sábado, 10 de maio de 2014

O início, o fim e o meio

RUTH DE AQUINO
09/05/2014 20h18 - Atualizado em 10/05/2014 08h39

Como se não bastasse ter pertencido à geração que queimou os sutiãs, incendiou os preconceitos, experimentou as primeiras pílulas anticoncepcionais e abriu caminho no mercado de trabalho para as garotas de hoje, percebo, neste Dia das Mães, que faço parte de mais um grupo inovador. O grupo do meio. Com uma neta de 1 ano e uma mãe de 91, sou testemunha privilegiada do ciclo inteiro da vida.
Quase um século diante de mim, entre a vela que acende e a luz que se apaga. A neta aprende a andar, e a mãe a cair. A neta aprende a comer sozinha, a mãe desaprende. A neta aprende a falar, a mãe esquece as palavras. A neta ganha peso, a mãe perde. Ambas precisam de ajuda. Uma para desenvolver, a outra para resistir. Uma logo abandonará a fralda, a outra nunca mais. Uma constrói sua memória. A outra não se recorda mais das lembranças.
Houve um tempo em que as avós já não tinham mães. Eram poucas as bisavós. A medicina alongou a vida – especialmente a feminina. Hoje, muitas mulheres de 50 a 60 anos deixaram de ser o elo de apenas três gerações.
Somos o elo de quatro gerações. Netos. Filhos adultos em casa – solteiros, divorciados e até casados. Pais vivos, com frequência dependentes ou senis, às vezes também em nossa casa. É preciso coração e sabedoria para viver todos os papéis com criatividade, sem descuidar de si mesma nem se culpar por falhas ou faltas. É assim que o grupo do meio festeja, neste domingo, várias maternidades.
Segundo a psicanalista e escritora gaúcha Diana Corso, pela primeira vez vivemos a geração dos adultos duplamente órfãos: “Enquanto nossos pais são inteiros, autônomos e cheios de opinião, não somos órfãos. Enquanto nossos filhos não se tornam pais e mães, não deixam totalmente de ser filhos. Ser filho de pais senis e ter filhos que se tornam pais – uma situação cada vez mais frequente – equivale a ir se tornando aos poucos órfão de ambos os papéis: de filho e pai, ou de filha e mãe. Ver pais se perderem de si mesmos é como assistir à morte de nossas referências. Cuidar dessas pessoas frágeis e muitas vezes infantis que eles se tornaram é um exercício doloroso de saudade da própria infância, que só morre mesmo com eles”.
Quanto aos netos, costumam ser deliciosos e surpreendentes. Recarregam nossas baterias, nos fazem sentar de novo no chão, cantar, ninar e sorrir por inteiro, não só nos lábios, mas nos olhos. O sorriso de minha neta equivale a uma transfusão de energia e esperança na veia. Talvez não exista amor mais incondicional que o das avós. Não digo mais profundo, porque o amor das mães pelos filhos vai além do além. A dedicação das avós é incondicional, porque não esperamos nada mesmo de volta, nem o reconhecimento – algo que as mães esperam e não deveriam, se fossem sábias.
O psicanalista Luiz Alberto Py diz que, em suas clientes do grupo do meio, algo é muito visível no consultório: “Quase todas relatam filhos pouco amadurecidos e nada reconhecidos. A meu ver, filhos não amadurecem porque se tornam pais. Tampouco valorizam mais o que fizemos. Alguns sim, outros não. Há uma enorme quantidade de gente que nunca amadurece”.
Existe um desgaste emocional para mulheres de 50 ou 60 que se desdobram em ser o elo de quatro gerações. É um momento da vida em que se perde qualquer segurança imaginária em relação aos pais, qualquer ilusão de poder em relação aos filhos. É um desafio encontrar-se inteira no meio desse palheiro.
Algo se aprende com tudo isso. Não é fácil testemunhar os contrastes entre o frescor e a deterioração, entre a descoberta e o esquecimento. Fomos como nossas netas, seremos como nossas mães? Muitas mulheres, no grupo do meio, aproveitam para reavaliar a vida, o corpo, o trabalho, os amores e suas opções, seus sonhos e dilemas. E que aproveitem mesmo, com toda a leveza possível. Com a nova sedução e beleza da meia-idade. Se existe um benefício de pertencer, hoje, ao grupo do meio, é olhar para a terceira idade como se estivéssemos longe dela.
Como enfrentar essa passagem sem nos sentir devendo a todos, especialmente a nós mesmas? Para Py, nosso primeiro dever é cuidar de nós: “Coloque primeiro sua máscara, depois ajude quem precisar. Essa recomendação nos aviões nem precisaria ser feita de tão óbvia, mas as pessoas se cobram o equívoco de ajudar os outros antes”. É preciso cuidar de si para estar bem e só assim poder cuidar de pais, filhos, netos e da humanidade em geral.
Neste Dia das Mães, agradeço a existência de Nina, 1 ano, que dá os primeiros passos e ama tocar pandeiro, e Dinah, 91, que, quando criança, jogou futebol e subiu em árvores. E que até hoje não se esquece de sorrir.
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ruth-de-aquino/noticia/2014/05/o-inicio-bo-fim-e-o-meiob.html 

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