quarta-feira, 21 de junho de 2017

Pq algumas coisas são inesperadas :)

O que grita dentro de nós

IVAN MARTINS
21/06/2017 - 08h30 - Atualizado 21/06/2017 12h28

Diante do auditório lotado, o professor de psicanálise fala do inconsciente, usando um exemplo do cotidiano: o rapaz se aproxima da moça, que tem a intenção de fazer-se difícil. Mas, assim que ele começa a falar, ela enrubesce, e, quando tenta responder, gagueja. Talvez o rapaz não perceba, mas a conquista que ele almeja já aconteceu. O comportamento involuntário dela é uma confissão de interesse.
Sentado na terceira fila do auditório, ouvindo a palestra, me ocorre que o amor – aquilo que o professor freudiano chama de desejo – é sempre uma confissão. Uma confissão de insuficiência.
Eu, pessoa inteira e autônoma, confesso que a sua presença me perturba e gratifica. Mesmo temeroso, confesso que desejo que você partilhe o meu corpo, meus sentimentos e minha vida, ainda que isso perturbe a minha estabilidade. Quando você for embora, ou, mesmo ao meu lado, deixar de me olhar com olhos apaixonados, confesso que pensarei em morrer, e que meu luto cobrirá a cidade como chuva gelada. Confesso, por fim, que, tendo amado você, jamais deixarei de amar, ainda que use outras palavras e outros sentimentos para esconder o que sinto.
Vivemos, entretanto, num mundo de pessoas orgulhosamente autônomas. Nossos atos confessam, mas nós relutamos em dizer que sentimos. Homens e mulheres se gabam da sua capacidade inesgotável de estar sozinhos. Nada nos embaraça mais do que nos confessarmos dependentes, e nada embaraça mais o outro do que ouvir essa confissão. Aprendemos que certas coisas não se dizem.
Mas é uma pena que seja assim, porque confissões apaixonadas gritam dentro de nós. A gente olha a pessoa, ou toca os seus cabelos, e um torvelinho de palavras pede passagem – e tem de ser energicamente reprimido. Apenas em meio à paixão do sexo as confissões nos escapam. Dizemos “eu te amo” sufocando de prazer. Na cama há liberdade para dizer tudo e qualquer coisa.
Em pleno controle dos sentidos, temos dificuldade em confessar que amamos até para nós mesmos. As emoções estão lá, mas olhamos para o outro lado. O potencial de sofrimento, afinal, é imenso. A gente sabe que o amor expõe nossas vulnerabilidades. Cedo ou tarde ele cobrará meia libra de carne (nossa carne) pela alegria que nos deu. Sentamos, portanto, sobre a nossa comoção e silenciamos – esperando pelo dia em que sentimento, clareza e coragem nos cheguem juntos.
Enquanto isso, professamos e confessamos apenas amor por nós mesmos. Ao nosso trabalho, nossa casa, nossos lindos animais domésticos. Essas coisas não nos ameaçam nem revelam nossa insuficiência. Elas tampouco nos gratificam com o prazer de amar e dizer isso: de olhos abertos, de todo o coração, com todas as letras.

http://epoca.globo.com/sociedade/ivan-martins/noticia/2017/06/o-que-grita-dentro-de-nos.html

segunda-feira, 10 de abril de 2017

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Em que momento nós deixamos de gostar do que é simples?

