Vista de fora, a estrutura de vidro prateado do Museu do Memorial desconcerta um pouco pela assimetria oblíqua. É que a construção visível da esplanada onde ruíram as Torres Gêmeas no atentado de 11 de setembro de 2001 tem forma de algo à deriva. Uma imponente nau sem proa, talvez.
Visto de dentro, o vasto átrio de entrada é neutro e despojado, com iluminação natural e chão de madeira clara. Emana calmaria. Nada que prepare o visitante para o sombrio mergulho às suas entranhas, expostas 21 metros abaixo. O impacto é tão contundente que as longas filas de espectadores percorrem os espaços praticamente em silêncio. A condição humana parece pequena diante da dimensão do que é mostrado.
Os 10.200 metros quadrados do museu devem ser dos poucos territórios do mundo em que o uso do celular é permitido, mas (ainda) não se vê ninguém dedilhando mensagens de texto ou clicando selfies. Mesmo adolescentes que mal tinham nascido naquele dia radioso e apocalíptico de 2001 se esquecem de compartilhar a descoberta do horror.
A descida ao fundo do mundo é feita através de longas rampas envoltas em escuridão e povoadas de vozes com fragmentos de frases gravadas no dia do atentado. É uma cacofonia insistente, embora não estridente. Ao longo da rampa há precipícios que desembocam em espaços de altura e dimensão descomunais para abrigarem alguns dos fragmentos recolhidos das ruínas.
As peças expostas parecem não se enquadrar em nenhuma escala humana. Duas vigas de sustentação das torres, com o aço descascado pela ferrugem, erguem-se como totens arqueológicos de outra era. Uma coluna maciça de várias toneladas, dobrada como se fosse de plástico, repousa no chão. Afixado numa parede, um fragmento de metal retorcido adquire formato e impacto que remete à Vitória de Samotrácia, entronizada no alto da escadaria de Daru, no Louvre.
O motor de um dos elevadores, que deslizavam mais de oito metros por segundo e chegavam ao 107º andar em menos de um minuto, também está exposto — parece uma monstruosa couve-flor de metal. Sabe-se que mais de 200 vítimas do atentado morreram queimadas dentro dos elevadores da Torre Sul.
A escala do que se vê nessa parte do museu é, deliberadamente, atordoante, a começar pelo colossal muro de 18 metros de altura de contenção do Rio Hudson. Construído muitos anos antes das torres e servindo-lhes de anteparo, o muro se manteve intacto diante da hecatombe.
Outra parede monumental abriga um mosaico composto de 2.983 quadrados em tons variados de azul: cada aquarelista convidado reproduziu a tonalidade de azul do céu daquele 11 de Setembro que guardara na memória.
Ao desembocar no marco mais profundo do museu (equivalente a sete andares abaixo do nível da rua), a visita se divide em dois roteiros. Uma conduz à homenagem exaustiva e detalhada de cada um dos mortos. (Felizmente, os 14 mil resíduos humanos ainda não identificados e guardados em gavetas de madeira que cobrem as paredes de uma saleta fechada permanecem fora do roteiro.)
O segundo roteiro leva o visitante a reviver, minuto a minuto, os acontecimentos do fatídico dia. Ali, o ambiente é claustrofóbico e confuso pelo excesso (deliberado ou não) de áudios, vídeos, objetos pessoais das vítimas doados por seus familiares, imagens do drama de todos os ângulos imagináveis, um filme que pretende explicar a história do terrorismo da al-Qaeda, uma linha do tempo interativa. E muito mais.
Há de tudo entre os 800 itens selecionados (de um total de mais de dez mil artefatos guardados): do recibo da última encomenda recebida pela agência de Correios das Torres Gêmeas ao fragmento de um cinto de segurança de um dos aviões, passando por uma folha de papel com os dizeres “84º andar West, 12 pessoas presas’’ rabiscado à mão.
É numa das extremidades menos frequentadas daquele espaço entulhado que figura um discreto biombo de tecido escuro. Ele emoldura uma fotografia, de tamanho propositalmente moderado, tirada pelo porto-riquenho José Jimenez para o jornal “Primeira Hora’’. A imagem mostra a fachada fumegante de uma das torres, com dezenas de vultos à beira da fileira infinita de janelas.
O ato final pode ser visto com discrição atrás do biombo: quatro cenas distintas de corpos que caem.
Os curadores do museu tiveram a felicidade de inscrever na parede ao lado três depoimentos de testemunhas oculares do horror. “Você se sentia compelido a olhá-los cair por respeito, pois estavam se despedindo da vida sem terem outra escolha. Dar-lhes as costas seria errado”, garante Louise Griffith-Jones.
“Ela estava de terno, tinha os cabelos penteados para um só lado. Permaneceu na borda da janela por vários minutos. Depois, segurou a saia e deu o passo. Pensei comigo, ‘que coisa humana! Quanto decoro, segurar a saia antes de saltar...’ Não consegui olhar”, narra James Gilroy.
“Um homem saltou da torre. Camisa branca, calça preta, em linha reta rumo ao solo. Naquele instante, a apocalíptica nuvem de vidro e metal (que emergia das torres) tornou-se humana”, relembra Victor Colantonio.
Não vale citar a criticada lojinha de souvenires instalada na saída como desculpa para não ir ao museu. Ali convive o que temos de pior e de melhor, como o envelope vermelho endereçado a Lawry and Charlie Meister, da Califórnia, que nunca deveria ter chegado a seu destino.
Postada no Estado do Maine na véspera do 11 de Setembro por uma tia do casal, a carta estava na carga de um dos aviões que se espatifou contra as torres. Ravid Shtaingen, empresário radicado na Inglaterra, fugia da nuvem de destroços quando viu o envelope. Sem saber por quê, apanhou-o do chão e partiu de Manhattan no primeiro voo que pôde.
Em Londres, enviou o achado, ainda úmido e coberto de cinzas, para os Meister em Los Angeles. Como não se maravilhar com o fato de que algo tão vulnerável e indefeso como um envelope de papel tenha chegado a seu destino? Indagado pelo “New York Times’’ sobre os motivos do seu gesto, Shtaingen explicou: “Redespachar a carta que sobreviveu, quando tanto se perdeu, foi minha forma de dizer ‘não’ ao caos.”
Dorrit Harazim é jornalista.
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?blogadmin=true&cod_post=536872&ch=n
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