quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

A desolação de Peter Jackson

LUÍS ANTÔNIO GIRON
12/12/2013 08h57

Se você não viu O hobbit – a desolação de Smaug, não sabe o que está ganhando. A segunda parte da trilogia baseada no breve romance infantojuvenil O hobbit (1936), do escritor inglês de J.R.R. Tolkien, pode ser descrita como uma enrolação. O diretor neozelandês Peter Jackson tenta transformar uma lagartixa em um dragão, alongando e acrescentando episódios e personagens secundários até não poder mais. Tudo para fazer jus ao projeto de trilogia que deve render ao final US$ 3 bilhões. É compreensível, embora imperdoável, que Jackson busque o lucro acima de tudo e converta o seu talento em valor de troca inútil. Em O hobbit – a desolação de Smaug, nunca tantos efeitos especiais foram usados para tamanha ausência de conteúdo.
Jackson armou uma armadilha para si próprio. Ele colaborou para a atual epidemia de trilogias. Dirigiu a trilogia O senhor dos anéis, lançada em 2001 e 2003, uma magnífica reconstrução dos romances épicos adultos e alegóricos de Tolkien. Como a trilogia fez sucesso e sua bilheteria mundial atingiu US$ 1,2 bilhão, ficou estigmatizado por ela. Dirigiu e produziu outros filmes sem os mesmos resultados financeiros. Ele só voltaria a triunfar se dirigisse outra trilogia sobre O hobbit, mesmo que este livro não fornecesse material suficiente para esse tipo de filme.
Tolkien escreveu o livro para o público jovem, mas bem mais jovem que o público jovem nerd de Jackson. A trama pode ser contada em 257 caracteres com espaços: O mago Gandalf e o hobbit Bilbo Bolseiro ajudam a tribo dos anões a recuperar o palácio e os tesouros neles contido que foram roubados pelo dragão Smaug. Entre o início e o fim exitoso da jornada, encontram monstros, elfos e outros animaizinhos da floresta.
O desafio de Jackson foi fazer dessa fábula pueril um épico bombástico. Operou então a produção como se fizesse um trabalho de engenharia reversa e retrógrada. Tentou aplicar a atmosfera e a alegoria de O senhor dos anéis, livro posterior (foi publicado entre 1954 e 1955) e verdadeiramente épico, à carochinha de O hobbit. Sim, de alguma forma O hobbit cumpre a função de prólogo a O senhor dos anéis. De jeito nenhum funciona como uma “prequela” hollywoodiana nos moldes atuais.
Mas Jackson precisava forçar a operação. Para isso, atou a história a uma espécie de roda de tortura e espichou-a até estraçalhá-la e torná-la inconsistente. Enxertou personagens – como a elfa silvestre Tauriel – e algumas aventuras secundárias, dando aos Orcs algumas cenas que vão para os anais da paródia. Como se não bastasse, o diretor cometeu um ato ainda mais grave: alterou a própria essência de alguns personagens, a fim de injetar neles uma função simbólica mais grandiosa.
Vou me restringir a dois casos, os que se referem ao papel simbólico do Smaug e dos anões. Ele converteu o dragão em um personagem ridículo e tagarela (dublado pelo ator inglês Benedict Cumberbatch) que entabula uma conversação quase interminável com Bilbo (Martin Freeman) nos salões do tesouro do palácio da Montanha Solitária usurpado aos anões. O dragão para Tolkien pode ser interpretado simplesmente como a imagem da cobiça cega, pois guarda um tesouro (em especial a Pedra Arken, símbolo do poder dos anões) que não consegue usar. Tolkien pretendia assustar seus pequenos leitores com esse símbolo. O Smaug de Jackson, porém, é uma deturpação, tornou-se uma espécie de Falstaff fanfarrão que põe tudo a perder de tanto contar vantagens. Smaug não mete medo nem em crianças de 7 anos.
Quanto aos 13 anões (poupe-me o leitor de citar o nome de cada um deles), eles eram para Tolkien uma turma de injustiçados divertidos, que buscam restituir seu direito à propriedade do tesouro e, portanto, do reino que fundaram. Sabe-se lá por que razão, Jackson achou interessante associar os anões às 12 (ou 13, para alguns) tribos de Israel. Os anões passam a compor a metáfora do reino perdido e do êxodo dos judeus. A montanha solitária torna-se o templo de Salomão e a Pedra Arken, a Arca da União. Bilbo é o católico de bom coração que colabora com seus irmãos mais velhos judeus para lhes resgatar a majestade. O problema é que, nesse processo de metamorfose levado pelo diretor, os anões se tornam caricaturas. Eles assumem várias modalidades de visões preconceituosas e estereotipadas sobre os judeus: são comerciantes mesquinhos, obcecados pelo reino perdido e a terra prometida, análoga à Montanha solitária, amam o ouro acima de tudo, usam tranças e ostentam narizes aduncos. São também sábios, espertos e bondosos. E sofrem com o holocausto de seus parentes, quando tentavam fugir do ataque final de Smaug. Peter Jackson é um nerd compassivo e deve ter incorrido inconscientemente nesses lugares-comuns irritantes. De certo modo, ele subestima a inteligência do espectador e do próprio Tolkien, um admirador das tradições simbólicas do judaísmo.
O balanço da segunda parte da “saga” O hobbit é nulo: nada acontece de fato no filme. Trata-se apenas de um eixo que une a jornada dos anões e o desenlace que, parece, ocorrerá na terceira parte -   The Hobbit: There and Back Again, ainda sem título em português – a estrear em 17 de dezembro de 2014. O público, desolado, aguarda ansiosamente para descobrir aquilo que já sabe.
Por que o público necessita de trilogias ou tetralogias eu não sei. Talvez seja porque seu comportamento de consumo necessite de estímulos de ganchos para continuar a ler ou ver séries e filmes. O espectador do século XXI é tratado como um viciado em drogas culturais. E talvez ele seja isso mesmo.
Luís Antônio Giron escreve às quintas-feiras

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