Ruth Manus
22 Janeiro 2017 | 02h00

Há algumas semanas, tirei uma tarde de quinta-feira para passear com a minha enteada, que estava em férias. Cheguei em casa e perguntei o que ela queria fazer. Imaginei alguns pedidos: cinema, zoológico, algum parque de diversões. E ela disse: podemos andar de ônibus? Eu disse que sim e perguntei para onde. Ela não entendeu a pergunta, uma vez que para ela o programa divertido era andar de ônibus, simplesmente. Foi o que fizemos.
Isso me lembrou um sábado há quase dez anos, no qual levei minha sobrinha mais velha a uma sorveteria lindíssima, que tinha sido aberta no bairro. Havia uma linda varanda, mesas coloridas, trocentos sabores para escolher. Entrei na fila, fiquei um pouco horrorizada com os preços, mas perguntei a ela o que iria querer. Ela respondeu sem pestanejar “picolé de uva”. Eu expliquei que ali não havia picolé de uva, mas, sim, outras coisas bem mais gostosas. O ar de decepção dela fez com que eu não pensasse duas vezes para atravessar a rua a caminho da padaria, terminado nossa tarde tomando sorvete de palito.
Na mesma linha, veio a minha sobrinha caçula de um ano e meio que, em meio a seus tantos brinquedos coloridos e sonoros - que estão muito longe de custar pouco -, elegeu como seu favorito um frasco de plástico vagabundo dentro do qual há alguns grãos de feijão. Na concepção dela, nada pode ser mais interessante do que aquilo, nem Fisher-Price, nem Chicco, nem nada.
Depois foi o meu afilhado de 8 anos, que disse que ainda não sabe se, quando crescer, vai ser “aquelas pessoas que cuidam de tartarugas marinhas antes de elas voltarem pro mar” ou lixeiro, para poder andar pendurado no caminhão à noite. O que eu deveria dizer para ele? Que ser advogado como eu seria bem mais divertido?
Comecei a me perguntar em que momento da vida nós deixamos de ter tanto apreço pela simplicidade. Não me parece que tenha somente a ver com a necessidade de ganhar dinheiro, com as novas experiências ou com o paladar apurado. Parece-me que tem muito mais a ver com a preocupação que passamos a ter com os olhares alheios e com os hábitos que nos são “impostos” por aqueles com quem convivemos.
O carro, o restaurante, o vinho, a bolsa. Quanto disso nós escolhemos genuinamente, por puro e simples gosto ou prazer? Não sei, sinceramente. Será que o que nos incentiva (ou nos amarra, ou nos obriga) não é a importância que passamos a dar para a opinião daqueles que nos cercam? O famoso “mas o que vão pensar de mim?”, que nós temos de forma tão intensa e as crianças simplesmente não têm.
Num dado momento, já não sabemos, dentre as coisas que temos e a rotina que vivemos, o que está ali porque nos agrada e o que está ali porque, supostamente, faz bem para a nossa imagem. Outro dia, alguém me disse “você ainda vai aprender a gostar de ostras”. Eu não quero aprender a gostar de ostras. Por que eu deveria aprender a gostar de ostras? Minha cota não pode ser em cachorro quente? Ou em coxa de frango? Será que não pega bem?
Talvez, nós possamos investir num exercício diário de resgate da simplicidade. Isso é muito útil para a vida - sobretudo em cenário de crise. Redescobrir nossos prazeres sem custo, exercitar nossa capacidade de não ligar para o que os outros pensam, bem como de não julgar as decisões da vida alheia.
Sair a pé, deixar o carro na garagem - ou até se desfazer dele -, tomar cerveja no balcão da padaria, encontrar um amigo sem precisar de um belo jantar à frente de ambos, comprar roupa sem marca, sentar na grama, comer milho na espiga. A vida deveria ser mais simples do que é. Há quem consiga concretizar esta proeza. E nós, adultos, estamos sempre a tentar mostrar-lhes o que há de bom no mundo. Mas são esses pequenos que sabem viver muito melhor do que nós. Só nós que não percebemos.

http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,em-que-momento-nos-deixamos-de-gostar-do-que-e-simples,70001636285?success=true 

