quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O Brasil é sertanejo

LUÍS ANTÔNIO GIRON
01/11/2013 07h31

Que tipo de música simboliza o Brasil? Eis uma questão discutida há muito tempo, que desperta opiniões extremadas. Há fundamentalistas que desejam impor ao público um tipo de som nascido das raízes socioculturais do país. O samba. Outros, igualmente nacionalistas, desprezam tudo aquilo que não tem estilo. Sonham com o império da MPB de Chico Buarque e Caetano Veloso. Um terceiro grupo, formado por gente mais jovem, escuta e cultiva apenas a música internacional, em todas as vertentes. E mais ou menos ignora o resto.

A realidade dos hábitos musicais do brasileiro, agora está claro, nada tem a ver com esses estereótipos. O gênero que encanta mais da metade do país é o sertanejo, seguido de longe pela MPB e pelo pagode. Outros gêneros em ascensão, sobretudo entre as classes C, D e E, são o funk e o religioso, em especial o gospel. Rock e música eletrônica são músicas de minoria.

É o que demonstra uma pesquisa pioneira feita entre agosto de 2012 e agosto de 2013 pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope). A pesquisa Tribos musicais – O comportamento dos ouvintes de rádio sob uma nova ótica faz um retrato do ouvinte brasileiro e traz algumas novidades. Para quem pensava que a MPB e o samba ainda resistiam como baluartes da nacionalidade, uma má notícia: os dois gêneros foram superados em popularidade. O Brasil moderno não tem mais o perfil sonoro dos anos 1970, que muitos gostariam de que se eternizasse. A cara musical do país agora é outra. 

A pesquisa partiu de uma base de dados de 20 mil ouvintes de rádio de todas as classes socias e faixas etárias nas capitais brasileiras, entrevistados de 2012 a 2013. O rádio foi escolhido por ser o meio de comunicação mais usado no Brasil: 73% da população brasileira escuta rádio com frequência. Entre os ouvintes, a maioria (96%) ouve música, 70% notícias, 31% esportes (aqueles que ainda gostam de ouvir as partidas de futebol no radinho de pilha), e 21% humor. “Começamos pelo universo do rádio como meio de comunicação móvel primordial e constatamos que a música está no DNA do rádio brasileiro”, afirma Juliana Sawaia, gerente do Ibope Media que coordenou a pesquisa. “O que une todos é a música. O Brasil é um país movido a música”, afirma Thiago Magalhães, assistente da pesquisa. “Queiramos ou não, hoje ele é movido a música sertaneja.”
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O gênero sertanejo, liderado pelos artistas Paula Fernandes e Michel Teló, assumiu uma posição hegemônica nos últimos cinco anos. Bateu os antigos campeões, o pagode e a MPB. Entre 2012 e 2013, dois terços das músicas mais tocadas no rádio são sertanejas, de acordo com a empresa de pesquisas Crowley, que afere a audiência musical. Cerca de 65% das músicas pertencem ao sertanejo, enquanto o pagode, em segundo lugar, ocupa apenas 19% do tempo de rádio. Rock e MPB – representados pela banda Capital Inicial e pela cantora Ana Carolina, entre tantos outros – abocanham 3% cada um, em comparação com os 5% do funk, que vem crescendo com os sucessos de Naldo e Anitta.
 
Que gêneros e artistas os entrevistados dizem ouvir no rádio (Foto: ÉPOCA)
“Nossa pesquisa confirmou o triunfo sertanejo”, afirma Juliana. “Analisamos a demografia da música e dividimos as faixas de ouvintes por idade e classe para concluirmos que a música sertaneja se disseminou por todo o país em várias classes sociais e faixas etárias.” Dos entrevistados, 58% declararam ouvir esse tipo de música.

Os analistas do Ibope estabeleceram seis perfis principais de consumidores brasileiros de música, divididos por renda e idade. A partir daí, estudaram o perfil do ouvinte e a flexibilidade do gosto musical de cada grupo. Fizeram uma descoberta evidente: a escolha de certos gêneros e estilos musicais está intimamente associada à divisão do público em idade e classe social. 

