segunda-feira, 31 de março de 2014

A recessão democrática

RODRIGO TURRER E FILLIPE MAURO
31/03/2014 08h00

democracia está numa encruzilhada. Por ela, clamam multidões mundo afora, e políticos pronunciam seu nome em vão, disperso em meio a palavras de ordem em inflamados discursos. Mesmo assim, sua capacidade de realizar os anseios dessas multidões está hoje em xeque. O desfecho de múltiplas crises institucionais e políticas comprova o paradoxo. Os milhares que foram às ruas para derrubar ditaduras na Primavera Árabe exigiam liberdade e o direito de ser justamente representados. Exceção feita à Tunísia, os demais países trocaram tiranias velhas por novas ou caíram em sangrentos conflitos. No Egito, governos sucederam-se em série até o aparecimento de uma nova ditadura. Na Síria, uma guerra civil completou três anos e matou mais de 100 mil pessoas. O receituário para o fracasso dessas revoluções parece ser o mesmo: o anseio por democracia inflama multidões, que tomam ruas e praças e derrubam regimes impopulares. As velhas ordens são substituídas por democracias populares, que metem os pés pelas mãos e enfrentam graves crises econômicas ou de legitimidade. Novos mandatários tornam-se impopulares, e seus governos entram em colapso.

Mesmo que 40% da população do mundo viva em países com eleições livres, a democracia não parece mais a unanimidade de outrora. A primeira onda democratizante do século XIX legou ao mundo apenas uma democracia sólida, os Estados Unidos. A segunda começou com a vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial. De 1945 a 1962, o mundo pulou de 11 países democráticos para 36. A terceira onda, dos anos 1970 aos 1990, transformou em democracias dezenas de ex-colônias na África e na Ásia e sucedeu a autocracias na América Latina e nas ex-repúblicas da União Soviética. Com a crise financeira de 2008, veio o retrocesso. O declínio nos rendimentos, a desigualdade de renda e a alta taxa de desemprego levaram a uma erosão na confiança da população em governos e instituições. Na Europa, isso se manifestou sob a forma de protestos contra a austeridade fiscal e a ascensão de partidos nacionalistas radicais. Nos EUA, veio na forma de uma apatia crescente em relação à política. Sondagens recentes mostram que 76% dos americanos confiavam no governo em 1964. Em 2010, o índice caiu para 19%. No ano passado, a mais longa democracia do mundo paralisou seus serviços públicos por mais de duas semanas, incapaz de resolver um dilema orçamentário trivial.
Para alguns, a exaustão da democracia parece repetir a cartilha da implosão de outros sistemas políticos. Em A guerra e a paz na história moderna, Philip Bobbitt, professor de Direito Constitucional na Universidade do Texas e ex-conselheiro de quase todos os presidentes americanos depois de 1970, afirma que um sistema começa a desmoronar quando não consegue prover as necessidades da população. Foi assim com o nazismo e o comunismo. Diante de ambos, vingou aquele que se provou capaz de sustentar o povo: a democracia liberal. Agora essa capacidade não é uma certeza. “O Estado nacional é incapaz de dar à sociedade o que ela almeja”, afirmou Bobbitt em entrevista a ÉPOCA, em 2011. “Os regimes, parlamentares ou presidenciais, se exaurem porque são incapazes de prover o bem-estar prometido.”

Por décadas, acreditou-se que o casamento entre democracia e capitalismo era perfeito: só as liberdades democráticas permitiam progresso material consistente. Essa relação fragilizou-se com a emergência de nações capitalistas não democráticas. Enquanto bastiões da democracia como Estados Unidos, Reino Unido e França sofriam perdas econômicas, a China exaltava o rígido controle do Partido Comunista como central para seu sucesso. Um estudo coordenado pelo economista Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos e hoje professor em Harvard, mostrou que, nos anos em que o PIB americano crescia com vigor, a cada 30 anos dobrava o padrão de vida dos americanos. A China dobrou o padrão de vida chinês a cada década nos últimos 30 anos. Uma pesquisa conduzida pelo instituto americano Pew Research Center mostrou o reflexo disso: enquanto 85% dos chineses estão “muitos satisfeitos” com suas vidas, apenas 31% dos americanos pensam assim.
>> 1964: O ano que não terminou

Um índice elaborado pela revista britânica The Economist mostra que menos da metade da população mundial vive em algum tipo de democracia. Apenas 11% (25 países) vivem numa “democracia completa”. O levantamento baseia-se em 60 indicadores, como processo eleitoral e pluralismo, liberdades civis, funcionamento do governo, participação política e cultura política. O índice mostra que a liberdade mundial caiu pelo oitavo ano consecutivo, por causa do crescimento do controle estatal, censura e formas de autoritarismo.

Esses números não mostram tudo. Importantes democracias do mundo aos poucos se tornaram autocracias, mantendo aparências eleitorais, mas amputando direitos e instituições. Na América Latina pululam exemplos. A Argentina tem eleições, mas a família Kirchner (Néstor e Cristina) aparelhou o Estado e faz de tudo para amordaçar a imprensa crítica. Na Venezuela, a situação é pior: o sucessor de Hugo Chávez, Nicolas Maduro, prende opositores envolvidos em protestos contra o governo. Na Europa, a Rússia de Vladimir Putin é um dos maiores reveses para a democracia, com a prisão de oponentes e perseguição à imprensa. “O mundo vive hoje uma recessão democrática”, afirma Larry Diamond, professor de ciência política da Universidade Stanford e diretor do Programa de Democracia do Instituto Hoover. “As grandes democracias só conseguirão alterar esse cenário com uma reconfiguração dolorosa do pacto social.”

Os prognósticos para a democracia parecem sombrios, mas já houve momentos iguais. Em meados dos anos 1970, o crescimento mundial estava estagnado, e a inflação no Ocidente era vertiginosa. Em 1975, acadêmicos de Estados Unidos, Europa e Japão elaboraram um relatório intitulado A crise da democracia. Eles argumentavam que os governos democráticos do mundo industrializado haviam perdido a capacidade de funcionar. Uma década e meia depois, a União Soviética e o comunismo desmoronaram. O que aconteceu? A democracia liberal mostrou sua capacidade de superar dificuldades por meio de seu mais importante valor: o livre debate de ideias. As discussões políticas abertas e o livre-arbítrio, por meio do voto, permitiram que sociedades democráticas identificassem soluções para seus problemas e rejuvenescessem suas economias. No lado de lá da Cortina de Ferro, o autoritarismo comunista não dava espaço à busca de alternativas – e foi derrotado. Por mais fragilizada que possa estar, a democracia é o único regime livre o suficiente para se recuperar de crises de forma satisfatória e duradoura.

O Brasil é um bom exemplo para o planeta. A conquista de liberdades democráticas, a partir de 1985, não resultou em avanços econômicos imediatos. Mas essas liberdades foram essenciais para conquistas futuras mais sólidas, como a estabilidade da moeda, uma melhor distribuição de renda e um arcabouço jurídico transparente aos cidadãos. Mais: nações democráticas são mais pacíficas, por ter em seus alicerces o mecanismo do diálogo. Paz e prosperidade, apenas a democracia pode oferecer.

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