ISABEL CLEMENTE
01/12/2013 10h47 - Atualizado em 02/12/2013 11h10
- Mamãe, filho dá trabalho?
Enquanto eu tentava manter a pequena de 4 anos sentada quieta no meu colo, sem vomitar, escrutinei o rosto da filha mais velha atrás de algum traço de deboche. Não encontrei.
Estávamos engarrafadas, dentro de um táxi, havia mais de uma hora. Minhas filhas já tinham brigado para não botar o cinto, tirar o cinto, pelo lugar do meio, pela janela, pelo meu colo e porque uma não queria que a outra cantasse a mesma música que uma estava cantando. Eu não percebia nenhum esboço de simpatia ou solidariedade do taxista pelo retrovisor, o que me deixava preocupada.
“Vai nos expulsar, a qualquer momento“, eu pensava.
“Quando eu crescer NUNCA vou ser taxista. É muito chato“, disse a menor, num rompante de futurologia enquanto observava o engarrafamento.
“Agora danou-se“, pensei. “Vai nos botar pra fora“.
Mas ele não nos expulsou e a coisa ainda piorou quando a pequena ameaçou vomitar.
“Se ela vomitar, eu vomito também“ - disse a maior.
E agora ela queria saber se filho dá trabalho. Ironia. Só pode ser.
“Só dá trabalho no táxi“, respondi.
Letícia deu pra isso aos 8 anos de idade. Volta e meia me pergunta, no meio de uma confusão, se filho dá trabalho. Eu não sei se ela está querendo me fazer rir para aliviar a tensão ou se de forma deliberada testa minha sinceridade no meio do caos.
>> Mais colunas de Isabel Clemente
Numa outra vez, estávamos jantando num shopping, a família toda. Fui solicitada a acompanhá-la ao banheiro. Quando deixávamos o restaurante, a caçula foi acometida da mesma urgente necessidade e correu atrás de nós. É contagioso, não sei se vocês sabem isso. Lá fomos as três para o banheiro família, enquanto meu marido guardava os pratos pela metade.
No caminho, ouvi reclamações de "tá frio", "meu pé tá doendo", “quero colo“. Levantei a menor do chão umas três vezes, enquanto a outra pedia urgência.
- Carol, você não estava apertada? Quer sair do chão?
Mesmo com pressa, elas andavam em zigue-zague e implicavam uma com a outra.
No banheiro, forrei primeiro o vaso sanitário para a maior enquanto dava ordens expressas para a pequena.
- Não en-cos-ta em na-da.
Bastou um minuto, e ela resolveu limpar com a mãozinha uma sujeirinha na tábua.
- CAROL!!! Eu disse pra não encostar, que porcaria! Vai-lavar-a-mão!
Enquanto eu forrava, ela tentou me ajudar, jogando sem querer metade dos papéis dentro da privada. Ai.
- Filhinha...não precisa, vailavarasmãosporfavor? - digo, segurando a irritação.
E lá foi ela lavar as mãos, os braços, a camiseta...
- Molhou um pouco, mamãe...
Foi a vez da mais velha perguntar:
- Mamãe, ter duas filhas dá muito trabalho? - quis saber Letícia, depois de assistir ao circo todo.
Minha mente esqueceu por um instante essa aventura recorrente em banheiro público e me transportou para aquelas manhãs em que eu nunca sei se é melhor me arrumar para trabalhar e arrumá-las para a escola depois, correndo o risco de terminar toda essa faina suada. Ou, pensando bem, se é melhor deixá-las prontas primeiro, indo me arrumar, sabendo que terei pelo menos um penteado para refazer. E fazer um penteado é um exercício aeróbico com alta queima de caloria. Requer destreza e paciência, sobretudo com cabelos finos e lisos.
- Só dá trabalho para ir ao banheiro do shopping e pentear os cabelos - respondi, piscando um olho e apontando para a irmã meio molhada meio prestando atenção na nossa conversa.
Numa outra noite, depois de uma hora tentando fazer a caçula jantar, percebi o olhar inquisidor pra cima de mim.
- Já sei, você quer saber se filho dá trabalho.
- Não quero não. Filho dá muito trabalho!
- Mas me faz rir também - comentei - antes de propor uma terapia coletiva do abraço para eu sublimar uma hora e meia de criança cansada chorando no meu ouvido.
Deu certo. O abraço dissipou a nuvem pesada do cansaço que nos rodeava, a pequena começou a rir da mais velha e vice-versa e eu respirei fundo. Quando meu marido chegou do trabalho, meus ouvidos estavam enxovalhados, mas ele nem percebeu. Eu voltava ao normal.
