IVAN MARTINS
20/04/2016 - 08h42 - Atualizado 20/04/2016 08h46
A primeira vez que aconteceu foi há 10 anos. Estava ao telefone com uma moça, acertando sair no fim de semana, quando ela me disse, “ok, estamos pré-combinados”. Eu ouvi, não entendi, e perguntei o que aquilo significava. Ela se atrapalhou um pouco, mas conseguiu explicar que tínhamos um encontro “mais ou menos” marcado. Ele deveria ser confirmado na tarde do sábado, pouco antes do horário em que deveríamos nos encontrar.
Esclarecido, eu expliquei a ela o que ela estava realmente me propondo: “Você está dizendo que se não achar nada melhor para fazer até a tarde de sábado, sairá comigo no sábado à noite, certo”? Ela hesitou, eu ri, retirei o convite e encerrei a ligação, mais intrigado do que bravo.
Sempre tive essa história na conta de uma esquisitice que tinha me acontecido no trato com as mulheres. Pus a moça responsável pela proposta numa gaveta dedicada aos abilolados. Achei que nada parecido iria se repetir no futuro, mas estava errado. Nas últimas semanas, aconteceram duas coisas semelhantes.
Primeiro, marquei de jantar com uma moça que conheço faz um tempo. Quando liguei, perto da hora de nos encontrarmos, ela disse que já estava na rua, a caminho de outro compromisso inadiável. Pediu desculpas e insistiu que nos víssemos em dois dias, para almoçar. Contive a minha contrariedade e concordei. No dia do almoço, precavido, mandei uma mensagem três horas antes, para acertar o restaurante. “Ah, olha só, a cabeleireira abriu uma vaga e marquei um horário com ela. Vou furar de novo”, foi a resposta. Desta vez, nem respondi.
Se você está com pena e acha que as barbaridades terminaram, guarde suas lágrimas. Tem mais.
Na semana passada, combinei tomar uma cerveja com a amiga de uma amiga: sexta-feira, depois do trabalho. Conversaríamos quando ela saísse do escritório e decidiríamos o que fazer. Tudo certo? Nada. Chega a noite de sexta-feira, ela me chama por WhatsApp para contar que marcou “com um pessoal” na casa dela. Sério? Nós não tínhamos combinado de sair? “É, mas eu estou muito a fim de uma pessoa que vai lá, entende?” Ah, entendi. Só que não, né? Dei um esporro na cabeça de vento – mulher de 40 anos, vejam só - e fui cuidar da minha vida. A noite estava linda.
Contei as histórias para uma amiga que vai fazer 50 anos e ela puxou a navalha da ironia: “Quando você tinha 30 anos não tratavam você assim, né, gato”?
Verdade. Aos 30 anos eu estava casado e sofria apenas rejeição doméstica, causada por mau humor e dores de cabeça. Mas a minha amiga tem razão ainda assim. Gente jovem e bonita leva menos mancada. Acho que o Cauã Reymond não sabe o que é esse tipo de bolo. E duvido que a Camila Pitanga tenha esperado alguém por mais de cinco minutos. Na vida. Mas isso (além de ser piada) é apenas parte da explicação.
Tenho certeza que esse comportamento frívolo tem menos a ver com quem o sofre e mais com a cabeça de quem age assim. É um problema pessoal, que se insere num quadro coletivo. Faz parte dos tempos esquisitos que vivemos.
Parece que boa parte do mundo fez 10 anos de psicanálise ruim e concluiu que a única coisa que importa é sua vontade imediata. Os códigos de conduta que regem as relações pessoais são abandonados em nome do desfrute instantâneo: marquei com você, mas apareceu algo melhor, tchau! Estava com ela; mas pintou uma mulher irresistível, fui! Tínhamos um compromisso, mas deu vontade de fazer outra coisa, lamento!
As pessoas, na verdade, não sabem o que desejam, por isso oscilam em suas vontades feito pêndulo de relógio. Estão perdidas em meio a um surto geral de histeria que atinge homens e mulheres e rivaliza com o H1N1.
O cara acha bacana a moça com quem saiu na balada, mas, tão logo aparece outra mais bonita, ele tem vontade de trocar. Como não dá para fazer isso (embora uns caras tentem) ele fica emburrado, frustrado, e começa a tratar mal a moça que está com ele, porque a presença dela o impediu de ser feliz. Já presenciaram esse tipo de cena? É típica entre adolescentes de 15 a 60 anos.
Marcar um compromisso e mudar de ideia na última hora revela o mesmo mecanismo. Quando combina, a pessoa está curtindo a ideia de sair com Fulano ou Beltrana. Mas aí começam a aparecer outros programas, outras possibilidades, e aquele desejo inicial vai perdendo o foco e enfraquecendo, até que vira uma repulsa tediosa. Então a pessoa se evade.
Anote: sempre haverá uma coisa melhor a fazer para quem não sabe o que fazer, para quem não sente o que deseja.
Tenho a impressão que viramos um planeta de crianças mimadas. De várias cores, idades e religiões. Queremos tudo a cada instante, mas logo enjoamos do que quer que seja. Não existe uma norma clara e um limite ao nosso prazer. Podemos tudo e desejamos tudo, aqui e agora. Quando nos frustram, deitamos no chão, berramos e esperneamos, certo? Estranha encenação de vida adulta.
Também existe em nosso meio um sentimento permanente de solidão. Estamos cercados de gente, mas, ainda assim, um bicho de dentes enormes nos consome internamente. Nossa voz interior nos apavora. Então marcamos mais coisas, chamamos mais pessoas, combinamos de sair com mais desconhecidos – mas, lá no fundo, algo em nós se rebela contra as aspirinas inúteis. Na hora de aparecer, comparecer e estar presente, damos para trás, mudamos de ideia, corremos em outra direção: “Vou furar, desculpe”.
Apesar da falta de educação e dos filmes que se vai queimando no caminho, não haveria nada de errado com esse esse jeito de proceder se ele funcionasse para genuíno contentamento das pessoas que o praticam. Mas não funciona. Não me parece que as pessoas que agem assim sejam mais felizes do que as outras. No longo prazo, quem faz as coisas direito ainda se dá melhor. Quem respeita, cuida e se preocupa em manter compromissos, projeta uma imagem que atrai mais gente – e gente de melhor qualidade, com mais autoestima.
A decisão inconsequente de curto prazo, o trato leviano com os outros, isso tudo funciona para relações relâmpago, mas tem custo social elevado. Ao menos é isso que sugerem antropólogos e psicólogos. Eles dizem que vivemos numa sociedade de reciprocidades. Atitudes egoístas causam ressentimento e provocam isolamento, que é tudo o que as pessoas estão tentando evitar.
Mas isso tudo, francamente, é uma conversa longa demais para um problema simples.
A verdade é que gente que desconsidera os outros – qualquer outro - é apenas um saco. Quem marca e não vem, quem convida e não vai, quem fura, dá bolo e finge de morto não tem absolutamente nada a ver. Pode arrumar para si mesmo as desculpas que quiser, mas comete uma puta grosseria. É simples assim. Se os que agem dessa forma são 10% ou 70% das pessoas adultas, não faz a menor diferença: um monte de gente procedendo errado não fará o mundo dar certo, nem que isso vire a norma.
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2016/04/desculpe-vou-furar.html
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