A pequena tragédia de um homem comum diante do exame de colesterol
A notícia veio em um exame de rotina, aberto na página do laboratório na internet enquanto tomava um chocolate quente. Na verdade, leite com um chocolate em pó cheio de porcarias que ele toma desde a infância e, por isso, aos 43 anos, é uma fonte de alegria permanente na prateleira da cozinha. Quando bateu na minha porta, os olhos escancarados, avisando que tinha uma má notícia, eu pensei logo em câncer. No nosso tempo, é o que a gente sempre pensa, mesmo que não diga. “Meu colesterol está alto”, ele disse. “Muito acima do péssimo.” Amoleci inteira e até esbocei um sorriso. “Ah, mas isso não é tão grave.” Mas era. Eu não fui capaz de perceber logo, mas era a primeira morte de meu melhor amigo.
Não era uma doença incurável, não era um drama humanitário, não era nada que alterasse a ordem do mundo. Era só a pequena tragédia dele. Comezinha e cotidiana. A tragédia de um homem comum, com uma vida comum, que sentia a primeira fisgada do fim.
No percurso de uma vida, quando temos a sorte de ter uma existência longa, passamos por várias pequenas mortes e renascimentos. É importante que partes de nós morram para que outras possam nascer – ou apenas para que esses pedaços mofados de nossas crenças sobre nós ou da crença de outros sobre nós saiam do caminho. É triste quando alguém é uma coisa só a vida toda – perdendo a chance de acolher todos os outros de si. Quando alguém anda pela vida apertado em uma roupa que nunca lhe serviu direito, mas que foi vestida nele ou nela por seus pais ainda na infância, como se fosse o único modelo que lhe coubesse.
É importante que, em algum momento, de preferência mais cedo do que tarde, a gente descubra que essa roupa não serve – ou que apenas algumas partes servem e outras precisam ser jogadas fora, para que novas possam ser inventadas. É essencial que nos libertemos dos dogmas impingidos sobre nós para podermos criar uma vida que faça mais sentido – e para nos sentirmos livres para recriá-la o tempo todo. O olhar do outro sobre nós, a começar pelo dos nossos pais, às vezes é redenção, em outras é prisão, em geral é ambos.
Por isso me parece que uma vida é mais rica quando morremos e renascemos muitas vezes. Mas esta é a existência psíquica, é o que se passa em nossas porções invisíveis, naquela parte da nossa geografia que não se pode tocar com as mãos. Poucas coisas ou nenhuma são mais assustadoras do que ousar se libertar de um jeito de ser cujo funcionamento conhecemos. Porque ainda que esse jeito nos sequestre o desejo, nos parece mais seguro do que enfrentar o vazio de descobrir formas de viver mais próximas de nossos anseios. Mas, se tivermos essa coragem que anda de mãos agarradas com o medo, nós nos responsabilizamos pelas nossas escolhas, seguimos e criamos e morremos e renascemos. Muitas vezes.
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Em algum momento, porém, o corpo anuncia uma morte da qual não é possível renascer. A rigor, começamos a morrer desde o nascimento. De fato, nosso declínio físico começa aos 20 e poucos anos, mas esses sinais podem ser ignorados. E são. Por volta dos 40 – um pouco depois, para quem tem mais sorte, um pouco antes, para quem tem mais azar –, recebemos a notícia da primeira morte que não podemos ignorar. A primeira morte do corpo.
Foi o que aconteceu com meu melhor amigo. Para não morrer nos próximos anos de enfarte ou AVC por causa das artérias entupidas de gordura, ele matou com um só golpe um mundo inteiro dentro de si. Não é uma mera mudança de hábitos, como médicos e nutricionistas tentam nos convencer em consultas, reportagens e sites da internet. É um mundo inteiro que se extingue como se o Sol explodisse de repente, muito antes dos bilhões de anos calculados pelos astrônomos. Para quem vive nesse planeta, é uma hecatombe. Para a imensidão do universo, é um nada, estrelas morrem o tempo todo sem que a ordem da vida dos outros se altere.