- Nas últimas duas horas, Carol deve ter chorado por uma hora e meia. Só parou quando eu deixei ela ficar chapada no carrinho dormindo.
- Chorou tanto por quê?
- Começou porque queria comprar chocolate na cantina daí...consigo me lembrar de uns seis motivos. Você quer que eu liste todos?
Enquanto eu tentava manter a pequena de 4 anos sentada quieta no meu colo, sem vomitar, escrutinei o rosto da filha mais velha atrás de algum traço de deboche. Não encontrei.
Estávamos engarrafadas, dentro de um táxi, havia mais de uma hora. Minhas filhas já tinham brigado para não botar o cinto, tirar o cinto, pelo lugar do meio, pela janela, pelo meu colo e porque uma não queria que a outra cantasse a mesma música que uma estava cantando. Eu não percebia nenhum esboço de simpatia ou solidariedade do taxista pelo retrovisor, o que me deixava preocupada.
“Vai nos expulsar, a qualquer momento“, eu pensava.
“Quando eu crescer NUNCA vou ser taxista. É muito chato“, disse a menor, num rompante de futurologia enquanto observava o engarrafamento.
“Agora danou-se“, pensei. “Vai nos botar pra fora“.
Mas ele não nos expulsou e a coisa ainda piorou quando a pequena ameaçou vomitar.
“Se ela vomitar, eu vomito também“ - disse a maior.
E agora ela queria saber se filho dá trabalho. Ironia. Só pode ser.
“Só dá trabalho no táxi“, respondi.
Letícia deu pra isso aos 8 anos de idade. Volta e meia me pergunta, no meio de uma confusão, se filho dá trabalho. Eu não sei se ela está querendo me fazer rir para aliviar a tensão ou se de forma deliberada testa minha sinceridade no meio do caos.
>> Mais colunas de Isabel Clemente
Numa outra vez, estávamos jantando num shopping, a família toda. Fui solicitada a acompanhá-la ao banheiro. Quando deixávamos o restaurante, a caçula foi acometida da mesma urgente necessidade e correu atrás de nós. É contagioso, não sei se vocês sabem isso. Lá fomos as três para o banheiro família, enquanto meu marido guardava os pratos pela metade.
No caminho, ouvi reclamações de "tá frio", "meu pé tá doendo", “quero colo“. Levantei a menor do chão umas três vezes, enquanto a outra pedia urgência.
- Carol, você não estava apertada? Quer sair do chão?
Mesmo com pressa, elas andavam em zigue-zague e implicavam uma com a outra.
No banheiro, forrei primeiro o vaso sanitário para a maior enquanto dava ordens expressas para a pequena.
- Não en-cos-ta em na-da.
Bastou um minuto, e ela resolveu limpar com a mãozinha uma sujeirinha na tábua.
- CAROL!!! Eu disse pra não encostar, que porcaria! Vai-lavar-a-mão!
Enquanto eu forrava, ela tentou me ajudar, jogando sem querer metade dos papéis dentro da privada. Ai.
- Filhinha...não precisa, vailavarasmãosporfavor? - digo, segurando a irritação.
E lá foi ela lavar as mãos, os braços, a camiseta...
- Molhou um pouco, mamãe...
Foi a vez da mais velha perguntar:
- Mamãe, ter duas filhas dá muito trabalho? - quis saber Letícia, depois de assistir ao circo todo.
Minha mente esqueceu por um instante essa aventura recorrente em banheiro público e me transportou para aquelas manhãs em que eu nunca sei se é melhor me arrumar para trabalhar e arrumá-las para a escola depois, correndo o risco de terminar toda essa faina suada. Ou, pensando bem, se é melhor deixá-las prontas primeiro, indo me arrumar, sabendo que terei pelo menos um penteado para refazer. E fazer um penteado é um exercício aeróbico com alta queima de caloria. Requer destreza e paciência, sobretudo com cabelos finos e lisos.
- Só dá trabalho para ir ao banheiro do shopping e pentear os cabelos - respondi, piscando um olho e apontando para a irmã meio molhada meio prestando atenção na nossa conversa.
Numa outra noite, depois de uma hora tentando fazer a caçula jantar, percebi o olhar inquisidor pra cima de mim.
- Já sei, você quer saber se filho dá trabalho.
- Não quero não. Filho dá muito trabalho!
- Mas me faz rir também - comentei - antes de propor uma terapia coletiva do abraço para eu sublimar uma hora e meia de criança cansada chorando no meu ouvido.
Deu certo. O abraço dissipou a nuvem pesada do cansaço que nos rodeava, a pequena começou a rir da mais velha e vice-versa e eu respirei fundo. Quando meu marido chegou do trabalho, meus ouvidos estavam enxovalhados, mas ele nem percebeu. Eu voltava ao normal.
