segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Lições da antiga Europa


Por Marcos de Barros Lisboa | Para o Valor, de São Paulo
Em 1688, o bispo de Londres e seis pares da Inglaterra, afirmando escrever por 19 de cada 20 pessoas do reino, enviaram uma carta ao príncipe William, da Holanda, declarando seu apoio à invasão da Inglaterra contra o reinado de James II. Após a fuga do rei, foi aprovado um ato do Parlamento delimitando os poderes e a coroação de William e sua mulher, Mary, filha de James II; a novidade de uma monarquia com dois regentes e de um acordo com princípios e restrições para a assunção ao trono.

A Revolução Gloriosa foi elogiada por conservadores, como Edmund Burke, pelo resgate das tradições, e criticada por Karl Marx, como um golpe orquestrado pelos interesses do Parlamento. O termo revolução foi adotado pela analogia com o movimento dos planetas; deslocamento, porém com retorno à posição original. Um século depois, sua utilização para definir a queda da monarquia francesa foi criticada por Burke pela deturpação do sentido original. Ao fim, aceitou o novo significado, ainda que não o evento, caracterizado pela ruptura da ordem social. Sua crítica, entretanto, não significa a defesa intransigente do passado. As regras institucionais, segundo Burke, devem prever a possibilidade de mudanças; caso contrário, são incapazes de garantir a própria preservação.

A revolução, que afirma resgatar antigas tradições, revelou-se duradoura e parte do processo de modernização da Inglaterra, ao contrário de movimentos que se declaram revolucionários e terminam por confirmar a velha ordem. Douglass North e Barry Weingast, assim como historiadores recentes como Steven Pincus, atribuem papel crucial aos eventos de 1688, ainda que por razões distintas. Outros delimitam antes o começo das transformações. Existem menos controvérsias, porém, sobre a profundidade das reformas que se iniciam no século XVII, e das quais resultam a moderna economia de mercado e o Estado de direito.

A análise sobre as regras e os mecanismos para a adequada intervenção pública não deve ficar restrita à oposição entre setor público e mercado


A transformação institucional da Inglaterra consolidou a independência do Judiciário, o papel do Parlamento na formulação de políticas e na autorização para criação de impostos. Foram adotados novos procedimentos, incluindo a criação do Banco da Inglaterra, permitindo a expansão da dívida pública, que passou a ser paga regularmente.


A previsibilidade das regras (até mesmo para alteração das próprias regras), a garantia da execução dos contratos, os incentivos ao desenvolvimento dos negócios e as restrições às decisões discricionárias do Executivo foram fundamentais para a expansão econômica da Inglaterra.

O desenvolvimento do mercado de crédito viabilizou o crescimento da produção e do comércio. Companhias foram formadas, expandindo a renda e o emprego. A moda, à época, eram os cafés, onde muitos negócios acabavam por ocorrer, e uma das principais atividades era o comércio marítimo. E um novo instrumento: pagamento por navio; em caso de naufrágio, a indenização pelo perdido. O Café de Lloyd acabou por originar tantos contratos para embarcações que nomeou o mercado inglês de seguros.

O processo progressivo de reformas iniciou a moderna economia de mercado, assim como suas crises eventuais, como o estouro da bolha em 1720 dos títulos da Companhia das Ilhas dos Mares do Sul.

Porto de Santos: reformas no setor portuário podem favorecer a redução dos custos dos serviços e implicar ganhos de produtividade para os demais setores


As reformas institucionais inglesas sistematizam a melhor conjectura disponível para as perguntas formuladas pelo contemporâneo de Burke, Adam Smith: por que alguns países são mais ricos do que outros? Por que a renda cresce de forma desigual entre as nações? Até o fim do século passado, havia poucas respostas para além do relato de histórias específicas. Fatores aparentemente bem-sucedidos em alguns casos fracassavam em outros, melhor revelando os preconceitos de quem os relatava do que respondendo às perguntas de Smith.
Nas últimas duas décadas, surgiram bases de dados bastante completas, com informações desde meados do século XX sobre uma centena de países, que permitiram uma nova abordagem: usar a estatística para testar conjecturas e fatores correlacionados com o desenvolvimento dos países; tratar as políticas para o crescimento econômico como tratamos a saúde de nossos filhos, escolhendo os melhores procedimentos conhecidos, ainda que se saiba que seu sucesso ocorreu na maioria dos casos, mas não em todos. Melhor, portanto, do que as demais opções, ainda que, no futuro, novas evidências possam indicar outros caminhos.