Para o planeta humano que é meu melhor amigo, foi uma hecatombe. Acabaram-se as feijoadas, o churrasco, a pizza, o hambúrguer, a batata frita, os pastéis, os bolos, os bolinhos, as tortas, os chocolates. Mas não só. Encerrou-se a possibilidade de renovar a qualquer momento a memória de uma vida de afetos: a receita de bacalhau da mãe que morreu, a torta de morangos que só a sogra sabe fazer, o feijão gordo que a mulher prepara toda quinta-feira e havia se tornado um acontecimento, a noite com o amigo de infância recheada de cumplicidade, chope e frituras.
Acabou-se a possibilidade de degustar territórios ainda não desbravados. As experiências gastronômicas com um amigo chefe de cozinha. O acesso às dores de alma e as alegrias de outros povos e terras através da comida, dos ingredientes e dos temperos, que o instigavam a jamais perder nenhuma chance de viajar. Suas próprias invenções com as panelas que reuniam os mais próximos em alegres descobertas na mesa da cozinha. Agora, ele terá de recusar pratos em almoços e jantares – e será um problema na cozinha alheia.
Um mundo dentro do mundo morreu em um segundo. E a notícia dessa morte o lembra o tempo todo de que é só a primeira das muitas que virão. “Tenho medo de morrer de repente”, ele diz. Porque sente que uma parte dele teve morte súbita tendo ele mesmo por testemunha. “Eu não fumo, não uso drogas, só bebo em ocasiões especiais”, ele diz, traído. Eu quase digo: “A vida não dá garantias”, mas me contenho a tempo.
Sei que dentro dele toca o réquiem de Verdi, dramático e grandiloquente, mas só ele escuta. Porque sua tragédia é prosaica, acontece com muitos, não é notícia nem na família. Ele é só mais um homem diante do parapeito da ponte – sem vontade de atirar-se dali, mas apavorado porque um dia vai estar lá embaixo.
Pesquisamos juntos na internet, tentamos inventar receitas, descobrir novos ingredientes, criar um mundo novo dentro do universo restrito ao qual ele foi confinado. Cheiramos desconfiados uma linguiça de soja, passamos retos pela manteiga, enchemos o carrinho de coisas verdes. Depois vamos ao cinema para esquecer seu pequeno drama diante da grandeza do drama maior de um outro, mas quando estaqueamos diante da pipoca, o luto desce sobre ele, inexorável. Sabemos que é preciso aceitar essa morte, assim como todas que virão, com o excesso de perdas que ela contém. Em geral não se morre de uma vez só, mas aos poucos. E é o corpo que nos ensina a brutalidade dessa verdade.
O colesterol não encolheu apenas a largura das artérias de meu melhor amigo, mas também a largura da sua vida. Ele sabe que não pode escapar dos limites impostos pelo corpo. Pode, como todos nós, no máximo adiá-los. No exame do laboratório o tal do LDL avisa que a juventude, aquele tempo no qual era possível fingir que não havia limites, acabou. Mas a gordura que entulha as artérias de meu melhor amigo não lhe obstrui o espírito. Porque morreu e nasceu muitas vezes ao longo de seus 43 anos, há nele uma vida dentro da vida que se amplia também nesse choque com os limites. Enquanto o corpo falha, sua mente recolhe suas lágrimas, sua surpresa e sua dor e os transforma em uma experiência a mais.
Sempre foi assim, afinal. É no confronto com a miséria da condição humana que produzimos o melhor do humano. Condenados eternamente ao fracasso de nosso embate com a morte, inventamos essa vida dentro da vida. Que, se tivermos a ousadia de morrer e nascer várias vezes no espaço de uma existência, será uma vida maior que a vida.
Não tenho dúvidas de que meu melhor amigo seguirá suspirando de saudades de uma picanha gorda ou de um feijão com costelinha de porco. Mas, nesse último final de semana, ele já havia colado um cartaz patético na cozinha, com imagens suas de a.C. e d.C. – “C” não de Cristo, mas de colesterol. Estava entrouxado de roupas porque acreditava que os 100 gramas que tinha perdido desde que abriu o exame tornaram-no “mais friorento”. E tentava inventar uma maionese caseira sem ovos nem óleo.
Soube então que estava salvo. Não do colesterol, mas de algo muito pior: uma vida pequena.
Eliane Brum escreve às segundas-feiras.
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