A menina ainda está assustada, coração acelerado dentro do peito, o medo premindo os lábios. Quer chorar, mas o pai está brigando com o cavalo.
“Seu pangaré!! É minha filha que está aí em cima. Cavalo besta!“.
A menina agora quer rir mas não pode. O pai quando briga, briga mesmo. Está bravo ele. Com o cavalo, não com ela. Bravo como ficaria com uma grande e grave desobediência. Papai não tem muita paciência, ainda mais com um animal que sai disparado com a criança em cima gritando. Não fizera por mal, o bicho. Queria retomar o caminho para o ponto onde se reuniria aos demais cavalos e charretes do lago.
“Eu não quero mais, pai."
“Vamos completar a volta. Eu estou segurando."
“Quero descer.“
“Fica aí. Confia em mim! Segura firme na rédea. Não solta“.
Com passos firmes, o pai fala dos tempos em que serviu à cavalaria do Exército. Cavalgava animais muito maiores, treinados e bonitos. Aqueles sim eram de raça. Tinha até Puro Sangue. Um pangaré não iria fazer ele de bobo. Nunca mais. Não se preocupe. Um cavalo tem várias marchas, como um carro. São diferentes formas de andar. Antes de cavalgar, trotam. Sabe o que é trote, filha? Não é muito confortável. A gente sacode muito em cima do animal. Eu sacudi agora! Viu? Você trotou com o cavalo. Mas é só acelerar para ficar mais gostoso. O pai sabe tudo. Palavras difíceis, informações curiosas. Tem uma memória danada. E quer que a menina busque informação, consulte o dicionário. Fala palavras desconhecidas só para provocar. Papai sempre foi um provocador.
De volta ao ponto de partida, o pai pega a menina no colo, com seus braços fortes, talhados na mania de carregar coisas. O pai faz serviços variados com o serrote e outras ferramentas no quintal, como podar árvores. Sobe também no sótão. Desce no porão. Um dia, o pai levou a menina ao sótão e ao porão. Ela ficou encantada, mas teve medo. Vai que tem morcego. Vai que tem barata. Confia em mim, dizia o pai. E lá ia a menina com medo confiar. Às vezes, ela hesitava muito e frustrava o pai. E se conseguisse se superar em algum obstáculo, o pai ria satisfeito e os olhos verdes ficavam bem apertados. Ganhavam um rabicho cheio de dobras no canto do rosto, como a cauda de uma estrela cadente, pensava. Soube depois, eram pés de galinha.
De um impulso, o pai desceu a filha da cela do cavalo. Ela pisou no chão com o alívio que só a terra firme oferece a quem acabou de cavalgar a contragosto. O cheiro do estrume lhe dava náuseas. Sempre ficava apreensiva com tantos cavalos ao redor, mas o pai foi logo brigando. Toma esse pangaré. Pangaré, ela achava, era uma ofensa para o bicho. Não fala assim não, pai, ela tinha vontade de falar, mas não dizia. E o dono do animal, que fazia jeito de quem não tinha gostado, amarrava a cara.
“Vamos pai, vamos!“
À medida que caminhavam para longe dos animais, o medo ia passando, dando lugar à euforia da grande experiência vivida.
“Eu puxava a rédea, e ele não me obedecia!“
“Eu vi.“
“Eu tentei frear, mas o cavalo disparou!“
“E eu atrás!“
“Você correu muito também!“, ela diz, com vontade de rir. “Você correu muito! Pegou o cavalo!“
Tinham uma grande história para contar em casa, quando chegassem. Ela teria uma grande história para lembrar mais de 30 anos depois, quando os músculos do pai não estivessem mais lá, nem os passos firmes. Quando o menor dos obstáculos fosse um inimigo à espreita. Quando a memória falhasse. Se pudesse, a filha correria atrás dela, a memória-pangaré, e alcançaria em nome do pai o cavalo em disparada. Quando as palavras, antes fartas, escapulissem na hora exata em que o pai precisasse delas. Reverenciadas no dicionário, estavam se escondendo por aí, ingratas, deixando frases incompletas. Menos uma, eterna em significado. Eu te amo.
(Isabel Clemente escreve aos domingos.)
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