quinta-feira, 22 de maio de 2014

Quando o escritor é o protagonista

LUÍS ANTÔNIO GIRON
22/05/2014 07h00 - Atualizado em 22/05/2014 07h56

Aos 28 anos, o escritor suíço Joël Dicker ficou famoso porque conseguiu uma façanha quase impossível: desbancar as “sagas” jovens adultas e atingir as listas de mais vendidos da Europa com um romance que não tem nada a ver com 50 tons de cinza, de E.L. James, e derivados ou sagas como Divergente, de Veronica Roth, ou Jogos Vorazes, de Suzanne Collins. Um santo baixou no mundo dos livros ou coisa parecida para que A verdade sobre o caso Harry Quebert (Intrínseca, 576 páginas, R$ 39,90, tradução de André Telles), segundo romance de Joël Dicker, se tornasse um êxito mundial e agora no Brasil. Trata-se de um romance de suspense construído com mais inteligência e arte de detecção do que considerações sobre a sexualidade mal resolvida de estudantes universitárias americanas ou distopias futuristas que apavoram meninos e meninas com menos de 21 anos.
Não há um único vampiro, zumbi, anjo ou mutante no livro. A ação transcorre no interior dos Estados Unidos (Aurora, New Hampshire) em dois tempos diferentes: 2008 e 1975. É uma história de mistério que envolve não o detetive clássico nem o criminoso misterioso, mas um escritor consagrado, Harry Quebert, e seu discípulo também escritor, Marcus Goldman. Tudo começa quando uma dupla de jardineiros descobre o cadáver da jovem Nola Kellergan. Ela havia desaparecido em 1975, com 15 anos. O corpo foi desenterrado no quintal de Harry Quebert, que havia tido um caso com Nola quando ela era garçonete do bar mais famosos da cidade. De repente, Quebert, até então conhecido pelo romanceAs origens do Mal, torna-se a “bête noire nacional”. É preso e enxovalhado em público apesar de negar o crime. Até porque, segundo ele, tinha feito As origens do Mal para Nola. Na tentativa de se safar da cadeira elétrica, chama seu pupilo Marcus para investigar o crime. Marcus, por sua vez, é um escritor frustrado, apesar de ter lançado um romance de sucesso três anos atrás. Agora, em 2008, ele está sendo pressionado pelos editores a entregar um novo best-seller. Em pânico, sem saber o que fazer, Marcus resolve atender ao chamado do amigo, hospeda-se na cena do crime e passa a investigá-lo. A dupla invariante do romance de detetive – criminoso e investigador – é formada por dois escritores de antigos sucessos, e amigos. Na realidade, o livro trata de um dos principais pavores dos escritores: o bloqueio criativo. A morte misteriosa da jovem pode ser interpretada como a metáfora da inspiração que perece diante do excesso de egocentrismo dos autores.
Há inúmeros exemplos de romances cujos protagonistas são autores. Em geral, romances experimentais não raro ilegíveis. Há toda uma nova geração de escritores brasileiros que praticamente criaram o gênero “autor-em-crise-escreve-sobre-suas-angústias”. Ninguém consegue lê-los – e eles se veem obrigados a produzir mais livros sobre o problema.

Na mesma seara, mas com uma narrativa atraente, Dicker criou uma narrativa ágil. Ele arrasta o leitor para as mesquinharias, tramas e fofocas da cidadezinha de Aurora. E o desfecho é um dos mais bem construídos desde a trilogia Millennium, de Stieg Larsson. A vantagem em relação a Millenium é que A verdade sobre o caso Harry Quebert é um livro concluído, e não um esboço tragicamente abandonado pela morte do autor. 
 
coluna_giron (Foto: Divulgação)
O livro fez de Dicker uma celebridade – e ele participa da próxima Festa Literária Internacional de Paraty. Em Londres, onde lançou o livro no começo deste mês, Dicker e a mulher, um belo casal, conseguiram para o trânsito do centro da cidade. Já foi traduzido para 32 línguas e se tornou o fenômeno literário da temporada. Lançado em 2012, foi um dos fortes concorrentes ao prêmio Goncourt e ganhou o prestigioso prêmio de romance da Academia Francesa de Letras. Nada mal para um advogado em início de carreira que não sabia ainda muito bem o que fazer da vida.

Foi o seu bloqueio criativo que o inspirou para criar o livro. Não há dúvida de que logo ele será adaptado ao cinema – e que em breve você conhecerá tudo sobre ele e o livro. Mas, desta vez, o hype vale a pena. A verdade sobre o caso Harry Quebert sabe entreter com jogos de enigmas. Eis uma celebridade literária súbita e de grande valor.
Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/luis-antonio-giron/noticia/2014/05/quando-o-bescritorb-e-o-protagonista.html 

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