Chega de culpar seus pais. Você pode ter constatado inúmeras lacunas na relação de vocês, mas é hora de dar um passo além dessa conclusão e assumir as rédeas da própria vida. A bem da verdade, esse é um difícil passo. É quase um cacoete humano buscar em algum lugar (menos dentro de si mesmo) explicações para os problemas. Culpar os pais é uma variação dessa tendência.
Ela só pensa assim porque é mãe, você pode dizer. E estará certo. Ser pai e mãe não é exatamente aquele despertar que nos leva a concluir “nossos pais tinham razão“. Porque pode ser que eles não a tivessem, vai saber. Quando nascem os filhos, o desafio é fazer a coisa da nossa maneira, construir o nosso modelo familiar, algo que não brota do vaso das nossas ideias de uma hora para outra. É um processo lento e reavaliado, conscientemente ou não, de acordo com fases, necessidades, crenças e dificuldades. Admitir que nossos pais tinham ou não razão significa muitas vezes optar por nos aproximar ou nos distanciar das raízes. E essa dicotomia pode nos induzir ao erro. Explico por quê.
O que eu vejo, daqui do meu posto de observação da vida, é muita gente se esmerando numa espécie de contraprova daquilo que os pais supostamente fizeram de errado. Um comportamento facilmente identificável em frases como “minha mãe nunca tinha tempo para mim“, ou “eu recebia muitas críticas do meu pai por isso resolvi que, com minha filha, será na base do elogio“.
Não tenho dúvidas de que nossa consciência aprimorada é um poderoso aliado na construção de uma relação profunda com os filhos. Ao mesmo tempo, entendo que as escolhas calcadas no ressentimento criam uma interdependência com a origem que se busca negar. Nenhum antídoto tem serventia se não estiver na presença do veneno.
Não vejo saída melhor do que o perdão, irrestrito, incondicional. Perdoe seus pais, pelas falhas, pelas mancadas, pelas ausências, pelas ignorâncias, e sinta-se livre para ser pai e mãe da sua maneira. Um amigo bem humorado recorda rindo as surras que ele e o irmão levavam da mãe. Incapaz de encostar o dedo no filho, por mais levado que seja, ele optou por um modelo autêntico de paternidade. “Mas não é que eu ache que mamãe errou. Ela tinha razão quando batia. A gente desobedecia à beça. Aprontava. Eu sou apenas diferente“, diz, sem mágoa no coração, diante do meu olhar inicialmente abismado.
Durante algum tempo, achei que sabia muito pouco da minha infância. Minhas manias, meu aprendizado. Você sabe que os pais lembram tudo do primeiro filho, a primeira febre, o primeiro dentinho, o segundo. Tudo anotado. No segundo, rola um esforço para registrar as gracinhas e a memória pródiga ainda consegue reter muita informação. No terceiro, a história começa a mudar. Episódios são trocados, geralmente o que se acredita ter sido gracinha do terceiro foi, na verdade, do primeiro. É muito cansaço para dar conta de detalhes. Agora eu deixo para sua imaginação traçar o perfil da quarta filha (meu caso).Se estiver com pressa, mamãe consegue dizer os nomes das minhas irmãs, e antes que ela diga o do meu irmão ou alguma sobrinha, eu digo o meu. “Bebel, mãe“. Dizem as tias mais velhas e os primos que eu era tão tagarela quanto minha caçula. Tinha resposta pra tudo, desde pequenininha. Devia ser engraçado. É uma pena eu não ter como acessar aquilo.
Eu, no papel de mãe, anoto quase tudo o que se passa com minhas filhas. Escrevo histórias e reproduzo diálogos para que eles se tornem memoráveis. Você pode ler alguns desses textos aqui.
Um dia vou entregar todo esse material a elas e espero darmos boas risadas. Mas não parei por aí. Boa parte dos meus registros tratam mais da forma como eu me sinto. É uma confissão sobre a maneira como eu me percebo nessa função de mãe e o quanto tudo isso me transformou e me ensinou. A ironia da vida é que foi dessa maneira que eu pude conhecer mais a fundo os sentimentos da minha mãe como mãe. Ao se identificar com a forma como eu me sinto hoje, ela ri solidária, concorda, comenta que se sentia da mesma maneira. Ela apenas não tinha o hábito ou a vontade de fazer como eu faço, o que não quer dizer que ela não sentisse igual emoções que transbordam de mim para o papel. Somos apenas diferentes. Foi assim que eu a perdoei por ter esquecido as minhas tiradas.
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