sexta-feira, 28 de março de 2014

‘Selfie’

Por Arthur Dapieve

Ela saca um celular esperto do bolso de trás da calça jeans e pede para fazer um selfie com o veterano astro de rock


O veterano astro de rock adentra a sala de embarque do aeroporto. A moça fica olhando de esguelha até, incentivada por uma amiga, se aproximar do veterano astro de rock. A moça diz que adora o trabalho do veterano astro de rock e que, em particular, “Desfralde a bujarrona” é a música da vida dela. O veterano astro de rock é gentil e diz para a moça que, em todos aqueles muitos, muitos anos de estrada, nunca ninguém tinha escolhido “Desfralde a bujarrona” como música da vida, e que isso o deixava feliz porque ele acreditava que “Desfralde a bujarrona” estava entre as suas melhores letras. A moça exulta como só os moços conseguem exultar. Estimulada pela conversa simpática, ela saca um celular esperto do bolso de trás da calça jeans e pergunta:
— Posso fazer um selfie com você?
— Se você fizer comigo junto continua sendo um selfie?
— Claro, é um selfie nosso!
— Não seria um ourselves?
— Hã? Não... É selfie mesmo!
— Então, nós vamos apertar o botãozinho na tela ao mesmo tempo, é isso?
— Não, ué, só cabe um dedinho...
— Tem certeza?
O veterano astro de rock está usando óculos escuros, senão não seria um veterano astro de rock, mas a moça desconfia que ele está olhando para outro lugar. A moça não desiste. Afinal, está diante do autor de “Desfralde a bujarrona”.
— Claro! E aí, um selfie?
— Querida, eu não tenho mais idade para um selfie.
— Como não?! Selfie não tem idade. E você está ótimo, superbem mesmo, igualzinho à foto da capa de “Estrelas nas ombreiras”!
— Caramba, esse disco tem quase 30 anos... O primeirão!
— Então.
— Eu tenho que me poupar...
— Ah, não precisa se preocupar com sua imagem... Eu só tenho 325 amigos no Face e menos que isso no Twitter. Sendo que a maior parte acumula.
— É que não me lembro mais direito como se faz um selfie. Ando meio enferrujado. Você faz muito?
— O tempo todo. Só aqui na sala de embarque eu já fiz uns quatro.
— Assim, na frente de todo mundo?
— Claro, ué, uns três sozinha, outro com a minha amiga ali.
A moça aponta a outra moça com o queixo. A outra moça dá tchauzinho e finge se concentrar novamente na revista de fofocas sobre celebridades.
— Você fez com a sua amiga? Interessante.
— Aí, quando te vi, pensei: eu tenho de fazer um selfie com ele! A sua voz embalou muitos bons momentos da minha vida, e não só com “Desfralde a bujarrona”... Tinha também “Quero passar minha máquina zero no teu mullet”... Eu tinha de arriscar! E aí, me dei bem? Selfie?
— Fala mais um pouco da sua experiência com selfie, por favor. Estou começando a me animar. No que você pensa quando faz o selfie?
— Penso nos meus amigos.
— Muitos amigos... 327?
— 325.
— Ah, desculpa.
— Tudo bem. Quero que eles saibam que estou bem. Aí faço selfie assim tipo o tempo todo. Em casa, na night, na piscina...
— Na rua, na chuva, na fazenda, numa casinha de sapê...
— Hã?
— Nada, foi um tributo rápido ao Hyldon.
— Hã, tudo bem. Sempre gostei do humor das suas letras. Como em “A balada do fanho”. Então... É isso, faço selfie o tempo todo. É uma maneira de entrar em contato comigo mesma, com os outros, de me expressar.
— E você não se cansa?
— Nada! Quando mais faço, mais quero fazer. Vicia.
— Interessante. Eu já achei o mesmo. Fiz muito selfie quando era mais novo, às vezes quatro ou cinco num dia. Pensava nas minhas amigas também. Ficava exausto. Certa vez, durante as férias da família, fiz um selfie no meio da Lagoa de Araruama.
— E o aparelho não molhou?
— Ficou en-char-ca-do.
— Eu achava que selfie era uma onda recente. Não que eu esteja te chamando de velho, não é isso, mas devia ser difícil fazer selfie com máquina de filme.
— Imagina... A Humanidade faz selfie desde antes de Adão conhecer Eva.
— E onde você postava?
— Só às vezes rolavam uns polaroides.
A moça enrubesceu.
— Pola o quê?
— Um tipo de máquina fotográfica, tataravó por parte de mãe do seu celular.
— Ah, ufa... Gosto muito de fazer selfie em frente ao espelho, tá ligado?
— Interessante. Também gosto, quer dizer, gostava.
— Chega de saudade! A gente pode fazer ali em frente ao espelho grande, do lado do quiosque fechado de pão de queijo.
— Gostei. Saguão lotado. Bem rock’n’roll.
— Vamos lá, então.
— Calma, tenho umas questões.
A moça era fã, mas não era monja budista. Estava quase desistindo.
— Sim. Questões...
— Você faz o selfie, e eu faço o selfie ao mesmo tempo... Ou eu faço o selfie em você, e você faz o selfie em mim?
— Não entendi. Eu faço o selfie com o meu telefone. Você também aparece nele.
— Fica no modo vibratório?
— Não, não tem nada a ver...
A moça afinal percebe o rumo da prosa. Enrubesce de novo.
— Olha, obrigado pela gentileza, numa boa, te adoro, mas eu acho que a gente está falando de coisas diferentes.
— Não, querida, estamos falando exatamente da mesma coisa.
Três horas depois, ficariam aliviados ao perceber que tinham destinos diferentes.


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