quarta-feira, 25 de julho de 2012

Sincericídio


As coisas que a gente revela, mas não deveria

IVAN MARTINS
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IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA (Foto: ÉPOCA)
Sem mais nem menos, você sonhou que duas ex-namoradas estavam no banco de trás do seu carro, se beijando. A cena é bonita e você acorda, feliz, para encarar sua linda mulher bocejando de sono. Faz o quê: divide com ela o seu entusiasmo com a fantasia inconsciente? Aproveita e diz que foi a segunda vez, em menos de dois meses, que você sonhou com a Fulana?
Você pode fazer as duas coisas ou apenas uma delas, mas saiba que essa atitude tem nome. Chama-se sincericídio - o ato de contar verdades íntimas que têm potencial para criar problemas no seu relacionamento.
 

OK, se você é uma mulher ou um homem maduro, que vive ou namora com uma pessoa igualmente madura, esta coluna não é exatamente para você. Gente madura talvez possa contar ao parceiro tudo o que sente, sem restrições e sem receios. Mas a maior parte dos casais está longe de ser assim bem resolvido. A maioria vive a dificuldade essencial das relações modernas, nas quais o anseio diário por liberdade e sinceridade esbarra - dia sim, dia não - nos limites da personalidade e da insegurança de cada um. É para esses leitores normais que a coluna de hoje se destina. 
Eles sabem que nem sempre é fácil calar a boca, mas é necessário.
Depois de algum um tempo de relacionamento, os homens começam a achar que aquela gata de pernas lisinhas ali ao lado virou seu brother. Aparece uma mulher bonita na novela e o sujeito vibra: “Como ela está gostosa, hem?!” Os dois estão numa festa, entra a amiga dela num pretinho mínimo, e o cara não se aguenta: “Por que você não chama ela para jantar com a gente?” Isso sem falar das ex, que constituem um capítulo à parte. Alguns homens tendem a exibir enorme intimidade com as mulheres que passaram pela vida deles. Falam delas com carinho, desenvoltura e conhecimento de causa. Para eles é tudo inocente e natural, mas para as mulheres deles não parece nada disso. Elas acham desconcertante.
 
Antes que me acusem de abraçar sem ressalvas o ponto de vista feminino, um reparo: as mulheres também sabem ser sincericidas. Elas tomam um copo a mais de cerveja e se põem a discorrer, na frente do namorado, sobre os dotes masculinos do jovem colega de trabalho. “Nota nove!” É claro que uma bobagem dessas não deveria irritar um macho seguro, mas frequentemente o macho não é assim tão seguro, e se melindra. Ele tampouco gosta quando a moça, insistentemente, se põe a elogiar um tipo muito popular entre as mulheres, que ambos conhecem. Ele diz algo negativo, ela sai em defesa. Ele faz uma crítica, ela contesta. Ela está sendo apenas sincera, mas, na terceira vez que acontecer, o sujeito vai estar com as orelhas em pé. 
Isso tudo, claro, está no terreno das miudezas contornáveis. Casais bem-humorados podem discutir as gostosas e os bonitões da TV sem o menor problema. Também podem rir das tolices reveladoras que um e outro dizem em público, movidos pela mistura de álcool e libido. Com algum convívio e confiança, são capazes de ultrapassar até a barreira das ex e dos machos alfas, tratando isso como se fosse uma pequena inconveniência contornável, que na verdade é.

O que me preocupa é outra espécie de coisa, mais grave.
O sincericídio digno desse nome consiste em dizer coisas que o outro não precisa e não deve ouvir. Aquilo que é, por definição, inconfessável, mas que as pessoas às vezes falam, movidas por um impulso autodestrutivo ou de agressão ao outro. Elas podem, no meio de uma discussão, fazer críticas ao caráter do parceiro que são irreversíveis. Quando se conhece alguém por dentro, a gente sabe das falhas, conhece as fraquezas, mas gosta assim mesmo e deveria calar a boca sobre os detalhes. Mas às vezes a gente fala e arrebenta tudo. Isso é sincericídio. 

Sincericídio é também expor o seu desejo ao parceiro como se fosse um ovo de Páscoa aberto sobre a mesa. Ninguém é tão seguro a ponto de conviver com essas coisas. Nossa mente não tem censura e nem preocupação pelo outro. Ela produz desejos que pertencem apenas a nós mesmos e que nos cabe administrar em silêncio. Talvez em companhia de amigos ou do analista. Despejar sobre o parceiro a torrente de fantasias que a mente cria nos sonhos ou na rotina massacrante do trabalho é apenas uma forma de sadismo. Ele não precisa saber. Ela pode viver perfeitamente sem esse conhecimento.

O contrário do sincericídio é a mistura de honestidade e carinho pelo outro. A gente diz o que pensa, mas protege de informações que machucam e não têm implicações sobre o presente. A gente conta o que é importante, mas não vai afogar o outro em pequenas vaidades ou atribulações. O que você fez no passado, por exemplo, para que dividir? Às vezes a sinceridade é apenas uma forma de exibicionismo. A atração que você sente por Sicrana ou por Beltrano, guarde para você. O galanteio que você ouviu do colega ou o sorriso que ele ganhou da secretária mais bonita do prédio, quem realmente quer saber? A nossa vida não precisa ser um jornal que o outro recebe toda manhã, cheio de noticias. Dividir a vida e dizer a verdade não é sinônimo de contar tudo o que nos acontece ou passa pela nossa cabeça. Isso é sincericídio. E talvez seja burrice.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)

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