quarta-feira, 18 de setembro de 2013

A quem pertencem as cadeiras vazias na classe econômica? Por Martha M. Batalha

Existem duas formas de voar na classe econômica. A primeira é resignar-se com a condição de café a vácuo e submeter-se ao estado catatônico fundamental às horas de voo. Movimentos tornam-se inexistentes, e depois do ponto alto do dia – que consiste em abrir os pacotinhos da cada vez mais frugal bandeja com comida, nada mais resta além de hibernar por algumas horas. A segunda é não se conformar com a situação, esperar as portas do avião se fecharem, procurar duas cadeiras vazias e aboletar-se nas mesmas antes que outro malandro faça o mesmo.
Geralmente eu me enquadro na primeira categoria. Na última viagem do Rio para Nova York, no entanto, complicações com outra passageira tornaram o percurso doloroso. Tudo começou na fila de embarque. Na minha frente uma loura vestida de negro – porque foi assim que a Glorinha Kalil disse que a gente tem que viajar – segurava um casaco negro de lã. Um dos botões estava prestes a cair. 
Não sou pessoa de falar com os outros. O ideal, para mim, é transitar pelo mundo entrando muda e saindo calada. Mas aquele botão, aquele botão estava me dando nos nervos. Era como ver uma espinha amarela e não apertar. Ver um quadro torto e não arrumar. 
O botão do seu casaco está quase caindo...
Ih, é mesmo. Deixa eu tentar consertar. 
O botão desprende-se e ela diz
Nooossa, obrigada! Eu ia mesmo perder o botão. 
Foi uma interação fugaz, simpática e destinada ao obscurantismo, não fosse eu descobrir, dentro do avião, que a minha nova conhecida estava na mesma fileira que eu – ela numa ponta, eu na outra, uma cadeira vazia entre nós. Minutos depois ela coloca o casaco negro na cadeira do meio, deixa o passaporte na cadeira ao lado e muda-se para a fileira de trás, onde ocupa a cadeira do corredor e coloca uma sacola na cadeira do meio. Era um polvo, aquela mulher. Uma pessoa capaz de criar tentáculos e distribuir seus bens a fim de ocupar todo e qualquer espaço vazio que visse pela frente. 
No final do embarque eu levanto o rosto do livro e percebo que talvez tenha tirado a sorte grande, que é poder viajar sozinha nas três cadeiras. Olho o passaporte à deriva perto de mim, olho o casaco negro com o botão faltando e perguntou para a loura:
Este passaporte é seu? Você está sentada aqui?
É meu sim. Eu estou sentada na sua fileira, mas se ninguém mais entrar eu vou me mudar pra essa aqui. Você vai ter as três cadeiras pra você, olha que ótimo!
Meus olhos brilharam. Sem me dar conta eu tinha passado da primeira opção de vôo, de total resignação, para a segunda, de conforto relativo. Dormir com as pernas esticadas, que delícia que seria! E por que aquela mulher faria isso por mim? A resposta está na diferença entre os sexos. Ela não estava sozinha na fileira de trás. Um homem estava sentado em uma das pontas. De acordo com as regras implícitas aos vôos internacionais, se há uma cadeira vazia entre duas mulheres, o espaço da cadeira deve ser dividido em partes iguais entre as duas. Mas se há uma cadeira vazia entre um homem e uma mulher, esta mulher tem o direito de ocupar as duas cadeiras, enquanto o homem deve contentar-se com o luxo aparente do travesseiro de pescoço.
Mas então a nossa sorte mudou. Nos últimos segundos do embarque entra no avião o raio do casal que deveria ter perdido a conexão, mas que entrou a tempo de ocupar as cadeiras em que a loura se aboletou. Ela suspira, cede o lugar aos intrusos e volta pra minha fileira. Na cadeira entre nós ainda está o imenso casaco de lã.
Permaneço com o nariz afundado no livro, embora agora eu dividisse a atenção entre os parágrafos e os movimentos da loura. A mensagem que ela passava com o casaco na cadeira do meio era a seguinte “Se esta nerdizinha continuar imersa na leitura talvez eu tenha uma chance de dominar a cadeira vaga.
Acontece que meu olho é grande, e depois de mudar as expectativas quanto ao voo eu me vi no direito de reivindicar os 50% que me cabiam na cadeira entre nós (quando duas mulheres estão na mesma fileira a cadeira vaga do meio pertence às duas, diz a regra). Em resposta ao imenso casaco negro que ocupava a totalidade da cadeira eu coloquei, por cima, meu travesseiro de voo. 
Uma palavra sobre meu travesseiro de voo: ele é feito daquele material da Nasa, aquela esponja viscoelástica que não se comprime nunca. Um travesseiro de material da Nasa serve para aliviar as dores de coluna e atormentar os passageiros próximos se acrescentados a viagens de avião da classe econômica. Meu travesseiro da Nasa ocupava mais espaço que aquele casaco preto. Depois de colocar o travesseiro sobre o casaco, eu demarquei espaço e obtive uma pequena vitória, criando uma muralha entre mim e a loura.
Ela fingiu indiferença enquanto folheava uma revista e eu fingi que acreditei na sua fingida indiferença. 
Talvez ela já esperasse isso de mim. Eu era a pentelha que tinha notado o botão caído do seu casaco e chamado a atenção para o passaporte à deriva na cadeira do avião. Uma mulher chata como eu não deixaria por menos. Uma mulher chata como eu não deixaria que ela ocupasse sozinha as duas cadeiras. 