Os testes sobre as causas do desenvolvimento dos países indicam as instituições como a melhor resposta à pergunta de Smith. Maior garantia dos direitos de propriedade dos credores aumenta o prazo médio dos empréstimos e reduz a taxa de juros. Boas regras para o mercado de capitais, agilidade do Judiciário e dos processos de resolução de conflitos, eficiência no processo de transformação da poupança em investimento e a existência de cadastro de crédito; todos esses fatores estão associados ao desenvolvimento dos países.

À medida que as restrições à gestão do investimento em infraestrutura forem superadas, poderemos aumentar a produtividade e induzir maior crescimento


Boas reformas institucionais resultam em ganhos de produtividade para o setor privado em decorrência dos menores custos de empreender, da menor insegurança jurídica na execução dos contratos ou da melhora dos instrumentos de crédito. O aumento de produtividade estimula um ciclo de crescimento econômico, resultando em maior renda por habitante.

Ainda que o desenho das instituições seja a melhor explicação disponível para a diferença de renda entre os países, sua forma deve ser adequada aos sistemas jurídicos e às características de cada país. Os princípios da lei de falências são similares quando bem-sucedida; no entanto, sua forma jurídica varia significativamente, até mesmo em países assemelhados como Inglaterra e Estados Unidos.

As estruturas, os mecanismos e incentivos que definem a interação das pessoas e dos grupos induzem ações que devem ser consistentes com a expectativa sobre como os demais se comportarão. Dirigir pela via principal em dias de congestionamento deve estar associado a algum tipo de sanção para os que trafegam pelo acostamento, nem que seja a recriminação pelos pares.

A análise das instituições permite uma abordagem mais cuidadosa sobre o papel do setor público na economia. Não há mercado eficiente sem Estado que garanta o cumprimento dos contratos e das regras acordadas. Em contrapartida, a iniciativa privada tem sido fundamental para a melhoria da qualidade de vida, incluindo a geração de renda e o desenvolvimento de novas tecnologias.

Na maioria dos casos, os mercados funcionam adequadamente com mecanismos que garantam o cumprimento dos contratos. Em outros, porém, regras adicionais são necessárias. Monopólios naturais, ou setores em que a competição é restrita por fatores estruturais, podem necessitar de regulação específica. A atuação pública, no entanto, deve ser cuidadosa, pois pode haver impactos inesperados, agravando, em vez de minorar, as falhas de mercado. São frequentes as políticas públicas com efeito inverso ao pretendido, que desejam fazer o bem e terminam por fazer o mal. Por isso, a necessidade de regras para a mudança, progressiva e cuidadosa, de compreender a origem das distorções e dos seus impactos. A complexidade das relações de mercado requer o cuidado que se utiliza ao experimentar um novo medicamento para combater uma doença.

O significativo aumento do custo da energia nas últimas décadas decorre da dificuldade em executar os projetos para a produção de energia barata e limpa


A análise sobre as regras e os mecanismos para a adequada intervenção pública não deve ficar restrita à oposição entre setor público e mercado. Há exemplos bem-sucedidos no provimento público de serviços de saúde, assim como malsucedidos. E há o mesmo contraponto quando os serviços são privados. Há países onde o privilégio de possuir recursos naturais administrados pelo setor público, como o petróleo, não resulta em benefício para a população. E há o caso bem-sucedido da Noruega. A forma da intervenção, os mecanismos de incentivo e controle, o detalhe, enfim, de como o processo é conduzido, parecem determinantes para o resultado.

