quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A Paixão Segundo G.H

De Clarisse Lispector

estou procurando, estou procurando. Estou tentando 
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas 
não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, 
tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me 
aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a 
saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar 
desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque 
saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso 
prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no 
que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o  
tinha, e sei que não tenho capacidade para outro. 
Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei 
perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser - 
se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo 
inteiro terá que se transformar para eu caber nele. 
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é 
mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma 
terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que 
fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E 
voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca 
tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é 
que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta 
e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por 
mim mesma, e sem sequer precisar me procurar. 
Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta 
minha nova covardia - a covardia é o que de mais novo já me 
aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um 
campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la -, na 
minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de 
um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É 
difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei 
depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de 
novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma 
idéia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu 
me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de 
construção que era viver. A idéia que eu fazia de pessoa vinha de 
minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e 
agora? estarei mais livre? 
Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de 
novo penso porque tenho por objetivo achar - e que por segurança 
chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de 
saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de 
entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei 
para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado 
levar, a menos que soubesse para o quê. 
Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha 
montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar  
perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o 
que não entendo quero sempre ter a garantia de pelo menos estar 
pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como 
é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em 
relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se 
explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o 
que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só 
porque a vida não é o que eu pensava e sim outra como se antes 
eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal 
desorganização? 
E uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos 
sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas 
construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a 
um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz 
porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era 
bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a 
esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O 
medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que 
não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o 
sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade. 
No entanto na infância as descobertas terão sido como num 
laboratório onde se acha o que se achar? Foi como adulto então 
que eu tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a 
coragem infantil de me perder? Perder- se significa ir achando e 
nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que 
andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não 
sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas 
enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia, 
aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira? 
Ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão 
habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É? 
Também , também. 
Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi 
minha formação humana. Não sei se terei uma outra para 
substituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não 
usar superficialmente uma nova terceira perna que em mim 
renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de uma 
verdade Mas é que também não sei que forma dar ao que me 
aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a 
realidade é mesmo que nada existiu?! Quem sabe nada me 
aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só 
acontece o que eu compreendo - que sei do resto? O resto não 
existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas 
uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa 
desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma 
forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à 
substância amorfa - a visão de uma carne infinita é a visão dos 
loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos 
dias e pelas fomes - então ela não será mais a perdição e a 

loucura: será de novo a vida humanizada. 

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