DE SÃO PAULO
Diz uma antiga lenda indígena que, durante as madrugadas, no início da primavera, quando uma criança ouve o canto de um sabiá-laranjeira, ela é abençoada com amor, felicidade e paz.
Isso lá na floresta. Na selva urbana, a história é outra: tem gente se revirando na cama com a sinfonia que chega a durar duas horas seguidas antes mesmo de clarear o dia.
"Morei 35 anos no interior paulista e nunca fui acordada por passarinho algum", conta Adriana Matiuzo, 37, moradora do Brooklin (zona sul). "Agora, em plena São Paulo barulhenta e caótica, minhas madrugadas têm sido bem diferentes."
Editoria de Arte/Folhapress |
Por volta das três da matina começa a sinfonia. O cantante é o sabiá-laranjeira, ave-símbolo do Brasil e do Estado de São Paulo, que vive no campo e na cidade.
Por causa do insistente gorjeio, "posts" vêm pipocando nas redes sociais, reivindicando o silêncio dos passarinhos em prol do sono.
O diretor de arte Gilberto Leite, 38, postou: "Ele canta três acordes e fica o dia inteiro martelando isso. É insuportável!". À reportagem, disse ele: "Vou ser linchado pelos protetores dos pássaros, mas que é insuportável, isso é".
O engenheiro Johan Dalgas Frisch pensa diferente. "O sabiá é considerado a ave que melhor canta", afirma.
Um dos maiores especialistas do país, respeitado internacionalmente, esse ornitólogo já gravou 18 discos... de cantos de passarinhos.
Frisch, 83, pioneiro na gravação de vozes de aves da América do Sul, diz que quem reclama da cantoria é "gente que nasceu num bloco de concreto sem conhecer o chilreio dos passarinhos".
DE PAI PARA FILHO
Segundo o ornitólogo Márcio Repenning, 31, do Laboratório de Ornitologia do Museu de Ciências e Tecnologia da PUC-RS, a ave canta principalmente para defender um território em disputa com outros machos da mesma espécie e seduzir a fêmea. "Machos que cantam com mais vigor a priori terão melhor capacidade de alimentar os filhotes."
Já Frisch lembra que o pássaro fica a até cinco metros de distância do ninho para ensinar a melodia aos filhotes, explicando, assim, a aula madrugada afora.
A escolha do horário, diz Frisch, é estratégica: durante o dia, se abandonasse o ninho, o macho deixaria os filhotes na mira de predadores.
O pássaro é o regente da estação que se avizinha, mesmo numa cidade com pouca área verde como São Paulo. De Higienópolis ao Morumbi, do Sumaré ao Tremembé, o canto está por toda a parte.
Morador de Interlagos (zona sul), o dramaturgo Brunno Almeida Maia, 26, conta que a rua onde vive nem é tão arborizada assim, mas, "por sorte", a vizinha tem um jardim, que é voltado para a janela do quarto dele.
"Como tenho insônia, ouço o trinado até as 5h. Confesso, não me incomoda. É como o barulhinho da chuva."
Diz que prefere o canto do sabiá-laranjeira ao ronco de alguém ao seu lado ou "à barulheira de um vizinho ouvindo 'Applause', da Lady Gaga". "Eu quero mais é o sabiá."
Nenhum pássaro da espécie canta igual ao outro, segundo Frisch. O ornitólogo catalogou o canto de mais de cem sabiás em diferentes pontos da cidade e do país.
Da literatura ao cancioneiro popular, o pássaro ganhou homenagens de nomes como Marisa Monte, Tom Jobim e Chico Buarque. Roberta Miranda compôs e Jair Rodriques celebrizou: "A majestade, o sabiá!". O bicho solta o gogó pelo menos até o verão. E a primavera ainda nem começou!
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