quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Noites de inverno


Em julho e agosto, calor humano é mais que uma metáfora

IVAN MARTINS
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IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA (Foto: ÉPOCA)
É difícil sair da cama nas manhãs de julho. Do lado de fora do edredom há um mundo gelado e hostil. Do lado de dentro, calor e aconchego. Em outras épocas do ano isso talvez não fique tão claro, mas, no inverno, estar sozinho é uma forma diária e refinada de castigo. E a companhia do outro, que às vezes pode parecer supérflua, revela-se como coisa física e essencial. Em julho e agosto, calor humano é mais que uma metáfora. 
Tenho a impressão, às vezes, que a nossa vida é composta de essencialidades subestimadas. O calor do corpo humano no inverno é uma delas. O prazer da companhia do outro quando se chega em casa, é outra. Sentar no sofá e ver televisão quase em silêncio, falando sobre as miudezas do dia. Ir mais cedo para a cama pelo prazer de estar lá, lendo ou namorando. Saltar da cama com pressa, para aproveitar, a dois, uma manhã ensolarada. Dormir até mais tarde, sem urgência alguma, para desfrutar um sábado friorento. 
 
A gente não aproveita o suficiente essas coisas, eu acho. Um tempo enorme do nosso convívio é gasto ralhando com o outro sobre que ele ou ela fez de errado, ou se queixando do que o mundo lá fora fez com cada um de nós. Outra parte imensa do nosso tempo é perdida em tristezas sem razão, em suspeitas sem fundamento, em angústias de origem desconhecida, em culpas que nos perseguem como assombrações sem solução. A gente não gasta tempo suficiente com o corpo do outro, com o coração doce do outro, com a menta inquieta e criativa do outro. A gente não aproveita o outro como poderia, eu acho. 
Talvez haja armadilhas na nossa natureza humana que atrapalham na hora de ser feliz. Uma delas é o hábito, associado ao desprezo pelos detalhes. O que está lá todo dia deixa de nos fazer feliz. Pequenas coisas que fazem a diferença na nossa vida também podem passar sem ser notadas. Algo dentro de nós clama por grandeza e novidade, de preferência todos os dias. Como se fosse possível, ou mesmo desejável, viver uma aventura a cada 24 horas, reinventar a vida a cada volta do relógio. Mas é isso que uma parte de nós reclama – ela quer novidades, confusão, heroísmo e lágrimas. Exige movimento e agitação como sinônimo de vida. O cotidiano suave e amoroso é percebido como a chatice a ser combatida.
Às vezes eu acho que isso é um problema neurológico. Ele impede centenas de milhões de pessoas de ficarem em paz com as coisas legais que estão ao redor delas. Em lugar do gozo, o problema neurológico instala dentro de nós os mecanismos da inquietação e da queixa. Em lugar da satisfação, a angústia. Evidentemente isso não acontece com todo mundo, mas quando gente assim você conhece? Quanto de você mesmo não é assim? 
Talvez seja uma coisa evolutiva. Vai ver que a felicidade – ou qualquer estado de contentamento e acomodação – é negativa no longo prazo. Vai ver que nós, humanos, precisamos estar ansiosos o tempo inteiro para nos mantermos vigilantes, atentos contra os riscos. Sempre em movimento, sempre famintos. Como está na moda explicar tudo com base na evolução da espécie, fica aqui a minha modesta contribuição para o darwinismo social: haveria um gene da infelicidade que zela pela sobrevivência de longo prazo da nossa espécie? 

Na verdade, acho os determinismos biológicos bobagem. Tenho a impressão de que nós, coletivamente, escolhemos como queremos viver. É cultural. Nas últimas décadas, muitos de nós preferimos a inquietação em oposição à quietude. Nós escolhemos viver como bichos insatisfeitos em vez de viver como bichos felizes. Não nos educamos para apreciar as felicidades tranquilas da vida cotidiana. Talvez porque elas nos assustem. Talvez porque uma vida serena e repetida nos lembre estagnação e morte. Talvez porque os nossos valores sejam o do grande romance ocidental, em que sexo, romance e aventura culminam em uma morte dramática e prematura, como em Romeu e Julieta. 
Qualquer que seja a razão, não nos preparamos para apreciar os prazeres cotidianos. Estamos sempre olhando para fora de um jeito sonhador, ou para dentro de uma forma exageradamente crítica. Assim cultivamos a insatisfação e a infelicidade. Assim perdemos os melhores momentos da vida dos outros, e da nossa. 

Por isso eu gosto tanto da parte de dentro do edredom nas noites de inverno. Ela confere uma dimensão material e concreta aos nossos compromissos. Ela traduz, de forma gostosa e protetora, as nossas opções afetivas. Mostra que somos capazes de escolher, partilhar e proteger. Que sabemos apreciar o prazer e o conforto do nosso convívio. Ela é uma metáfora quentinha de uma parte importante e subestimada de nós – aquela que precisa do outro, que gosta do outro, que tem prazer na presença e no convívio com o outro. Aquela parte de nós que prefere ser feliz a reclamar.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)

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