- Nas últimas duas horas, Carol deve ter chorado por uma hora e meia. Só parou quando eu deixei ela ficar chapada no carrinho dormindo.
- Chorou tanto por quê?
- Começou porque queria comprar chocolate na cantina daí...consigo me lembrar de uns seis motivos. Você quer que eu liste todos?
Num certo domingo de noite, quando a irritação, esta impostora de véspera de segunda-feira, ainda circulava pela casa, quando o cansaço, aliado e inimigo, era o rei da situação, e a caçula já tinha dormido, me ajoelhei do lado da cama da mais velha.
- Você tem me perguntado muito se filho dá trabalho.
- Eu sei.
- Dá trabalho, você sabe, mas eu ganho muito mais em troca, entendeu?
- Hum?
- Olha, trabalhar dá trabalho. Manter a casa arrumada dá trabalho e fazer a nossa comida no fim de semana também dá trabalho. Para citar três exemplos. Sabia que dá trabalho escrever?
- Sabia.
- Dá trabalho ensinar você e aceitar quando não consigo te convencer de algo.
Percebi um olhar solidário.
- As crianças pequenas costumam dar mais trabalho porque, como sua irmã, são muito sem noção ainda, né?
Ela riu e concordou.
- Quase tudo na nossa vida vai exigir esforço da gente, esforço para se manter calma quando todo mundo estiver nervoso, esforço para encontrar a resposta certa quando você tiver dúvida. Esforço para mandar a tristeza embora quando ela insistir em ficar. Mas eu não trocaria o trabalho que vocês me dão por nada nesse mundo, entendeu? Seu pai pensa igual.
O diálogo foi curto, mas nas entrelinhas eu pensava em todas as pessoas que criam seus filhos sem ajuda, pais que sumiram, mulheres que não assumiram, gente que lida com crianças muito diferentes, cercada de outros sacrifícios.
Eu pensava nas histórias alheias, porque na nossa vida não cabem todas as experiências do mundo. Resta-nos aprender com o outro, esse que enriquece a humanidade com altos e baixos que não são os nossos mas deixam lições para todos. Precisamos recarregar constantemente as baterias da nossa consciência para não se deixar levar pelo desimportante, como essa história de que tudo dá trabalho.
A conversa com minha filha terminou com um pequeno grande abraço que tudo regenera dentro de mim. Cada célula cansada se refaz, o tecido esgarçado da paciência se recupera. A gratidão agora líquida percorre minhas veias, levando até o coração o combustível que meu corpo precisa. Falo de amor, o verdadeiro oxigênio da vida.
- Você tem me perguntado muito se filho dá trabalho.
- Eu sei.
- Dá trabalho, você sabe, mas eu ganho muito mais em troca, entendeu?
- Hum?
- Olha, trabalhar dá trabalho. Manter a casa arrumada dá trabalho e fazer a nossa comida no fim de semana também dá trabalho. Para citar três exemplos. Sabia que dá trabalho escrever?
- Sabia.
- Dá trabalho ensinar você e aceitar quando não consigo te convencer de algo.
Percebi um olhar solidário.
- As crianças pequenas costumam dar mais trabalho porque, como sua irmã, são muito sem noção ainda, né?
Ela riu e concordou.
- Quase tudo na nossa vida vai exigir esforço da gente, esforço para se manter calma quando todo mundo estiver nervoso, esforço para encontrar a resposta certa quando você tiver dúvida. Esforço para mandar a tristeza embora quando ela insistir em ficar. Mas eu não trocaria o trabalho que vocês me dão por nada nesse mundo, entendeu? Seu pai pensa igual.
O diálogo foi curto, mas nas entrelinhas eu pensava em todas as pessoas que criam seus filhos sem ajuda, pais que sumiram, mulheres que não assumiram, gente que lida com crianças muito diferentes, cercada de outros sacrifícios.
Eu pensava nas histórias alheias, porque na nossa vida não cabem todas as experiências do mundo. Resta-nos aprender com o outro, esse que enriquece a humanidade com altos e baixos que não são os nossos mas deixam lições para todos. Precisamos recarregar constantemente as baterias da nossa consciência para não se deixar levar pelo desimportante, como essa história de que tudo dá trabalho.
A conversa com minha filha terminou com um pequeno grande abraço que tudo regenera dentro de mim. Cada célula cansada se refaz, o tecido esgarçado da paciência se recupera. A gratidão agora líquida percorre minhas veias, levando até o coração o combustível que meu corpo precisa. Falo de amor, o verdadeiro oxigênio da vida.
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