José Casado, O Globo
Celso Furtado acabara de falar para uma plateia de estudantes. À saída topou com Mário Schenberg. O acaso reunia, ao pé de uma escada, um economista e um físico teórico dos mais influentes no país no século XX.
— Celso, posso fazer uma pergunta?
— Mas é claro, Mário.
— Ouvi tudo e fiquei pensando: esse negócio de economia é ciência mesmo?
Seguiram em frente, morrendo de rir.
A maioria dos economistas — ensina o professor Antonio Delfim Netto — sonha criar uma “ciência”, construir uma “religião”: uma “ciência econômica” que acredita em leis naturais que governam o funcionamento do sistema e, portanto, são independentes da história, da geografia, da psicologia etc.
O Brasil tem servido como laboratório de múltiplas hipóteses e teoremas, nos quais a vida real fica restrita, quando muito, a uma nota de rodapé. Aqui, os economistas conseguiram uma posição única de influência no centro de decisões. Da ditadura à democracia, ampliaram e preservam o domínio de áreas-chave do Estado.
Os poderes extraconstitucionais do Copom (Comitê de Política Monetária, do Banco Central) resultam dessa situação singular. Criado há 18 anos por “circular” (nº 2.698), é integrado por oito pessoas. Não há registro público de expressão do pensamento individual. Tem-se apenas uma Ata coletiva de quatro mil palavras.
Metade do texto é consolidação de índices conhecidos. O restante destina-se a uma espécie de catecismo ou formulário de “orações” e “ensino” dos dogmas da política monetária. A linguagem é cifrada, com quebra-cabeças estéticos. Aos distraídos sugere o fenômeno da construção de uma teologia da economia brasileira.
Uma leitura bem-humorada das Atas das últimas 34 reuniões (de 27 de janeiro de 2010 a 26 de fevereiro passado) permite vislumbrar a tentativa de se escrever um livro dos segredos.
Ultrapassadas as pérolas de obviedade (“a política monetária deve contribuir para a consolidação de um ambiente macroeconômico favorável em horizontes mais longos”), surge uma nuvem estática: “A aversão ao risco mostrou certa elevação...” É um dos inúmeros trechos repetidos há quatro anos. Escreve-se:
“Riscos baixos para a inflação subjacente no curto prazo tendem a reduzir incertezas em relação ao comportamento futuro da inflação plena” (setembro de 2010).
Reescreve-se: “Riscos baixos para a inflação subjacente no curto prazo tendem a potencializar os efeitos das ações de política monetária” (janeiro de 2014).
Na tortura do idioma, ecoa um sotaque de telemarketing: “A se confirmar a perspectiva de intensificação das pressões sobre o mercado de fatores, a probabilidade de que desenvolvimentos inflacionários localizados venham a apresentar riscos para a trajetória da inflação poderia estar se elevando.” E adverte-se:
“O Copom segue monitorando com particular atenção o comportamento das expectativas de inflação, que se elevaram no trecho intermediário do horizonte de projeção.”
Os oito do Copom talvez sintam alguma superioridade sobre os mortais. No coletivo anônimo, só se comunicam com a sociedade numa língua que ninguém entende.
A propósito, a próxima reunião está marcada para uma terça-feira simbólica: 1º de abril.
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