Mas ela se fez de desentendida, e continuou agindo como a latifundiária das cadeiras. Depois do jantar, quando eu me preparava para dormir – preocupando-me em ocupar apenas 50% da cadeira ao lado, colocando máscara, protetores de ouvido e ajeitando meu travesseiro da Nasa no encosto, a loura achou por bem preencher os papéis de entrada em solo americano. Não satisfeita em acender a luz em cima de sua cadeira ela acendeu também a luz da cadeira do meio. A cadeira que pertencia ao território neutro. 
Esta é outra regra dos voos internacionais: a luz da cadeira do meio deve permanecer desligada se os integrantes das extremidades não expressarem o desejo contrário. Mas aquela loura não respeitava as regras implícitas aos voos internacionais. Aquela loura funcionava na base do aqui e do agora, o resto é que se dane. Ela não só acendeu as duas luzes como preencheu aquele papelzinho no tempo necessário para uma prova de vestibular. A mulher escrevia, escrevia e escrevia, e depois olhava a droga do papel pra saber se tinha escrito direito. E eu ali, tentando dormir, pensando em quantas vezes ela precisaria olhar praquele papel pra saber se tinha acertado a localização correta das vogais e consoantes do seu nome. 
Passaram-se minutos suficientes para eu transformar a loura de figura insignificante à problemática do avião. Se na fila de embarque ela parecia inofensiva, agora ela havia se transformado numa mulher de 50 anos vestida com roupa de 20 e com mentalidade de 12. O cabelo – é sempre golpe baixo falar do cabelo, mas quando ela acendeu a luz da cadeira neutra eu me vi no direito de falar mal do cabelo – era de um louro mais falso que sua falsa bolsa Louis Vutton. A pele daquela mulher era mais curtida que os sapatos de couro vendidos na feira de São Cristóvão. Mais curtida que a dos imigrantes nordestinos que adquirem os tais sapatos. Aquela mulher deve ter passado os últimos dez anos sob o sol de Ipanema orquestrando a noite que faria minha existência miserável durante aquela viagem de avião. 
Tirei a máscara de olho, tirei os protetores de ouvido e fiquei encarando a mulher. Encarando como? Encarando do tipo que faria a orelha da mulher cair a qualquer momento se meus desejos se realizassem. 
Que é que foi, hein? 
É esta luz. Será que você pode acender só a luz da sua cadeira?
Você tá com máscara de olho, por que você não volta a colocar a máscara e dorme?
É que a luz entra pelas extremidades. É uma luz muito forte. 
Ela estrebucha, checa o documento para se certificar de que nenhuma das letras de seu nome fugiu durante a discussão, guarda o papel, apaga as luzes e se prepara pra dormir.
Quando eu era adolescente eu aprendi um novo significado para o verbo ficar. Eu ficava com um menino numa festa, e durante o período estávamos autorizados a nos tocar e beijar. Eu acho que algumas ficadas da minha adolescência tiveram menos contato físico do que aquela noite com aquela mulher cruzando o Atlântico. 
Depois de apagar a luz, a loura espalhou-se pela cadeira do meio, empurrando as minhas pernas para o meu lado. Mudei de posição, mas continuava encostando na loura. Mudei de posição e as pernas da loura ali. Virei para o outro lado e meu bumbum tocou os pés da loura. Virei de novo para o lado da loura e meus joelhos tocaram suas batatas da perna. Mudei a posição do travesseiro da Nasa. Coloquei meu travesseiro de pescoço sobre a mesinha e cruzei os braços. Mexi, mexi e remexi até que a loura perdeu a paciência. 
Olha só, você está me incomodando. 
Eu sei. Eu estava me movendo mais do que um protetor de tela de computador, mas fazer o quê? Onde colocar as minhas pernas, se o advento da poltrona livre entre nós havia me dito que a parte inferior do meu corpo poderia ficar em outro lugar que não o reservado a ele? Como fazer aquela mulher entender que há regras na vida, como esperar a nossa vez pra falar, respeitar o andamento da fila e não dominar a cadeira do meio do avião se tem outra mulher sentando na mesma fileira?
Naquela altura, qualquer possibilidadde de conciliação entre nós se tornou impossível. De mulheres que trocaram sorrisos na fila de embarque havíamos nos tornado inimigas submetidas a um convívio imposto. Eu já havia esgotado as possibilidades de xingamento da minha colega de bordo. Na medida em que nosso relacionamento se degradava, seu casaco preto ganhava cada vez mais adjetivos. No início do voo era apenas um casaco preto, depois se tornou um casaco preto e velho, depois um casaco preto, velho e feio e no final era um casaco preto, velho, feio e seboso. Eu também tinha passado por transformações na cabeça dela. Eu havia me tornado uma mulher neurótica e irrequieta, de hábitos estranhos e inúmeras manias na hora de dormir. Uma mulher esquisita que saía por aí abraçada a um travesseiro da Nasa como se estivesse levando o air bag do carro pra passear. Que é, exatamente, a pessoa que eu sou. 
Em algum momento o coquetel de vinho barato e remédio de alergia bateu, e eu apaguei em cima da loura. Nós duas nos tornamos só um ser, num emaranhado de pernas, casacos, cobertores e cabelos. No dia seguinte agimos como duas mulheres emancipadas. Passamos a noite com outra pessoa, mas não trocamos telefone, não perguntamos se foi bom e fingimos que não nos conhecíamos.

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