LUÍS ANTÔNIO GIRON
07/11/2013 08h24 - Atualizado em 07/11/2013 08h31
O chavão é o ácido sulfúrico da língua. Ele desfigura a dignidade das palavras até torná-las imprestáveis. O processo do surgimento do chavão no uso cotidiano é mais rápido que percepção das pessoas possa captar – e que a vã teoria política pode imaginar. A vida política – do poder e do contrapoder, para usar a distinção do sociólogo espanhol Manuel Castells – consiste no maior aterro sanitário de palavras desgastadas e inócuas disfarçadas de retórica persuasiva.
Em 2013, os políticos e manifestantes brasileiros produziram toneladas de entulho verbal. Se o modelo da democracia está desmoralizado, muito se deve à linguagem vazia e aos clichês que só servem para encobrir ou distorcer a verdade. Elaborei uma lista dos 20 chavões mais influentes do ano. Influentes menos porque são importantes, mas porque foram produzidos por cidadãos importantes. Nós fomos, portanto, obrigados a ouvir o que eles disseram. O chavão está no poder. O pior é que, se o poder for derrubado, o chavão vai voltar ao palanque como se nada tivesse acontecido. No país da mediocridade, o lugar-comum vence todas as eleições.
Aliança programática – A curiosa associação do governado Eduardo Campos (PSB) com a líder ecológica Marina Silva foi batizada com um dos clichês mais saborosos da temporada. A “aliança programática” desafia a lógica e demonstra que a união de elementos contraditórios. Num ato falho, Marina chamou-a também de “aliança pragmática”. Exemplo: “Marina e eu formamos um aliança programática para mudar o Brasil”.
Autoralidade – É bonito o deputado falar que seu programa de metas tem “autoralidade”. As velhas palavras “autoria” e “autoridade” parecem ter perdido o verniz. A autoralidade de um projeto soa mais nobre que a autoria e, ao mesmo tempo, indica autoridade. “O governador mostrou autoralidade no seu programa de metas.”
Bom Senso – Um grupo de jogadores de futebol criou um movimento para protestar contra o excesso de jogos nos campeonatos do Brasil, a que denominou “Bom Senso Futebol Clube”. Mas o bom senso parece também encobrir outros objetivos, como justificar decisões truculentas ou lunáticas. “Com a atenuação das penas no processo do Mensalão, o bom senso irá prevalecer”.
Caso emblemático – Nos dias de hoje, nenhum discurso no Congresso Nacional pode ter credibilidade – e autoralidade – se não contiver a expressão: “caso emblemático”. O emblema do caso fornece credibilidade ao assunto tratado. “O Mensalão é um caso emblemático na história da corrupção da República.”
Clamor das multidões – É o caso de um antigo chavão que voltou a ser usado tão logo a população invadiu as ruas para protestar no país inteiro a partir de junho. Os políticos ficaram de orelha em pé e arranjaram uma maneira de ficar bem com seus possíveis eleitores. “Precisamos ouvir o clamor das multidões”.
Consultoria – Se você adotar um vereador e escrever a ele para “consultá-lo”, terá cometido um escorregão de etiqueta. Não existe mais consulta, e sim consultoria. As pessoas não dão consultas, elas “prestam consultoria”. “Consultoria” é uma palavra tão popular que passou a ser usada até em consultório médico. “Eu gostaria de marcar uma consultoria com o doutor Sérgio.” Ou: “Será que posso agendar uma consultoria com o vereador Bastos?”
Contabilidade criativa – A expressão do economista Delfim Netto para definir os métodos heterodoxos que o governo forjou para fazer equilibrar suas contas se tornou um clichê instantâneo – e útil. Hoje, qualquer tecnocrata ou governante oportunista adota a contabilidade criativa para qualquer fim. “Para atingirmos nossa meta no superávit primário, lançaremos mão da contabilidade criativa”.
Diferenciado, diferencial – A frase “fulano é um político diferenciado” , “juiz diferenciado”, “governador diferenciado” tem que conquistar a mente e a alma dos eleitores. A inauguração de uma grande obra por algum governante não pode ser “diferente”. Em vez disso, ela tem de ter um diferencial. “Diferença” caiu de moda. “O diferencial do governo Dilma é que suas obras têm caráter social”.
“O gigante acordou” – Podemos tirar este tremendo chavão da cornucópia de bobagens que as multidões gritou nas ruas nos protestos que “varreram o país” (outro chavão). Muita gente começou a celebrar o fato de que o Brasil, na figura do gigante adormecido do Hino Nacional, estava começando a despertar. Mas, pelo jeito, ele só se espreguiçou em junho para emendar na soneca de agosto. “O povo tomou as ruas – e o gigante acordou!”
Governança – Eis um termo em moda total. Há a tal “governança corporativa”, há a “inovação na governança” e mesmo a “governança responsável”. Não há diferença no emprego diário entre os vocábulos “governança”, “governo” e “governabilidade”. Os três significam rigorosamente a mesma coisa: nada. “Em benefício da governança pública, é preciso restaurar o pacto da governabilidade”. Seja lá o que o pacto signifique, soa bonito, sobretudo se ele teve autoralidade.
