando, falando alto e rindo. Não fui dançar de cara limpa, porém. Estou curioso para ver se funciona. Seria uma pena se eu não conseguisse entrar no clima da música sem álcool.
Noto que tenho me alimentado melhor – sobretudo de manhã – e que aumentei o consumo de café e doces. Deve ser alguma forma psicológica de compensação. As dores de estômago associadas ao consumo de álcool sumiram, assim como as quedas de resistência. Adeus, infecções oportunistas. Tenho dormido mais e com mais facilidade, mas aí pode estar intervindo outro fator: comecei a fazer aulas de meditação há duas semanas e tento meditar com regularidade, sobretudo antes de dormir. Quando a gente começa a fazer uma coisa saudável, outras se seguem.
Seguramente estou gastando menos. As contas de bares e restaurantes despencaram, e, sem trazer cerveja e vinho, as idas ao supermercado também ficaram mais baratas. Não é má notícia nos dias que correm.
Onde eu percebo mais melhora é na minha satisfação pessoal. Há um grande prazer no ato de mudar a própria vida, ainda que seja de leve. Ainda que seja em algo secundário. Quando eu parei de fumar, muitos anos atrás, foi assim. A sensação de estar no comando de mim mesmo, de ser capaz de controlar impulsos, de trocar um prazer imediato por outro, mais sutil e prolongado. É muito bom esse sentimento.
Agora que não tenho bebido, sinto que o ato de beber constantemente talvez seja uma imposição social desnecessária. Reproduzimos docilmente um estilo de vida associado pela publicidade à rebeldia, mas pago com comportados cartões de crédito. Experimentamos com o álcool na juventude depois o incorporamos em larga escala na maturidade, talvez na tentativa de perpetuar aquelas primeiras sensações. Não sei se precisamos de todo esse aditivo para estar contentes. Provavelmente não.
Os bilionários que fabricam cerveja levam vidas de asceta. Os empresários em cujos bares enchemos a cara a preço de ouro frequentemente não bebem. Os atletas milionários que batem a mão no peito para se dizer cervejeiros provavelmente não chegam perto de bebida. Todos eles nos vendem um estilo de vida que eles mesmos não compram. Por quê?
Uma sociedade em que os ricos se preservam enquanto o resto de nós comete excessos e se gasta parece uma repetição alienada da revolução industrial do século XVIII, e talvez seja.
Tem sido fácil não beber durante este mês? Em geral, sim. Às vezes, não. Ontem, fui almoçar num bistrô e havia algumas pessoas bebendo. Deu vontade de combater o calorão do Rio de Janeiro com uma cervejinha. Um cara estava no canto do salão tomando os últimos goles de uma taça de vinho branco quando o garçom chegou com um café e a garrafa de licor. A visão do ritual completo também mexeu comigo.
O vinho, além de ser uma coisa bonita, está associado concretamente ao prazer da comida e do sexo. Vai ser duro abrir mão dele. Mas posso me lembrar que a última vez que tomei meia garrafa de Chardonnay, pouco mais de um mês atrás, me irritei com uma pessoa de quem gosto muito. Discutimos e passei vários dias com sentimentos ruins. O álcool tem essa capacidade. Ele não estimula apenas a nossa emotividade e a nossa libido. Estimula também a agressividade. Dessa parte eu não sinto falta.
Nos próximos dias, pretendo ficar assim, careta. Se continuar me sentindo bem, prossigo. Se algo mudar, retomo - mas não da mesma maneira.
Me ocorreu por esses dias, numa espécie de insight, que não é necessário manter os mesmos hábitos a vida inteira. Talvez seja possível mudar, inventar, tentar. Deixar finalmente para trás o garoto nostálgico que começou a beber no bar moderninho da Penha em 1974 e achar outras formas de lidar com os sentimentos do homem em que ele se transformou. Com álcool eu já sei como é a vida. Sem ele, como será?
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/10/30-dias-sem-alcool.html 

Quem é o seu cúmplice?

