segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A raça das bananas

Dorrit Harazim, O Globo
Durante a campanha presidencial do ano passado, o candidato socialista François Hollande prometeu que, se eleito, excluiria a palavra “raça” da Constituição francesa. Explicava que só existe uma raça, a família humana.
A coisa andou. Seis meses atrás, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que suprime as 59 referências a “raça” ou “racial” em algum texto legislativo. Justificativa: “A República Francesa não reconhece a existência de nenhuma presumida raça... [...] Convém suprimir o termo, que não tem nenhum valor científico e sobre o qual as ideologias racistas baseiam suas convicções [...]”.
O projeto de lei ainda precisará passar pelo Senado, ser promulgado e se adequar aos vários acordos internacionais dos quais a França é signatária. Quanto a banir a palavra do artigo I da Constituição, ninguém mais fala no assunto diante da montanha de problemas mais visíveis enfrentados pelo país.
Um deles é a cena ocorrida duas semanas atrás, durante a passagem pela cidade de Angers de uma autoridade de peso, a ministra da Justiça. Na República Francesa, quem ocupa esse cargo ainda é referido pelo título monárquico de Garde des Sceaux.
Christiane Taubira, franzina na aparência, nasceu em Caiena 61 anos atrás. Foi tenaz o suficiente para fazer a suada travessia da Guiana Francesa ao centro do poder político em Paris.
Desde que assumiu o cargo, no entanto, ela polariza a sociedade e suscita ódios intensos devido ao decisivo empurrão que deu para a aprovação do casamento homossexual. Mas não só por isso. Christiane Taubira é negra.
Na tarde de 25 de outubro, ela foi recepcionada por uma passeata contra a união gay. Já está acostumada. O protesto de Angers era tão “família” que sequer exigiu grande aparato policial: os manifestantes não chegavam a uma centena, a maioria pais e mães acompanhados de filhos em idade escolar.
À aproximação da ministra, palavras de ordem brotaram com naturalidade e empolgaram a criançada: “Macaca, vá comer tua banana”, “Taubira, você fede”.
Em determinado momento, incentivada pelos adultos, uma pré-adolescente de 12 anos, mochila nas costas, conseguiu pegar uma casca de banana das mãos de um menino de sua idade e se pôs a balançá-la na direção da Garde des Sceaux. De algum ponto saiu a pergunta: “E para quem é a banana?” A resposta veio em coro, na ponta da língua: “Para a macaca.”
Christiane Taubira é cidadã do mesmo país daquelas famílias — a Guiana onde nasceu não é colônia nem terra estrangeira, constitucionalmente faz parte da França.
Na semana anterior, outra passeata a esperava, desta vez no 5º arrondissement de Paris. À porta da Igreja de São Nicolau-du-Chardonnet, o padre fundamentalista Xavier Beauveais entoava para os fiéis, megafone em punho, o popular refrão de uma marca de chocolate em pó (Banania), proibido há anos por seu subtexto racista.
Para o ramo mais retrógrado da Igreja, entrincheirado na luta contra o aborto, no ódio aos homossexuais e na defesa de uma França eternamente cristã, madame Taubira é o demônio que veio das Antilhas.
Houve mais. Uma candidata da Frente Nacional às eleições municipais de 2014 havia postado no Facebook a imagem de um símio ao lado da ministra da Justiça. Entrevistada pela emissora France 2, a candidata admitiu preferir ver a ministra “no galho de alguma árvore do que no governo”. Foi suspensa pelo partido, mas não expulsa.
Imagine-se o terremoto que uma sequência dessa natureza provocaria no Brasil se o alvo fosse o ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa.
Passaram-se vários dias sem que a mídia, os partidos políticos, as grandes figuras da República e a França pensante se insurgissem. François Hollande até hoje não fez nenhum pronunciamento à nação. Solidariedade houve, mas à pessoa de Taubira. A questão, no entanto, tinha outra dimensão.
Desta vez, até mesmo para ela, a soma dos fatores parece ter alterado o produto. E por isso resolveu soar o alerta ela mesma, através de longa entrevista ao diário “Libération”.
“Na nossa sociedade as coisas estão descarrilhando. As inibições estão desaparecendo”, advertiu. “É a coesão social que está sendo destruída [...] Quando me chamam de macaca, milhões de pessoas são afetadas. Milhões de meninas sabem que podem ser tratadas como macacas durante o recreio. [...] Construiu-se um inimigo interior. Aqueles que são incapazes de traçar um horizonte passam o tempo todo dizendo ao povo francês que ele está sendo invadido, que o perigo ronda. Espalham a doutrina do declínio. [...] A resposta judiciária a tudo isso é indispensável: é preciso deixar claro que racismo não é uma opinião, é um delito. Mas isso não basta. A Justiça não pode reparar as patologias profundas que minam a democracia. A questão é mais ética do que moral: não se trata de saber se é certo ou errado ser racista, trata-se de determinar qual a ética da nossa sociedade[...].”
A ministra deixou para o fim a estocada mais dura: “O que mais me surpreende é que nenhuma voz forte e poderosa se levantou para alertar a nação de que a sociedade francesa está à deriva”.
Touché. No dia seguinte, na Assembleia Nacional, deputados discursavam que a República estava sendo assassinada e o primeiro-ministro Jean-Marc Ayrault convidava todos a se levantar para dizer não ao racismo.
Hollande conseguiu divulgar um comunicado conclamando os franceses a serem mais vigilantes diante da “extrema gravidade” dos insultos racistas.
Para o historiador Pascal Blanchard, autor de “La République coloniale”, Christiane Taubira tornou-se a inimiga de franceses que veem nela a usurpadora de um lugar que não lhe pertence. “É um racismo puro e duro, um racismo de pele que lembra o dos Estados Unidos dos anos 30 ou da França colonial.”
Melhor tentar trocar a realidade antes de decretar a troca de palavras da Constituição.

Dorrit Harazim é jornalista.

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