segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Filhos crescem nos erros dos pais

Os filhos crescem nos erros dos pais, minha amiga disse. A gente conversava, entre outros temas, sobre os caminhos tortuosos que relações entre pais e filhos percorrem antes de desandar na adolescência ou na vida adulta. Quando se observa no entorno pais e filhos se afastando pelos mais variados motivos, a gente se pergunta o que dá para fazer para não cair nas mesmas armadilhas. Minha amiga, como eu, é mãe de duas meninas. E, como eu, também gostaria de levar vida afora uma relação bacana com as filhas. Mas tem muita gente bacana por aí tentando solucionar conflitos que só fazem deteriorar a conexão com os filhos.
“O que fazer para não chegar lá?“, a gente se perguntava, sem chegar a nenhuma conclusão. O imponderável, sabemos, está em todo lugar, inclusive ali no futuro a nos espreitar. Tem as escolhas, as consequências das nossas escolhas e a influência dos outros, para ficar em três ingredientes básicos dessa coisa complicada chamada vida.
Houvesse fórmulas, estaríamos todos a salvo, verdade? Bastaria programar a máquina, ou usar os ingredientes certos, apertar botões e aguardar apenas bons resultados dessa relação tão delicada.
Mas aí minha amiga me veio com essa de que filhos crescem, a despeito dos pais, inclusive usando suas falhas como trampolim para o amadurecimento. De uma hora para outra, nos sentimos mais leves.
“Em determinado momento da minha vida, achei ótimo o jeito da minha mãe, meio nem aí, sem ficar no meu pé, estudando do lado, cobrando, enquanto amigos sofriam horrores com mães chatas. Pensando bem, isso foi ótimo“, disse, com um ar feliz ao final da conclusão. Eu tive que concordar. Como quarta filha, por muito tempo, me achei prejudicada pela falta de disposição da minha mãe, me via como refém da mesma história da Chapéuzinho Vermelho interrompida toda santa noite, enquanto eu pedia “vaiiiii, mãe!“, e mamãe dormindo na minha cama... 
“Você tem razão, vai ver por isso eu desandei a ler logo todos os livros que tínhamos em casa atrás de histórias mais interessantes. E depois fui para a biblioteca da escola, e isso foi bom para mim!“, eu disse, também me divertindo com essa conclusão. Eu me tornei independente muito cedo e essa independência me ajudou a perseguir minhas escolhas. E escolher é um privilégio.
Conheço adultos ajustados e amorosos que tiveram pais muito problemáticos e, por isso mesmo, tiveram que assumir responsabilidades antes do que gostariam. Já vi crianças reprimidas se libertaram, e filhos libertos demais que se engajaram. Digo isso não para nos desculparmos de tudo, ou acharmos que importamos pouco nesse processo.Tenho absoluta certeza que os pais, os tutores ou sejam lá quem forem os responsáveis pela educação de uma criança são essenciais na construção das bases de um bom sujeito. Somos a fonte primária e devemos honrar esta posição de destaque na vida de alguém.
Mas a verdade é que sempre há espaço para encontrar mais leveza e acreditar que o erro de um pode ser o degrau para a escalada rumo ao topo do outro. Pensando alto com vocês: somos uma geração que se esmera para construir relacionamentos saudáveis com os fihos, desde muito cedo, por isso, talvez a dificuldade seja justamente se deixar ausentar sem medo e perceber o quanto eles crescem assim também, apesar de nós. Ainda que a gente não se dê conta imediata de um vacilo, uma ausência, o outro vai elaborar em cima. Simples assim.
O equilíbrio entre ausência e presença é muitas vezes fruto de decisões que escapam ao nosso controle - como quase tudo na vida, aliás. Eu tenho que trabalhar e ponto. Você irá viajar sem o filho e acabou. Você precisará dividir sua atenção com alguma situação específica e, quando se der conta, deixou o barco correr. E assim, num bendito dia, você estará fora quando um filho teu for à luta.
Tem situações, aliás, que só acontecem porque não rolou a nossa interferência...
Naquele dia, trabalhei até tarde e quando cheguei em casa, passava da hora de as crianças estarem dormindo. Era aquele momento delicado que, se elas não estivessem embarcadas nos braços de Morfeu, a chegada da mamãe poderia botar tudo a perder, como já contei aqui em outro texto.
O apartamento estava apagado. Ouvi apenas as vozes das crianças confabulando, sem gritos, sem brigas. Um tênue facho de luz indicava pai fora da circunscrição das crianças, no quarto ao lado lendo. Tirei os sapatos e cheguei silenciosa. Fiquei ouvindo a conversa e resolvi não estragar o momento das duas irmãs.
– Eu não posso te botar pra dormir toda noite, tá? - disse a filha mais velha.
–  Eu sei, mas é que quando eu era pequena num tinha medo do escuro, e agora eu não tô mais acostumada, sabe Lelê, polisso eu preciso que você fique comigo puquê eu tenho medo de escuro - disse a pequena, tentando se justificar.
–  Mas é só hoje porque o papai pediu. É minha tarefa. Vamos dormir, tá bom?
– Tá bem. Depois você faz massagem?
– Faço.
– De computador?
– Você quer a massagem de computador? Com os dedinhos? Depois eu faço. Antes temos que rezar - continuou a típica irmã mais velha, com toda a responsabilidade assumida, respeitando passo-a-passo o ritual que eu normalmente faço.
– Vamu rezá - concordou a irmã, com sua voz sussurrada, preocupada em não perturbar a paz da casa.
– Começaram por uma prece para o anjo da guarda e depois seguiram assim:
– Bondoso Deus, faça com que eu cumpra bem minha tarefa.
– ...minha tarefa...
– Faça com que a mamãe chegue logo do trabalho...
– ...do tabalho...
– Obrigada pelo dia de hoje...
– ...hoje...
– Faça com que o vovô melhore disso que ele tem e faça com que a gente durma rápido. Amém.
A menor mal pegava o fim das frases, mas repetia fora do tempo as palavras que pescava da irmã, enquanto do lado de fora do quarto eu engolia em seco a emoção de testemunhar o que elas perceberam do meu sofrimento nos últimos dias, em que eu tinha sido, por força maior, mais ausente de casa do que gostaria.
Crianças crescem nas falhas, nas ausências e também com a dor dos pais.  

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