IVAN MARTINS
21/10/2015 - 09h03 - Atualizado 21/10/2015 09h16

Ando obcecado nos últimos dias pela ideia de cumplicidade. Na confusão sentimental em que a gente vive, ela virou uma régua para medir a importância das relações. Com quem você faz sexo já não conta muito. De quem você gosta, também não: às vezes a pessoa não quer você; outras vezes deixou de querer. Mesmo o namoro ou casamento não asseguram nada, se as pessoas dentro dele perderam o vínculo e o convívio se tornou estéril.
A cumplicidade, ao contrário, é algo vivo e recíproco, testado por sentimentos instantâneos. Se aconteceu alguma coisa grave, você precisa falar com aquela pessoa. Se teve uma grande alegria, ligará primeiro para ela. É o olhar acolhedor dela – no sofá, no fim do dia; durante a conversa em voz baixa no restaurante, ou rindo no Skype – que recoloca no lugar as suas emoções, que oferece alento e segurança.
Ter cúmplice significa não estar sozinho, ainda que à sua volta, momentaneamente, não haja ninguém.
Amizades oferecem um grau elevado de cumplicidade – são essenciais, na verdade - mas falta a elas o vínculo carnal. A intimidade física e a comoção afetiva criam laços que amarram mais forte e mais fundo que a amizade, ainda que temporariamente.
É possível ter vários amigos, mas o sentimento da cumplicidade – como eu tento descrevê-lo – é reservado a uma única pessoa. Sua existência separa o joio do trigo. Distingue o que é essencial do que é supérfluo. Aponta, no meio da confusão e da bagunça, o que é claro e límpido.
É possível, imagino, viver momentos de confusão. Sua cumplicidade pode estar dividida entre duas pessoas - uma no passado, outra no futuro. Duas no aqui e agora, recém-chegadas. Mas isso não dura, eu acho. Rapidamente o coração se resolve. Ele escolhe alguém, sinaliza, elege. O que fazemos com isso é de nossa conta.  
Como todo sentimento essencial, a cumplicidade não nasce do nada. Ela é construída aos poucos, numa combinação gradual de atração, intimidade e confiança. Vai sendo erguida por conversas e experiências conjuntas. Sobretudo experiências. Elas reforçam a presença do outro na nossa vida e criam um repertório comum. Sedimentam a sensação de NÓS – em oposição a ELES - sem a qual as subjetividades não se juntam.
Isso demora um tempo em se fazer e outro tempo longo se desfazendo, depois. Por isso as cumplicidades resistem ao fim das relações, até fisicamente. Você encontra o ex amor numa festa e, irrefletidamente, adota um tom de voz e uma linguagem corporal que deixam a namorada ou namorado atual atônitos. Às vezes, a cumplicidade dura anos, e constitui um obstáculo ao início de novas relações.
Como colocar um novo alguém na sua vida se a cada curva do caminho você corre – feliz ou devastado - para o ombro conhecido?
Tenho a impressão, frequentemente, que o processo de se apaixonar pode ser descrito como a construção da cumplicidade. Casais que vão dar certo rapidamente desenvolvem um vocabulário e um cardápio de ideias comuns. Apelidos carinhosos, referências irônicas aos amigos e parentes, pontos de vista taxativos (e nem sempre racionais) sobre coisas e pessoas. Logo depois, vêm os hábitos e projetos comuns: adotar um cachorro, aprender japonês, passear de bicicleta no domingo. Ou cozinhar.
A gente se apaixona também por esse movimento de descobrir e envolver o outro, de erguer com ele, pecinha por pecinha, um mundo pessoal que parece Lego, mas que está vivo e respira.  
Nele, há um esforço inconsciente de ampliar o espaço de concordância e deixar de fora o que for incompatível. No processo, cria-se uma bolha antissocial cuja espessura varia de casal para casal, mas que sempre existe. Se ela não está lá é porque ainda não foi criada ou porque explodiu, prenunciando o fim dos tempos. Acontece.
Além de gostosa, a cumplicidade torna as pessoas insubstituíveis. Ela cria a sensação de que há um único ser humano no planeta que nos preenche emocionalmente. Apenas ele ou ela nos entende e faz com que nos sintamos à vontade, porque nos reserva um espaço equivalente em sua vida. Na ausência repentina dessa personalidade única – e do nosso universo espelhado, que ela carrega consigo - o mundo parece vazio de sentido. Perfeitamente cinza e assustador.
Para quem está nesse deserto, uma notícia: novas cumplicidades se constroem, assim como as velhas perecem. A segunda parte não parece animadora no momento, mas será. Um dia, você encontrará sua ex alma inseparável e não sentirá mais que carinho fraternal por ela. Não terá impulsos de tocar seu rosto ou lhe contar como está feliz no emprego novo. Algo terá se perdido, inevitavelmente. Mas algo novo estará em ebulição.
Em algum lugar a 10 ou 1000 quilômetros de distância prepara-se uma nova cumplicidade. Pode ser com a moça de ontem no Facebook. Talvez com o rapaz tímido do andar de baixo. Você não saberá até que aconteça. Não terá ideia até que o futuro se apresente à sua frente com uma única exigência: descobrir a sua forma de cumplicidade. Com quem ela será construída estará claro.

http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/10/quem-e-o-seu-cumplice.html 

É possível se vingar com sexo de um adultério?

