quarta-feira, 12 de março de 2014

A história de Karla e Caio

ISABEL CLEMENTE
09/03/2014 10h00 - Atualizado em 10/03/2014 12h41

Era maio de 2009, Karla e Nelson procuravam uma casa para morar no Rio. Hospedados temporariamente na casa dos pais dele, faziam as buscas por um novo lar nos classificados. Tinham decidido deixar para trás a vida pacata em Praia Seca, distrito de Araruama, na região dos Lagos do Rio de Janeiro.
Entre "ficadas", namoro e vida a dois sob o mesmo teto, Karla e Nelson se conheciam havia mais de 20 anos. E Nelson, aos 40, queria ser pai. Todos os amigos já tinham filhos. Aos 37 anos, Karla também achava que seria mãe, sem pressa. "Eu seria mãe eventualmente, sabe? E ele tinha certeza que era a hora, que teria um filho homem", diz, rindo, ao se lembrar do doce embate. Nelson perguntava sério para ela: "Preta, você tá escondendo meu filho? Você tá grávida?"
Como a questão já estava resvalando para uma obsessão do companheiro, Karla diz que resolveu fazer contas para apaziguar os ânimos. Pretendia engravidar no segundo semestre de 2009, a tempo de ter um bebê geminiano em 2010. "Como se eu pudesse programar o mundo, a vida, porque eu tinha um pouco disso de achar que tudo aconteceria sempre do jeito que eu queria...", diz.
Karla e Sinho - famílias inspiradoras (Foto: Arquivo pessoal)
Nelson era técnico especializado e contratado de uma petrolífera italiana, a Saipem. Havia recebido meses antes uma proposta muito boa para trabalhar embarcado no exterior. Era um homem decolando profissionalmente num mercado em ascensão: o petrolífero. Depois de um intenso treinamento na Holanda, incluindo cursos de escape submarino - para o caso de o helicóptero cair no mar -, ele começou a trabalhar na costa de Angola. Sua rotina incluía um mês no mar, um mês em terra.
No dia 31 de maio de 2009, depois de um churrasco de despedida na casa dos pais, Nelson embarcou pela segunda vez para o novo posto no exterior. A rota da primeira viagem incluíra Lisboa. Desta vez, para sua "maior comodidade", como informou a empresa, ele passaria por Paris rumo à Angola. Karla e Nelson se atrasaram por causa da festinha familiar e chegaram tarde no aeroporto Internacional do Galeão, no Rio de Janeiro. Ele foi um dos últimos a embarcar no voo 447 da Air France rumo a Paris. Por pouco, não perdeu o avião. "Ele se despediu com lágrimas nos olhos ao abraçar o irmão. Ele nunca tinha ficado assim. Nunca. Viajava toda hora, estava acostumado a embarcar. Agora essa cena dói demais porque ganhou outro significado", afirma Karla.
De dentro do avião, ele ainda telefonou para a mulher e contou, um tanto preocupado com a noite pela frente que "todas as crianças do voo" estavam atrás de sua cadeira. "Eu ouvi a zoeira das crianças pequenas, disse 'que delícia', relaxa e dorme", diz Karla.
Às 6h30 do dia seguinte, o celular de Karla tocou.  "Eu cheguei a pensar que era ele, ligando pra me avisar que chegou, porque ele era esse reloginho, mas era meu sogro, perguntando qual era o número do voo do 'Cisquinho', como ele chamava o filho, e pedindo para eu ligar a televisão".
Aquele dia não teria fim. O voo 447 desaparecera com 228 pessoas a bordo.
Por alguns dias, os familiares das vítimas ficaram num hotel oferecido pela companhia aérea. Karla voltou para casa de onde continuou torcendo pelas teorias conspiratórias. Quem sabe o avião havia sido sequestrado? Quem sabe uma aterrissagem forçada num deserto qualquer? Poderia estar perdido. Se pousou no mar, Nelson era treinado. Nadava muito bem. Qualquer explicação improvável seria melhor do que a verdade. "Nem sei te dizer quantas vezes me perguntei por que ele não perdeu aquele voo, por que eu não me atrasei", diz Karla.
Equipes da Marinha e da Aeronáutica retiram do mar destroços do avião da Air France, em junho de 2009 (famílias inspiradoras) (Foto: Divulgação/Aeronáutica)
Quando partes da fuselagem do avião foram encontradas boiando no Oceano Atlântico, Karla enfim compreendeu: Nelson não iria voltar. Ela só não sabia ainda que ele partira deixando com ela um pouco de si. Karla descobriria dias depois estar grávida do filho que o marido acreditava estar escondido nela.
Nelson e Karla se conheceram ainda adolescentes, em 1985, quando ele chegou com a família (quatro irmãos e os pais) de Brasília para morar no mesmo prédio dela. Três anos depois aconteceu o primeiro beijo do casal. "Ele era mais do que meu namorado, um super amigo".
Nelson era o sujeito calado, alto, olhos claros e pele muito alva, um tipo caucasiano. Gostava de roupas escuras e brincos. Certa vez, foi confundido com skinhead, segundo Karla. Era sério até para brincar. Um tio querido dos sobrinhos.
