quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Nós, os mesquinhos

IVAN MARTINS
26/02/2014 09h37

Cultura não é só música, literatura e ideias complicadas. Cultura é aquilo que a gente faz diariamente. Ela se manifesta na forma como pensamos, falamos e agimos. Ela se revela na forma como lidamos com o mundo. Existe uma cultura que é pessoal e exclusiva, mas boa parte daquilo que a gente chama de cultura é coletiva. É a cultura de um grupo de pessoas numa determinada época e lugar. Nossa cultura.
As regras do relacionamento se incluem nesse pacote. Aquilo que você e eu achamos intolerável ou bonito na vida de um casal é ditado pela visão do nosso grupo sobre como deve ser um relacionamento. Ela pode variar um pouco de homens para mulheres, de pobres para ricos e de cultos para incultos, mas existe, acima das diferenças de gênero e de classe social, uma espessa camada de concordância em torno do assunto. Há no Brasil uma cultura de relacionamentos com a qual nós todos nos identificamos, em alguma medida.
Outro dia, numa festa de aniversário repleta de amigos, a evidência desse fato me saltou aos olhos, da forma mais absurda.
Um rapaz que estava sozinho convidou uma moça que passava ao lado dele para dançar. Ela topou sem hesitar, mas o namorado dela, que esperava num canto, não gostou daquilo. Enquanto o estranho e a moça giravam e conversavam na pista, o namorado dava sinais de que iria explodir. O aniversariante, sentindo o clima tenso, achou necessário conversar com o namorado antes que a música acabasse. Explicou – vejam só – que o rapaz com quem a moça estava dançando era, além de um amigo querido, gay. O cara se acalmou, mas, uma hora depois, ainda podia ser visto no mesmo canto da festa, numa conversa tensa e interminável com a namorada pé de valsa. Uma DR daquelas.
Duas perguntas inevitáveis: se o dono da festa não tivesse percebido o drama em curso e não tivesse agido para desarmar a bomba, o que aconteceria? Segunda e mais grave pergunta: o que aconteceria se o rapaz que tirou a moça para dançar não fosse gay?
No finalzinho da festa, quando o casal em crise já tinha partido, sentamos, eu e os mais próximos, para tomar a saideira. Quando comentei o quase barraco que se armara na pista, criaram-se dois movimentos de opinião convergentes. O primeiro dizia que o namorado dera sinais de ser ciumento demais. Aquilo fora um exagero condenável. O segundo movimento, mais sutil, começava com a frase “mas também, né?”, e terminava expressando alguma simpatia pelo comportamento dele. Alguém disse textualmente o que todos pareciam estar pensando: “Eu também ficaria incomodada”.
Por isso eu comecei esta coluna falando sobre cultura. Embora todos tenham sentido que o namorado ciumento pisara na bola, ao mesmo tempo todos achavam compreensível a reação dele. No contexto da nossa cultura, alguém que tira para dançar uma pessoa acompanhada, mesmo numa festa de amigos, viola uma regra de propriedade. E quem aceita dançar com um estranho em frente ao parceiro ou à parceira se arrisca a provocar confusão. Descontados os excessos, nos parece natural que seja assim. A posse e o controle de um parceiro sobre o outro fazem parte da nossa cultura afetiva.
Sem me colocar distante disso tudo – é capaz que eu também ficasse incomodado – convido vocês a contemplarem comigo o absurdo da situação.
É terrível que uma mulher casada ou que tenha namorado não possa nem dançar com outro homem durante uma festa. É grave que um homem comprometido não possa nem olhar para uma mulher bonita sem despertar a raiva ou as ironias da parceira dele. Se prestarmos atenção a isso, veremos que as proibições mútuas incluem uma infinidade de outros verbos. Não podemos conversar, olhar, rir, jantar, encontrar, caminhar, viajar, telefonar, trocar emails... Faça a sua lista.
Cabe perguntar, na verdade, que parte da nossa vida ainda nos pertence depois que nos associamos a alguém. Ou, posto de outra forma: o que podemos fazer em companhia de outras pessoas sem a sensação de estar fazendo coisa errada – e sem o risco de provocar uma crise em nosso relacionamento? Pouco, ou quase nada.
Eu não tenho dúvida de que os controles mesquinhos empobrecem a nossa vida e os nossos sentimentos.
Tal como eu vejo, a nossa jornada através da existência deveria ser marcada por uma conquista cada vez maior de paz e liberdade. A gente começa um bebê cheio de medos e os vai deixando para trás, à medida que cresce. As relações controladoras representam o oposto desse crescimento. Elas reafirmam os medos infantis, as inseguranças primitivas. Eu preciso controlar o outro porque o que eu sinto por ele é tão forte que me deixa inseguro. Eu preciso controlar também porque tenho de medo de ele ou ela me exponha ao ridículo diante do grupo. Além de ser tremendamente inquietante, além de ser o contrário da paz, isso é o oposto dos sentimentos adultos. Em vez de independência, cultivo o controle e a dependência do outro por mim, que é uma forma de prisão para nós dois. Em vez de procurar a autonomia, passo a vida intimidado pelas opiniões do grupo, cortejando a aprovação do bando como se fosse um eterno adolescente.
Esse comportamento, embora aprovado pela cultura dominante, faz mal ao nosso convívio e à nossa personalidade. A posse e o controle do outro nos transforma em pessoas muito piores do que poderíamos ser – e, lá no fundo, nós percebemos isso, na forma de um mal estar inexplicável. Só imbecis e psicopatas se orgulham de manter alguém preso a uma corrente. Só doentes rejubilam em exercer controle sobre outro ser humano. A maioria de nós convive dolorosamente com a contradição entre nosso potencial para a liberdade e as regras de uma cultura que nos transforma em vítimas e algozes das pessoas que amamos.
Os limites que a gente impõe à vida do parceiro são uma espécie de cerca que impede a nossa própria liberdade – e causa tremenda dor. Por isso é importante questionar a cultura a nossa volta. Por isso é essencial olhar criticamente para o comportamento dos outros e para o nosso. Não se pode permitir que coisas erradas se perpetuem, por serem corriqueiras e banais. Ao contrário dos bichos, cujo comportamento é todo codificado pelos genes, nós vivemos num mundo regido pela cultura, infinitamente mais flexível. Ela pode mudar em uma geração. Ela pode mudar depois de amanhã, se houver uma revolução súbita nos costumes. Ela pode começar a mudar agora, na nossa cabeça, no exato instante em que percebemos que a vida pode ser melhor se desistirmos de controlar e vigiar como crianças assustadas.

Ivan Martins escreve às quartas-feiras.

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