quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Lulismo ou "qualunquismo"?

Por Marcus André Melo
Há duas visões rivais sobre a política brasileira na era dos governos petistas. A primeira aponta para um fenômeno supostamente novo - o lulismo - que representaria um realinhamento histórico que teria ocorrido na última década. A denominação lulismo - em lugar de petismo - chama a atenção para o fato de que os votos no PT e no presidente passaram a dissociar-se. Este realinhamento se daria pela conquista dos grotões atrasados pelo PT: o eleitorado petista teria se deslocado definitivamente para as regiões mais pobres - o Nordeste, o Norte - áreas que estiveram por décadas sob controle de setores conservadores. Para isso teria contribuído a ampliação de programas sociais, como o Bolsa Família, e uma estratégia de comunicação nova - por direta e eficaz - que o presidente Lula encarnaria. A visão alternativa é que este realinhamento não teria ocorrido e a "conquista do Nordeste" seria uma mera re-atualização da patologia recorrente da política brasileira: o governismo.
Em livro clássico sobre o clientelismo no "mezzogiorno" italiano, Chubb analisou o "qualunquismo" - o governismo arraigado somado à indiferença e cinismo cívico. Prefiro esse termo para caracterizar a situação brasileira porque o termo governismo tout court pode sugerir alguma forma de identificação política com o governo. "Qualunquismo" - derivado de "qualunque", qualquer um - é uma variante invertida do "hay gobierno soy contra". Mas a ela se conjugam o cinismo, o alheamento frente ao mundo da política.
A versão forte ou maximalista do argumento do lulismo é que finalmente os pobres acordaram de seu entorpecimento histórico. A metanarrativa presente nesta visão é que - permitindo-me recorrer a um termo meio esquecido do léxico político - os pobres passaram a ter "consciência de classe".
Política de transferência de renda não tem intermediários
Que suporte empírico é mobilizado para sustentar o argumento do lulismo? O primeiro é que ocorreu uma inegável reorganização territorial do voto no Brasil a partir de 2006. O voto petista efetivamente concentrou-se nos Estados mais pobres. Inferir o comportamento individual dos eleitores de dados agregados (neste caso, municípios ou Estados mais pobres) é um dos erros elementares de análise estatística, mas há evidências que os mais pobres de fato votam no PT. Uma variante é que estaria ocorrendo uma polarização de base territorial. Esse argumento ecoa algo da literatura acadêmica sobre realinhamento partidário nos EUA. Só que no Brasil não há nenhum equivalente à clivagem entre o norte e o sul nos EUA em torno da questão racial. Os quatro realinhamentos que essa literatura identifica - desde a fundação do partido democrata por Andrew Jackson até a década de 60 - tiveram ela como vetor. Não há evidências que qualquer fator regional esteja associado ao lulismo, para além de comentários preconceituosos disparados no Facebook. Nesse caso o argumento parece uma ideia fora de lugar.
O argumento do "qualunquismo" tem sido defendido com base em evidências de que o eleitor dos grotões sempre tende a apoiar quem está no governo, mesmo quando não mantém afinidades eletivas com ele. De fato, as pesquisas mostram que nas últimas cinco eleições presidenciais o voto nessas regiões tem sido invariavelmente governista. A lógica por trás do voto "qualunquista" já foi discutida há mais de 50 anos atrás por Victor Nunes Leal em "Coronelismo, enxada e voto". A dependência dos grotões frente ao governo central impelia os moradores dessas áreas a apoiarem o governo. A intensa competição política local era apenas "uma disputa para ver quem iria ter o privilégio de apoiar o governo central". Nesse sentido, o voto petista concentrado no Norte/Nordeste não representou uma "marcha para o Nordeste" mas apenas a chegada do partido ao poder. O privilégio de quem vai apoiar o governo central continuaria sendo disputado por elites atrasadas. A força intuitiva desse argumento vem do fato de que o rol dos que têm o privilégio de apoiar o governo central é assustador: uma mirada para Alagoas e Rondônia, passando pelo Pará e Maranhão, seria suficiente. Quem está na oposição só tem a oferecer ideologia e princípios: por isso o PT, como o MDB antes dele, nasceu urbano e cosmopolita. Mas os testes estatísticos sustentam esse argumento robustamente.
Embora a tese do qualunquismo seja mais persuasiva e esteja firmemente ancorada em evidências, ela é ainda insatisfatória. A conquista dos grotões não é nada mais que um reflexo da consolidação da democracia no Brasil. Quando se inaugura um mercado eleitoral competitivo - como o brasileiro - a tendência no médio e longo prazo é que ocorra um realinhamento de políticas. Essa é a essência do teorema do eleitor mediano - uma espécie de lei da gravidade da ciência política. Quando a renda é fortemente concentrada, a renda do eleitor mediano é significativamente menor do que a renda per capita. Haverá então pressões redistributivas - tanto mais fortes quanto maior o hiato de renda. Isso explica porque todos os principais contendores da disputa presidencial atual apoiam o Bolsa Família ou até prometam elevar seu escopo e valor. A política de transferências sociais é o que os cientistas políticos denominam "valence issue". Sua consensualidade - pelo menos no que se refere à redistribuição moderada de renda - implica que os políticos são avaliados apenas pela maior ou menor competência em garantir que os objetivos da política sejam atingidos. Assim não é o Nordeste, mas a maioria dos brasileiros, que tem baixa renda, que sob a democracia, apoia medidas redistributivas. O que há de novo na política nacional é a "federalização do crédito político" com a política social, o que antes só existia na fixação do salário mínimo. A política de transferência de renda não tem intermediários: o eleitor de baixa renda vota no presidente que redistribui mais e melhor (e no oligarca local que aprova a emenda ao orçamento). Mas o eleitor se defronta com um dilema: se deixar de apoiar seu candidato local que garante benefícios estará dando um tiro no próprio pé. Ele se alinhará ao que tiver mais chances - em geral o incumbente do cargo - qualunque!
Marcus André Melo é professor da UFPE, foi professor visitante da Yale University e do MIT e é colunista convidado do "Valor". Rosângela Bittar volta a escrever em fevereiro
E-mail: marcus.melo@uol.com.br


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