De Ivan Martins

Ainda não me decidi a ler o livro que Isabel Dias lançou em São Paulo na terça-feira passada. 32 Um homem para cada ano que passei com você conta, em primeira pessoa, suas aventuras eróticas posteriores ao casamento, que terminou quando ela descobriu que fora traída.
Isabel diz que seu projeto de contagem sexual foi iniciado alguns meses depois da separação, com o intuito meio vago de se vingar das traições do ex-marido. Acabou virando algo mais interessante: um roteiro de descoberta e libertação pessoal através do sexo casual. Mas o título do livro ainda se dirige ao ex-marido, sugerindo que o drama inicial não foi superado.
Meu problema com o livro e com o projeto que o orienta é que eles me parecem antiquados. Como alguém pode, no século XXI, criar uma plataforma de guerra e construir uma biografia com base num adultério?
Ao descobrir que o marido tivera casos com outras quatro mulheres, ao longo de um casamento de 32 anos, Isabel reage como se tivesse sido vítima de um crime - e empurra o ex-marido para a posição odiosa de canalha. Mas isso não faz o menor sentido. Adultério não é crime e quem o pratica não é criminoso. Nem canalha. É apenas uma pessoa que mente, porque seus desejos sexuais (ou afetivos) estão em contradição com a realidade em que ele ou ela vive. Considerando a natureza erótica e instável de todos nós, isso não deveria ser considerado uma monstruosidade.
Pergunto: o que gente casada deveria fazer, em vez de mentir? Ignorar os inevitáveis desejos sexuais fora do casamento, no longo período entre os 25 e os 57 anos de idade, que corresponde à metade mais ativa da vida? Ou talvez dividir esses sentimentos voltados a terceiros com o parceiro, correndo o risco, imenso, de arruinar o convívio e destruir a relação na qual os dois investiram tantos anos e tanta energia? Só os moralistas acham que existe uma resposta fácil a essas perguntas.
Permitam-me citar longamente Alain de Botton, meu guru nesses assuntos.
Em Como pensar mais sobre sexo, ele diz: “Em um casamento considerado bom, os dois cônjuges não deveriam se culpar por suas infidelidades; deveriam se sentir orgulhosos, essencialmente, por terem conseguido permanecer comprometidos com a sua união. Os relacionamentos frequentemente começam com uma ênfase moral no lugar errado, como se a ânsia de se afastar fosse repugnante e impensável. Mas, na realidade, o que é maravilhoso e digno de honra é a habilidade de ficar, e, no entanto, isso geralmente é tomado como certo, como o estado normal das coisas. Assistir à vida passar de dentro da gaiola do casamento sem pôr em prática os impulsos sexuais é um milagre da civilização e da bondade, algo pelo qual ambos deveriam agradecer todos os dias”.
Sem banalizar ou trivializar sentimentos, sem ignorar a dor de quem é enganado, De Botton mostra como se trava uma discussão adulta sobre o adultério: admitindo as fraquezas e dificuldades humanas, e não as condenando de antemão, como um inquisidor do século XVI.
Cento e cinquenta anos atrás, ou pouco mais ou menos do que isso, dois escritores geniais criaram personagens adúlteros inesquecíveis, pela sua humanidade e por seu idealismo: Ema Bovary, de Flaubert, e Anna Karenina, de Tolstói. Ambas acreditavam que a vida lhes devia mais do que a mediocridade do destino reservado a elas. Ambas tiveram coragem de enfrentar a sociedade patriarcal ao seu redor para satisfazer o que afinal poderia ser descrito de forma moralista apenas como “luxúria”. As duas personagens terminam por se suicidar.
Será que, mesmo depois de Flaubert e Tolstói, ainda somos incapazes de olhar para esse assunto também pelos olhos de quem engana o parceiro? Será que as emoções em torno da “traição” continuarão sequestradas no século XXI pelo grito de dor das vítimas, como se não houvesse nenhuma história de sofrimento ou privação humana do outro lado?
Entendo que a mágoa de quem foi enganado é imensa. Entendo que é preciso coragem para assumir a plenitude do insulto, reagir a ele e recomeçar, em vez de definhar em silêncio e humilhação. Entendo que certas feridas afetivas precisam ser cauterizadas a ferro quente, e que atitudes radicais (mas não violentas!!), permitem, em muitos casos, um renascimento psíquico que não haveria de outra forma. Apesar disso, acho estéril transformar revanche e adultério em bandeiras, como faz Isabel Dias.
Quem passou por isso sabe que não há como vingar a humilhação de ser enganado com qualquer ato semelhante. Quando alguém que amamos nos faz de bobo e divide a sua intimidade com outra pessoa, a dor é única. Morremos 100 vezes, como cantou Amy Winehouse. Que tipo de revanche suprime um sentimento tão agudo, carregado de vergonha? Nenhuma. O sexo com outras pessoas não diminui nosso desespero por ser trocados. Saber que o outro sabe o que fazemos tampouco reduz o nosso sofrimento. Mesmo a dor do outro, se vier a existir, não é realmente capaz de mitigar a nossa.
As únicas coisas que ajudam nesses casos são tempo, perdão e reconstrução -  coisas que podem vir juntas ou separadas, dentro ou fora da relação original. Duvido que a vingança sexual faça qualquer pessoa feliz por mais de 30 segundos.
Por isso tudo, não entendo o projeto de Isabel. Ela me parece alguém que foi pela rua caminhando de costas. Seus olhos parecem estar no passado. Essas são as minhas impressões, ao menos. Mas a história que Isabel conta é outra. Ela afirma que aquilo que começou como tentativa de dar o troco ao ex-marido terminou com grandeza - na emancipação sexual de uma mulher de mais de 50 anos que passara três décadas vivendo em ilusão e privação. Se for realmente assim, se esse caminho realmente for possível, seu livro tem algo a ensinar. E nada tem a ver com vingança.
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32 Um homem para cada ano que passei com você
Editora Boa Prosa, R$ 30,90