A maior parte do público sertanejo pertence à classe C, tem entre 25 e 34 anos e nível escolar fundamental. O pagodeiro pertence à mesma classe social do sertanejo. É apenas um pouco mais jovem e mais flexível. Enquanto 61% dos sertanejos ouvem pagode, 81% dos pagodeiros gostam de sertanejo. Uns e outros se distribuem pelo país inteiro e mantêm a mesma preferência quando se trata de diversão. O churrasco é o lazer favorito, depois o bar e a balada.
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Da mesma forma, roqueiros e emepebistas partilham características. Integram as classes A e B e têm escolaridade superior. Os emepebistas se concentram em Salvador, Recife e Rio de Janeiro. Os roqueiros, em Belo Horizonte e Porto Alegre. A maior parte dos roqueiros (47%) diz ouvir MPB no rádio. Cerca de 30% dos fãs de MPB dizem que ouvem rock. São exigentes e globalizados. Os roqueiros não vão só a shows, como formam bandas. Os emepebistas gostam de produtos de luxo, materiais e culturais. A faixa etária dos roqueiros é mais baixa, entre 25 e 34 anos, ao passo que os ouvintes de MPB têm entre 25 e 34 anos. “A gente pode dizer que os roqueiros ouvirão MPB quando ficarem mais velhos”, diz Magalhães. “Assim como os funkeiros que gostam de Anitta um dia ouvirão mais o gospel de Aline Barros.”

Os ouvintes de funk e música religiosa fazem parte das classes D e E e não completaram o ensino fundamental. A faixa etária do funkeiro é mais baixa, entre 12 e 19 anos, em comparação com os de 25 a 34 anos dos devotos do gospel. O funkeiro tem mais presença no Rio de Janeiro e em Salvador. O ouvinte de som religioso, em especial de gospel, comparece em peso no Nordeste. O funkeiro aprecia música religiosa: 38% dizem que escutam hinos. E 80% deles ouvem sertanejo e pagode. Os funkeiros são espontâneos, e os religiosos conservadores. Engana-se quem pensa que a turma do gospel é fechada. Cerca de 22% deles ouvem funk, 56% sertanejo e 50% MPB. Se dizem otimistas em relação ao futuro – o mesmo estado de espírito dos funkeiros.
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Desses dados, pode-se inferir que a trilha sonora do Brasil se alterou profundamente nos últimos dez anos. A classe B, que antes definia o gosto, cedeu primazia às classes C, D e E. A mudança rebaixou a qualidade dos produtos musicais. Samba e MPB exibem um material artístico mais refinado que os pancadões e arrochos sertanejos. Esse universo de gosto se tornou relevante e essencial nas tendências de consumo.

A consequência imediata das mudanças, segundo o crítico Tárik de Souza, foi o rompimento entre o grande público e a linha histórica da grande música brasileira, que começou na década de 1920 com o samba urbano de Sinhô e segue até os dias de hoje, na MPB posterior à Tropicália. Por que isso aconteceu? “Não se permitiu ao público uma escolha democrática, como havia nos tempos da bossa nova e dos festivais, quando tudo tocava no rádio – de Tom Jobim a Altemar Dutra, passando pelos Mutantes”, afirma Tárik. “Pena que os versos de Gil em ‘Rep’ não tenham força de lei: O povo sabe o que quer/mas o povo também quer o que não sabe.”

Para o produtor e empresário Tom Gomes, o ouvinte sabe, sim, o que quer. Ele considera a pesquisa do Ibope fiel à realidade. “Os sertanejos são trabalhadores incansáveis”, diz. “Fazem shows diante de dezenas de milhares de pessoas todos os dias do ano, ao passo que Chico Buarque faz um show a cada cinco anos para uma plêiade de eleitos. Não admira que Paula Fernandes seja mais popular que ele.” Gomes aponta um dado que dá vantagem aos sertanejos: a flexibilidade. “Eles se adaptam a todos os públicos. Para conquistá-los, fazem pagode sertanejo, axé sertanejo e assim por diante. Eles se renovam, enquanto o pessoal do rock e da MPB persegue o purismo e a mesmice.” Roqueiros e emepebistas são órfãos do tempo em que as gravadoras regiam o consumo, afirma Gomes. Hoje, como os sertanejos notaram, tudo acontece nos shows. “Em grande parte dos 5.570 municípios brasileiros, o público não vê shows de MPB”, diz Gomes. “Vê os sertanejos.”

Há esperança para todos, porém. Como mostra a pesquisa, as seis tribos sonoras que simbolizam a nação não estão congeladas, nem são estanques. Elas se misturam, evoluem e se influenciam mutuamente. Contribuem, a seu modo, para a riqueza e a diversidade da música brasileira. Parte dela toca menos no rádio. Hoje. Amanhã será outro dia.
 
O gosto popular, O clube dos roqueiros e emepebistas, O pancadão e a fé (Foto: ÉPOCA)


  
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