IVAN MARTINS
18/09/2013 08h45
Eu desisti da simplicidade das pessoas. Faz algum tempo, percebi que não há gente serena e bem resolvida. Não neste mundo. Somos, na verdade, uma massa confusa e dolorosa de emoções em busca de expressão e equilíbrio. Permanentemente. A paz que a gente exibe ou que nos mostram é pouco mais que uma fachada. Ela não dura e não resiste. Por baixo da superfície calma há um mar turbulento, em cada um de nós.
É isso que torna tão difícil viver com os outros, e tão desesperadamente necessário.
Sozinhos, nos perdemos nas nossas dores e angústias, sufocamos nos nossos medos. O outro oferece referência, prumo, consolo. Feito da mesma carne confusa e latejante, ele está fora de nós. Não nos enxerga exatamente. Intui, mas não sabe o que nos habita. E isso é bom. Escolhemos contar a ele, mas não tudo. Dizer tudo é impossível. Nem sabemos. Mesmo assim, ele recebe a nossa confusão na dele. Consola a nossa dor com a dor dele. Mistura sua confusão na nossa. Assim formamos um casal.
Não é assim que aparece nos filmes, mas essa enfermaria com dois doentes me parece, cada vez mais, uma justa definição do amor.
Às vezes, temos a impressão de ser malucos num mundo de pessoas perfeitamente racionais. Dentro de mim mora um tumulto, mas ele e ela são calmos e bem resolvidos. Mentira. A confusão é coletiva. O tumulto é universal. O mundo organizado ao nosso redor, com faróis que abrem e fecham, com filas que andam e catracas que giram, é apenas uma tentativa desesperada – e bem sucedida – de nos cercar de ordem e racionalidade. Na natureza original não tinha isso. Na nossa natureza humana também não.
Quando se ama alguém, quando se transpõe a distância imensa que separa um ser humano do outro, a gente começa a perceber que a nossa precariedade também está no outro, que a nossa ansiedade também vive nele, que a angústia que nos consome tem par na angústia dele. É uma tremenda lição de humanidade. Depois dela, o nosso amor se mistura com pena, mas não dele. De nós mesmos, de todos que somos assim frágeis e perdidos, que precisamos tanto do outro.
Se a gente assume que o outro é tão complicado quanto nós, as coisas não ficam mais fáceis, mas tornam-se mais densas e mais bonitas.
Em vez de acordar num comercial de margarina, onde tudo é perfeito mas nada é verdadeiro, a gente desperta enroscado num ser humano que teve sonhos terríveis e acordou assustado. De noite, a gente vai encontrar uma pessoa que está profundamente frustrada porque não sabe lidar com a agressividade da colega de trabalho. Quando ele fala com a mãe dele, quando ela fala com o pai dela ao telefone, fica triste invés de feliz. Acontece. As relações familiares de verdade são uma droga. É por isso que você está lá, para abraçar sua metade.
Esse é o momento em que a pessoa deixa de ser a personagem de uma história para os amigos e passa a ser um ser humano real, que ocupa a sua intimidade, com capacidade de alegrar e arrebentar com a sua vida.
Mas chegar a isso exige relacionamentos de verdade. É preciso ter confiança, milhagem, experiências comuns. Não adianta gostar de longe, não adianta transar de vez em quando. Não se entra no mundo dos outros apenas batendo na porta. Tem de estar lá quando chove e quando faz sol. Tem de estar lá. Ponto.
Muitos preferem não se envolver. Acham melhor ficar na superfície dos casos, onde todo mundo é simples, perfeito, bacana. Onde só há novidades e nenhum problema. É legal, mas também tem preço. Se despertar angustiada, uma pessoa assim vai estar sozinha – mesmo que durma alguém ao lado dela. Alguém que ela não pode chamar, abraçar, em quem não pode confiar. Alguém que, na verdade, já deveria estar dentro de um táxi há duas horas.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
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