Eu conheci Karla na adolescência. Estudamos na mesma escola, mas nunca na mesma turma, só frequentávamos juntas o ginásio atrás de uma partida de handebol. Ela era muito melhor do que eu, aliás. Jogava na linha e no gol.  Agarrar em handebol não é para fracos. Karla era a irreverente, ria de si e dos outros. Essencialmente "do bem". Depois da escola, cursou três anos de Medicina - coisa que eu não imaginava - mas descobriu a tempo não ter vocação para ser médica. Hoje, ao revê-la, ambas adultas, independentes, com profissão definida e filhos, reencontro o mesmo bom humor. Dou boas gargalhadas com suas histórias no Facebook. Karla é feliz. Adora ser mãe. Se você perguntar de onde ela tirou forças para enfrentar tudo o que passou, a resposta é uma só: "Caio, Caio, Caio". Ela não perdeu a sagacidade nos comentários nem a boa vontade com a vida, apesar das adversidades que enfrentou. Detalhe: tampouco desenvolveu medo de avião.
Caio bebê - famílias inspiradoras (Foto: Arquivo pessoal)
"Quando descobri minha gravidez, eu lembro que havia uma hesitação nas pessoas. Eu tinha que dar a notícia completa dizendo 'ei, estou grávida e é legal! Pode ficar feliz', porque as pessoas estavam prontas para chorar comigo", diz. "Tenho uma certa habilidade para lidar com a felicidade".
Perder uma pessoa amada tão próxima é uma das mais dolorosas experiências humanas. Está no topo dos sofrimentos. Quando a morte é inesperada, é preciso ainda enfrentar o choque inicial, depois o vazio e, enfim, a nova realidade. O luto, uma dor quase física que ameaça nunca chegar ao fim, não tem prazo de duração mas um dia acaba. Tudo dependerá da maneira como você for lidar com essa perda, o que envolve personalidade, estilo de vida, fé. Havia dias em que Karla simplesmente achava que Nelson estava viajando. Em outros, remoía diálogos que gostaria de reescrever.
"Passei boa parte da gravidez desconectada. Não estava exatamente dentro da situação. Não sei se foi uma maneira de lidar com o choque. Eu tinha crises de desespero que depois passavam e eu seguia meu dia a dia normalmente", diz Karla. Foi um período difícil aquele. Mas nunca teve pena de si, porque ficara viúva e grávida. "Eu não podia mergulhar numa tristeza profunda. Eu tinha questões muito práticas para resolver. Eu não tinha onde morar, perdi o plano de saúde e me descobri grávida. Nenhum plano me aceitou. Eu precisava trabalhar e muito", afirma.
Agente concursada da Polícia Civil do Rio desde 2002, Karla passou a cobrir plantões extras para aumentar a renda de R$ 5 mil brutos pago por sua função. Contou com ajuda financeira da mãe. Ela já não tinha pai havia três anos e o irmão, médico, morava em Cuba. O processo de indenização a ser paga pela Air France consumia tempo em desgastantes reuniões, Karla preferia se afastar da confusão. Havia um menino crescendo dentro dela. No dia 25 de janeiro de 2010, um dia depois do aniversário de Nelson, Caio Maximus nasceu. Karla chorou um choro leve, ela me diz, e nunca mais sentiu aquela tristeza pesada novamente. Era o início do seu reencontro com a felicidade.
Caio e Karla - famílias inspiradoras (Foto: Arquivo pessoal)
"Mãe, pega o Benjamim Tennison pra mim?", gritou Caio de dentro do box.
"Onde está, filho?"
"Tá no sofá, embaixo da almofada amarela".
Karla encontrou o Ben 10 exatamente onde o garotinho disse que estaria. Aos 4 anos, Caio é assim: chama seus heróis preferidos pelo nome, é organizado - "mais do que a mãe", ela diz – e gosta tanto de legumes e frutas quanto o pai. "Não me puxou", ela afirma, em tom confessional. O corpo longilíneo também é herança paterna. "Eu rio sozinha ao vê-lo andar de cuequinha pela casa. É muito engraçado, o corpo do Nelson", diz Karla. Possui ainda o mesmo gênio forte do pai e opinião sobre quase tudo. Falante, esperto, como só as crianças sabem ser, faz ressurgir nela energia de onde não esperava, como nas voltas dos plantões de 24 horas na Delegacia de Polícia.
Pai do Caio - famílias inspiradoras (Foto: Arquivo pessoal)
"Anda logo, mãe. Hoje é dia de novidade!", diz o menino, numa sexta pela manhã pulando ao redor dela. No plantão de uma agente de polícia acontece de tudo: perseguições pela rua, atendimentos de pessoas misteriosas, gente confusa, gente suspeita e até queixas de roubo de guarda-chuvas ou peixe cru.
"Você junta os cacos e se apressa, porque sexta é o dia mais divertido na escola e você não quer atrapalhar a pessoa", ela comenta, em post no Facebook, para amigos.
Às vezes Caio pergunta "eu sou preto, mamãe?". Ela tenta explicar. "Você é café com leite, misturado. Mamãe é negra, tem pele preta, papai é branco. Você está no meio do caminho. Essa explicação de cor, raça e identidade é complicada, sempre delicada".
