terça-feira, 27 de setembro de 2011

Águas nunca navegadas


fernando canzian

 

26/09/2011 - 07h00

Águas nunca navegadas

Especular hoje sobre o futuro da economia global é um exercício de adivinhação. A tormenta financeira talvez mal tenha começado.
O que está em jogo: um dominó de calotes e quebra de bancos na Europa, a ruptura do euro afundando alguns de seus 17 condôminos e um longo período de estagnação nos Estados Unidos.
As consequências dessas alternativas, ou da combinação delas, são incógnitas.
Nesta crise, os manuais foram abandonados. Enquanto não houver um risco sério de inflação no horizonte, deve prevalecer a heterodoxia, em voga desde 2008.
Para especular sobre o futuro, a alternativa é o passado.
Por alguns séculos, os países centrais de hoje enriqueceram se apropriando dos recursos de regiões periféricas. Foram vários os ciclos de rapina. Do ouro e da prata, da escravidão, do açúcar, da borracha, para ficar só na América Latina.
Depois de se industrializar, os ricos viveram de sua riqueza. E forneceram crédito à periferia para que comprasse o que produziam.
Foi assim que vários países da Ásia e da América Latina também se industrializaram minimamente. Ao mesmo tempo em que se endividaram barbaramente.
Editoria de Arte/Folhapress
Nas décadas de 1980 e 1990, a conta chegou. A quebradeira foi geral. Do Brasil à Tailândia, do México à Malásia.
A periferia aprendeu. Tratou de poupar e ajustar suas contas.
Já o mundo rico continuou vivendo de sua riqueza. Penhorando o futuro numa espiral de endividamento. A crise atual cobra essa conta.
O quadro à esquerda mostra claramente como o G7 (EUA, Reino Unido, Canadá, França, Alemanha, Itália e Japão) e o conjunto das economias avançadas se endividaram enquanto os emergentes fizeram o ajuste.
Editoria de Arte/Folhapress
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Ao mesmo tempo em que reduziam o peso do endividamento público como proporção de suas economias (do PIB), os emergentes passaram a acumular bilhões em reservas.
O quadro à direita mostra esse movimento. Foi uma resposta dos emergentes ao trauma de repetidas crises cambiais e de endividamento.
Eles não apenas diminuíram dívidas e aumentaram o caixa. Suas economias também cresceram rapidamente, sobretudo na Ásia. E, mais recentemente, na América Latina.
O resultado (no quadro abaixo) é que os emergentes finalmente hoje respondem pela metade do PIB mundial.
Editoria de Arte/Folhapress
Mas muito do crescimento deles ainda depende dos países ricos. Eles dominam a demanda global (ver quadro). Os ricos ainda compram o excedente de produção dos emergentes.
EUA e China dão o exemplo. Americanos se endividaram comprando o que os chineses fabricaram. Países como o Brasil entraram na roda vendendo produtos básicos à China.
A grande incógnita é se os países ricos, agora traumatizados, seguirão o caminho dos emergentes no passado. Na direção de um ajuste estrutural que reduza seu endividamento e aumente as reservas.
Numa economia global, para que uns tenham superavit, outros têm de acumular déficits. Necessariamente.
Quando os emergentes buscaram isso, contaram com os países ricos. Eles tinham renda elevada e disposição para consumir se endividando.
A perspectiva dos ricos hoje é inversa: emergentes com renda baixa (pobre nos EUA é mais do que classe C no Brasil) e escaldados pela praga do endividamento.
O quadro inspira conflitos. Isso nunca aconteceu.
Fernando Canzian
Fernando Canzian é repórter especial da Folha. Foi secretário de Redação, editor de Brasil e do Painel e correspondente em Washington e Nova York. Ganhou um Prêmio Esso em 2006 e é autor do livro "Desastre Global - Um ano na pior crise desde 1929". Escreve às segundas-feiras na Folha.com.

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