segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Bilhete premiado. Por Mariana Weber

Onze da manhã. Ele toma um gole de energético enquanto ela entra no táxi.
- Bom dia.
- Bom dia. Vou pro aeroporto.
- Ok. Quer que ligue o ar? Parece que o tempo deu pra esquentar.
- Pode, por favor. É melhor assim, um dia bonito.
- É.
Parado no sinal, ele levanta os óculos espelhados e olha para trás:
- Viu a história do ganhador da loteria que perdeu o prazo pra buscar o prêmio?
- Não, não vi.
- Tá no jornal. Vinte milhões.

- É, muito dinheiro.
- Muito. Imagina o que você faz com tudo isso, moça? Não consigo nem pensar. Dava festa?
Comprava um sítio? Não trabalhava nunca mais? Não sei, não sei. É tanto dinheiro, tanto… Distribuía presente pra todo mundo e ainda sobrava. Mas e os filhos, iam viver na moleza? Não dá certo essa coisa de deixar filho na moleza. Então primeiro eu pensei que não contava pra ninguém, nem pros filhos nem pra mulher, porque segredo com mais de um dono sempre escapa. Eu ficava com o dinheiro na moita, sabe? Tinha uma boa grana de segurança e ia liberando aos poucos, em pequenos agrados pra fazer a felicidade da turma. Um tênis bacana aqui, um computador ali, uma reforma na cozinha, uma segunda viagem de lua-de-mel…
- E eles não iam desconfiar?
- Então, eu podia inventar umas histórias. Que tava ganhando bem e tal. Mas virar ricaço e não contar nem pra família tem graça? Outra: eu ia ter que continuar trabalhando, ou fingir que saía pra praça e passar o dia no boteco… Também não ia poder liberar a patroa do trabalho no salão. Que vida de milionário é essa?! Por isso que depois pensei melhor e decidi que falava pra todo mundo. Dava logo uma festa e chamava a rua toda. Bebida da boa, comida à vontade, música ao vivo, pra nenhum vizinho dizer que virei rico pão-duro. E já contratava uns seguranças, claro, porque agora eu ia ser sequestrável, né?
- Tem esse risco.
- E você, o que faria?
- Eu? Ah, acho que ia viajar. Um ano inteiro. Depois via o que fazer, se continuava a trabalhar e no quê.
- Viajar é bom. Eu também ia querer. Agora deixa eu fazer outra pergunta. E se você fosse a pessoa que ganhou o prêmio e por algum motivo não foi buscar?
- Hum, eu provavelmente ia ser a pessoa sortuda mais azarada do mundo, né?
- Pode ser…
Ele sorri. Fica uns dois minutos em silêncio e dá mais um gole de energético antes de falar:
- Eu posso ser essa pessoa.
- Como assim?
- Sabe, guardo tudo que esquecem no táxi. Se eu sei quem esqueceu e lembro do endereço, vou atrás pra entregar. Semana passada até ganhei uma limpeza de dentes grátis porque devolvi um documento pra um cliente dentista. Mas não tem nada demais. É o que a gente tem que fazer, guardar o que não é seu. Bom, o caso é que uns meses atrás encontrei um bilhete da loteria meio enfiado no banco de trás. Podia estar escondido ali por horas ou dias. Como não dava pra saber de quem era, guardei no porta-luvas e fiquei esperando alguém perguntar por ele. Tenho muito passageiro frequente, que sempre pega táxi no ponto. Podia ser de um deles.
- E ninguém perguntou pelo bilhete.
- Não.
- Você não conferiu os números?
- Não! Ia ser muita tentação! Só deixei o bilhete no porta-luvas. Outro dia pensei em jogar fora, mas acabei deixando. Mal lembrava dele. Até ler a notícia no jornal.
- Depois disso você conferiu os números?
- Por que eu ia fazer isso agora, moça? Tem coisas que é melhor não saber, não é?
- Tem. Mas incerteza também dói.
- Você quer saber tudo tudo?
- Não, mas quero saber um monte de coisas.
- Quer saber se vai ter uma doença incurável?
- Se for incurável mesmo, não.
- Você quer saber se foi traída pelo namorado?
- Sim, acho. Mas melhor era saber que ele não traiu.
- Quer saber se vai ter uma festa surpresa, quer saber o que vai ganhar de presente?
- Não, não…
- Quer saber se cuspiram na sua comida?
- Eca, moço. Ia querer saber antes de comer. Depois, não. E acho que você tem razão, melhor não olhar o bilhete.
Dois goles de energético.
- Só que, se eu não olhar, pra sempre vou ficar pensando naquilo que você disse, do sortudo azarado. Sabe o que eu devia ter feito? Olhado só a data do sorteio. Se ninguém aparecesse atrás dele até o fim do prazo, aí eu conferia os números. Sou honesto, mas não queimo dinheiro. Ou queimo, né?
- A maior chance é que o bilhete nem fosse o premiado.
- Verdade. Mas e se fosse?
Ele abre o porta-luvas, tira um papel. Depois pega um pedaço do jornal que está no banco do passageiro. Estende o braço para trás:
- Olha pra mim. Eu preciso saber.
- Ai, moço.
- Os números estão nessa página. Faz isso pra mim? Eu estou sem coragem, mas não aguento ficar na dúvida.
Um gole longo.
- E então, moça?
- Quer mesmo saber? 

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