Governança – Eis um termo em moda total. Há a tal “governança corporativa”, há a “inovação na governança” e mesmo a “governança responsável”. Não há diferença no emprego diário entre os vocábulos “governança”, “governo” e “governabilidade”. Os três significam rigorosamente a mesma coisa: nada. “Em benefício da governança pública, é preciso restaurar o pacto da governabilidade”. Seja lá o que o pacto signifique, soa bonito, sobretudo se ele teve autoralidade.
“A intimidade é inviolável” – O grupo Procure Saber começou a desgastar essa frase ao defender a censura prévia às biografias não-autorizadas em nome do “direito à privacidade”, para pressionar os políticos a não aprovarem a lei que libera os autores a escrever biografias com liberdade. A frase pode ser lida assim: “Não somos censores. Queremos royalties pelo uso de nossa imagem e do nossos nomes”.
Manifestação pacífica – Foi um clichê que se tornou inócua no instante em que a primeira manifestação aconteceu, com a presença de grupos de baderneiros, como os Black-blocks e os Anonymous. Daí nasceu um clichê do clichê: “A manifestação começou pacífica e terminou em quebra-quebra”.
Mobilidade urbana – Expressão usada por nove entre dez ongueiros e prefeitos que querem dar um verniz de contemporaneidade a projetos de reformulação do trânsito nas grandes cidades. Em geral, quando um prefeito diz que vai dar ênfase à mobilidade urbana, ele enche as ruas de corredores de ônibus e dá às incorporadoras o direito de construir torres gigantescas ao longo das avenidas. A “mobilidade rural”, apesar de existir em tese, não faz parte do radar dos prefeitos. “Quero privilegiar a mobilidade urbana nos locais de maior circulação de trânsito”.
“No que se refere...” – A presidente Dllma Rousseff tem usado com tanta insistência a expressão, que ninguém mais consegue pensar que ela não seja de autoria (ou autoralidade) dela. Hoje, em Brasília, o cordão dos puxa-sacos adotou-a para fazer suas palestras ou mesmo bater papo nos restaurantes. “No que se refere à cidadania e à sociedade civil, temos segurança em dizer que a camada do pré-sal é sustentável”.
Prospectar – Antigamente o verbo indicava o ato de se sobressair ou de procurar algo. Mas ganhou nobreza e popularidade quando o governo começou a prospectar a camada do pré-sal. A palavra, porém, foi se desgastando. O empresário Eike Batisa, por exemplo, prospectou jazidas de petróleo na Bacia de Campos e, quando não achou nada, enfureceu seus investidores; eles provavelmente não querem mais ouvir falar da palavra “prospectar”. Hoje o verbo é usado para os mais variados objetivos. Os lobbistas gostam de prospectar cenários positivos para suas ações. Políticos prospectam currais eleitorais. “Os headhunters prospectam talentos para o RH”.
Prospectar – Antigamente o verbo indicava o ato de se sobressair ou de procurar algo. Mas ganhou nobreza e popularidade quando o governo começou a prospectar a camada do pré-sal. A palavra, porém, foi se desgastando. O empresário Eike Batisa, por exemplo, prospectou jazidas de petróleo na Bacia de Campos e, quando não achou nada, enfureceu seus investidores; eles provavelmente não querem mais ouvir falar da palavra “prospectar”. Hoje o verbo é usado para os mais variados objetivos. Os lobbistas gostam de prospectar cenários positivos para suas ações. Políticos prospectam currais eleitorais. “Os headhunters prospectam talentos para o RH”.
Pacificar – Esse verbo ficou famoso com as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora) do Rio de Janeiro, e invadiu outros registros de linguagem. Hoje, uma favela pode ser pacificada, assim como um partido, uma mulher descontrolada no trânsito ou um casal em divórcio litigioso. “Tenho certeza de que José Serra será pacificado quando lhe oferecermos a possibilidade de se candidatar ao Senado”.
Pôr em perspectiva – Nenhum político, consultor ou palestrante para gerentes corporativos analisa ou interpreta alguma coisa. Eles colocam algo em perspectiva. O que quer dizer isso, nem mesmo eles sabem. “Sinalizando uma tendência, vamos por a questão da cidadania sustentável em perspectiva”.
Precificar – Não há mais preço, e sim precificação. Você pode precificar uma obra para participar de uma licitação ou um leilão, precificar um garoto ou uma garota de programa ou precificar um modelo de geladeira em várias lojas. Em muitas autarquias, o lema é o seguinte: “Todo homem não tem um preço. Tem uma precificação.”
Sustentabilidade – Eis um chavão que se tornou um arquiclichê, tão desgastado foi pelos ambientalistas e principalmente pelos detratores da ecologia, que fizeram questão de usar a expressão ad nauseam. A sustentabilidade pode ser usada em todas as situações, até nas insustentáveis. Exemplo: “A Rede Sustentabilidade possui assinaturas suficientes para uma candidatura sustentável de Marina Silva.
“Vamos investigar todas as fraudes” – Eis aí uma declaração-valise de grande impacto que todos os governantes e políticos brasileiros utilizam, com o adendo: “doe em quem doer”. Quanto a por em prática, a história é outra. Em geral, ela significa o contrário do que propõe.
Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras
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