http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/10/e-possivel-se-vingar-com-sexo-de-um-adulterio.html 

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Civita di Bagnoregio

ANELISE SANCHEZ
especial para a Folha Online 

Quem disse que só as localidades que ocupam dimensões expressivas nos mapas merecem reconhecimento como “a pátria das chuteiras” ou “a terra do Tio Sam”? Civita di Bagnoregio, um pequeno “paese” (vilarejo) situado na região do Lázio, na Itália, não é citado em muitos dos mapas ou guias locais e seu nome não é familiar para grande parte dos italianos. Inúmeros turistas desavisados realizam visitas desconfortavelmente óbvias ao trecho Viterbo Orvieto, mas perdem a oportunidade de conferir a beleza inquietante de Bagnoregio. 

A pequena cidade é um dos principais cenários de “Esperança”, novela da Globo protagonizada por Raul Cortez, Antonio Fagundes e Reynaldo Gianecchini, escrita por Benedito Ruy Barbosa e dirigida por Luiz Fernando Carvalho. 

A exemplo das nomeações que popularizaram países como Brasil e Estados Unidos no imaginário coletivo, o local também detém um título; o de “la città che muore”. 

Idealizada pelo escritor local Bonaventura Tecchi, a denominação não poderia ser mais apropriada, já que o núcleo mais antigo da cidade e os muros em argila que a circundam são cada vez mais devastados por uma contínua atividade erosiva. Suas imensas formações rochosas são atingidas por águas pluviais e por profundos vincos que as estreitam cada vez mais, reduzindo sua largura e altura. 

Chegar a Bagnoregio é voltar no tempo e deslumbrar-se com uma beleza pictórica. Até os mais experientes viajantes não resistem a brandir fotos do local. Situada a aproximadamente 484 metros acima do nível do mar, à primeira vista a cidade pode lembrar Meteora, na Grécia central. 

Seu território, que data do período pré-etrusco, já foi destruído por godos e lombardos e afetado por diversos terremotos; o mais grave deles em junho de 1695. No entanto, o fascínio que a cidade exerce sobre os homens sobrevive. 

Para gravar a novela das oito, a Globo passou cerca de um mês em Civita di Bagnoregio. A cidade será mostrada na novela durante um mês também, no mínimo, como ponto de partida para a história de Tony (Gianecchini) e Maria (Priscila Fantini), o par romântico da trama. 

Além do diretor da novela e do casal, passaram por Civita di Bagnoregio também os atores Raul Cortez, Walmor Chagas, Fernanda Montenegro, Eva Wilma, Antonio Fagundes e José Mayer. 

Colaborou a Folha Online 

http://www1.folha.uol.com.br/folha/turismo/europa/italia-civita_di_bagnoregio.shtml