O Brasil, nas últimas duas décadas, iniciou um longo processo de reformas institucionais, depois da conquista da estabilidade macroeconômica: a Lei de Responsabilidade Fiscal, criação e aperfeiçoamento dos instrumentos de crédito, melhora da eficácia da política social e dos mecanismos de mediação de conflitos. A maior agilidade na recuperação das garantias significaram menores custos para a intermediação financeira e, com a nova lei de recuperação de empresas, a queda quase à metade dos pedidos de falências em simultâneo a melhores condições para os empréstimos.

O crédito consignado reduziu as taxas de juros, expandiu o financiamento do consumo, além de ter aumentado a probabilidade de um indivíduo beneficiado ser empreendedor e contratar mais de um trabalhador. A alienação fiduciária reduziu a taxa de juros e ampliou o crédito. O financiamento privado de imóveis e do agronegócio expandiu-se desde as mudanças institucionais na década passada. A expansão do mercado de crédito permitiu o crescimento da produção, do investimento e da renda, inclusive nas regiões mais pobres, como o Nordeste.
Os entraves ao investimento em infraestrutura têm dominado os debates recentes sobre crescimento no Brasil. O significativo aumento do custo da energia nas últimas décadas decorre da dificuldade em executar os projetos para a produção de energia barata e limpa, como as hidrelétricas, sendo às vezes mais fácil a produção por métodos mais poluentes. Todos pagam pelos investimentos não realizados. Muitas vezes, o país termina por fazer escolhas ambientalmente equivocadas pela inviabilidade de executar com agilidade a decisão mais adequada.

A inexistência de processos claros para a decisão de investimento, do controle do processo e do ressarcimento das partes atingidas onera o custo social da infraestrutura, reduz sua expansão e aumenta o preço para o provimento de serviços essenciais. A ausência de marco regulatório adequado dificulta a eficiência do processo de autorização para os empreendimentos. Não estão bem definidos, em muitos casos, os requisitos necessários, os órgãos públicos responsáveis pela autorização e controle nem sua alçada ou os casos específicos em que devem atuar.

O setor de telecomunicações é um exemplo inverso. A boa definição das regras, alçadas e controles adequadamente delimitados permitiram a sua expansão, assim como o acesso da população a seus produtos e serviços, com custos bem menores do que há duas décadas.

Existem avanços similares a ser feitos em outros setores de infraestrutura, como transportes, portos e energia. Na medida em que esses avanços ocorram, novos investimentos podem ser realizados de forma mais eficiente. A redução dos custos desses serviços significa ganhos de produtividade para os demais setores da economia e, portanto, incentivo ao investimento e ao desenvolvimento econômico.

A revolução institucional inglesa foi profunda porque progressiva e cuidadosa. As reformas procuraram garantir o alinhamento dos incentivos privados aos benefícios sociais, atenta aos efeitos inesperados da intervenção pública, que, se tecnicamente equivocada, acaba por gerar efeitos inversos aos pretendidos.

Reformas similares, se realizadas com cuidado e atenção aos procedimentos e à técnica, podem permitir ao Brasil um novo ciclo de expansão, ajustado ao difícil momento da economia internacional. A grave crise, desta vez, está lá fora. Infelizmente, parecem se confirmar as previsões de que será profunda, reduzindo a expectativa de crescimento da economia mundial.

As reformas institucionais das últimas duas décadas permitiram o bom ciclo de crescimento recente do Brasil, em boa medida decorrente de razões domésticas, como, por exemplo, a expansão do crédito. Além disso, a melhoria dos fundamentos econômicos e institucionais amortece as consequências negativas da crise externa. À medida que as restrições existentes à gestão eficiente do investimento em infraestrutura forem superadas, poderemos aumentar a produtividade dos demais setores, induzindo um maior crescimento econômico. Cabe-nos fazer o melhor possível para fortalecer nossa economia e superar os entraves que são nossos apenas.

Marcos de Barros Lisboa é economista e trabalha no Itaú Unibanco

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