Mais delicada ainda foi outra batalha que Karla enfrentou em 2011, dessa vez, na Justiça. Em 2003, Karla matou um homem. Era feriado de 1º de maio. Depois do plantão na delegacia, ela seguiu para uma festa de amigos num condomínio próximo à sua casa. Já na confraternização, uma briga do lado de fora chamou a atenção dos convidados. Houve tiros. Um puxou arma para tentar acertar o outro, deu dois tiros e errou. Um jovem em fuga abriu a porta da garagem e invadiu a festa onde Karla estava. Atrás dele, apareceu um homem armado, sem camisa, descalço, alterado e gritando.
"Pensei "é ladrão, vai matar, vai fazer alguma coisa", e peguei minha arma. Ele me viu, veio na minha direção e mirou em mim", diz Karla, reconstruindo a cena fatídica. Ela sacou a pistola e foi mais rápida. Como num faroeste, atirou primeiro.
Karla se lembra de ter visto o amigo, dono da casa, abaixado tentando proteger os filhos de 2 e 5 anos do homem armado. "Eu fiquei tranquila diante da cena. Eu não estava bebendo, pedi exames toxicológicos e alcoolemia em mim e nele. Chamei o Instituto de Criminalística, a polícia, aí me disseram que o cara era PM...", diz. "Fato é que não teve comportamento de policial".
Na vida real, quando uma pessoa aponta arma para a outra, não tem suspense ou música de fundo como no cinema. É atirar ou morrer. "Eu sei que matar e morrer é um risco inerente à minha profissão, mas na prática a coisa é muito diferente. Fiquei mal", afirma. "Eu não sei se ele ia matar alguém lá dentro, mas estava com o dedo no gatilho e apontou para mim, na frente de todo mundo. Não deu tempo para nada".
Foi nessa época que Karla e Nelson decidiram se mudar para Praia Seca, em Araruama. Ela conseguiu ser transferida para a delegacia da área. Lá, fizeram novas amizades com pessoas em busca de uma rotina de paz e tranquilidade num lugarejo marcado pela presença de pescadores e aposentados. Nessa época, ela se formou em Direito numa faculdade particular em Cabo Frio e empreendeu uma busca espiritual. “Só me fez bem", diz. Nelson, ex-mecânico de ar condicionados, continuou fazendo cursos de especialização e acumulando experiência no ramo petrolífero. Como trabalhava embarcado, poderia morar em qualquer lugar. Quando chegou 2009, ele queria um só lugar: voltar para o Rio. Era hora de ser pai.
Mesmo "na estrelinha', Nelson é uma referência para Caio. Karla fez questão de construir isso para o filho. Papai nadava, por isso ele vai nadar também. Histórias do passado são contadas e recontadas para explicar a vida que permitiu a Caio nascer.
Caio é oficialmente filho de Nelson desde janeiro de 2012. O caminho até a mudança na certidão de nascimento foi árduo. Karla precisou fazer dois exames de DNA no menino. O indesejado conflito com os sogros, autores dos pedidos que complicaram o processo pelo reconhecimento da paternidade, esgarçou os laços dessa relação. Com os cunhados e cunhadas, em compensação, a aproximação só aumentou.
Caio - Batman - Famílias inspiradoras (Foto: Arquivo pessoal)
Marx, irmão mais novo de Nelson, e sua mulher Tânia, com os filhos Vítor e Léo, são "a família" de Caio. Sentiram muito a morte de Nelson e ficaram emocionados com a gravidez. Pediram para participar desde o início e compõem, com a dinda Luciana ou "mãe dinda", como Caio fala de vez em quando, o círculo de amor em torno desses dois. São eles que aparecem para cobrir Karla quando ela dá plantão ou precisa de ajuda. Sem falar no vira-lata Toussaint, o outro filho de Karla. Esse arranjo familiar existe graças a comprometimento e amor. "Luciana é muito presente, desde a gravidez, quando me levava às consultas e me ajudava com questões práticas como enxoval. Nada daquilo eu havia planejado para mim, obviamente, mas desamparada, nunca me senti. Estava acolhida pelos amigos", diz.
Graças a uma declaração de vida marital que Karla e Nelson haviam registrado em 1998, ela foi imediatamente reconhecida pela seguradora da Air France como viúva de Nelson. Com o dinheiro da indenização, construiu uma casa de três quartos num bairro da Zona Oeste do Rio, onde mora com o filho.

O corpo de Nelson foi resgatado das cadeias montanhosas submarinas, a mais de 4 mil metros de profundidade, dois anos depois do acidente, em 2011, na última expedição empreendida pela Air France na tentativa de encontrar todas as vítimas. Cinquenta nunca foram achadas. No mesmo ano, Karla foi a julgamento e saiu absolvida pelo tribunal do júri. Ficou caracterizada legítima defesa e até a Promotoria pediu sua absolvição. No dia 7 de novembro de 2011, a família fez uma cerimônia para enterrar Nelson. Era o fim de um capítulo triste da história de Karla, mas outro bem animado já tinha começado.

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