Na pista

IVAN MARTINS
25/01/2017 - 08h34 - Atualizado 25/01/2017 13h10

A melhor maneira de ficar sozinho é ficar em casa. No aconchego do lar tem sofá, internet, Netflix, livros, ventilador e geladeira. No meu caso, ainda tem as gatas, que se acomodam ronronando nas minhas pernas. Mas, apesar desses confortos, quem está em casa ainda está sozinho – e vai continuar assim, indefinidamente, se não vestir uma roupinha e colocar os pés na rua.
Não acho – veja bem – que as pessoas têm obrigação de cair na balada. Cada um conhece o seu momento e o seu temperamento. Há horas em que tudo de que a gente precisa é silêncio e isolamento. Mas eu sei, por experiência própria, e por observar os outros à minha volta, que, em outras horas, convívio e companhia são essenciais.
Quando a gente sente que a solidão está nos sufocando, é hora de sair das redes sociais, desligar os aplicativos de relacionamento e experimentar, diretamente, aquilo que faz das grandes cidades o melhor lugar do mundo para viver: a possibilidade de encontros inesperados.
Se a gente entra na pista, em sentido literal ou figurado, tudo pode acontecer.
A densidade humana é tão grande, e a diversidade tão imensa, que é fácil esbarrar numa alma alegre ou rabugenta que combine com a nossa. O que acontecerá a partir disso ninguém sabe. Mas, se você não sair andando pela cidade, e não entrar no restaurante atrás da música – como faz Mia, em La La Land –, pode nunca achar o cara da sua vida.
Tudo bem, acho que exagerei no romantismo.
O sujeito que mudará sua vida não deve aparecer numa roda de samba, enquanto você gira e canta de olhos fechados, embalada pela música. Nem é provável que ele surja mais tarde, quando você, horas depois, ainda estiver pulando feliz diante do DJ, na balada que avança pela madrugada. A chance de encontrar um grande amor em qualquer um desses lugares é remota. Mas, por ínfima que seja, é maior, muito maior, do que no sofá de casa, atualizando o Facebook a cada cinco minutos.
Em casa, a gente sabe com certeza que não vai acontecer nada.
Mesmo que você ache ridícula a ideia de encontrar uma alma gêmea na festa do Santo Forte – ou no aniversário das psicólogas capricornianas de 1990 –, não deveria descartar a possibilidade de um esbarrão erótico. Sabe aquela coisa de olhar, dançar, dar uns beijos e voltar para casa sozinha, sorrindo? Isso acontece na festa, no samba e na balada, assim como nos blocos de Carnaval. Adolescentes acham o máximo. Adultos em geral preferem chegar à Fase 2. Mas, se ela nunca vier, está tudo bem: beijos na boca são gostosos e, definitivamente, nos animam. Enchem de ternura e eletricidade uma noite de chuva.
Sei que, para alguns, esta conversa de sair e dar uns beijos reforça uma ideia frívola sobre relacionamentos humanos. Ela parece reduzir a afetividade a uma troca anônima e banal de fluidos. Mas eu juro que não é isso. O que estou dizendo é que ajustar expectativas pode ajudar a ser feliz.
Sair de casa, ir a uma festa e ver caras novas talvez seja melhor do que ficar em casa pela enésima noite seguida. Dançar até se acabar e dar uns beijos talvez seja mais gostoso do que ficar sozinha. O príncipe encantado não vai passar pela porta da balada com uma lata de energético na mão e um coque samurai no topo da cabeça. Mas o cara de sorriso bonito, aquele olhando para você com ar inseguro, pode ser tudo de que você precisa agora, não para o resto da vida.
Como eu disse, é só um ajuste de expectativa, não uma renúncia às grandes ambições emocionais.
Como eu sou incurável romântico, gosto de pensar que dos encontros casuais também pode sair algo que não seja efêmero. Namoros já começaram com gente se beijando loucamente, perguntando o nome só na hora de ir embora, para trocar telefones. Casamentos podem ser rastreados ao momento em que uma garota foi dançar grudada ao cara que ela achou bonito, aproveitando o rolo compressor da multidão.
Essas coisas não acontecem toda hora, mas, de vez em quando, acontecem. Acredite. Você beija num dia, conversa sem parar no outro e, depois de uma semana, ou de um mês, está perdidamente apaixonada. Quem diz que não é possível? Eu digo que é – e tudo começa com decisão de botar uma roupinha bonita, abrir um sorriso e sair de casa, hoje.

http://epoca.globo.com/sociedade/ivan-martins/noticia/2017/01/na-pista.html 

"Semana que vem"

IVAN MARTINS
08/02/2017 - 09h08 - Atualizado 08/02/2017 09h08

Em São Paulo, a expressão “semana que vem” virou o novo jeito de dizer “uma hora dessas”. Na forma de resposta a um convite, as duas significam a mesma coisa: “nunca”.
Funciona assim: você convida a pessoa para fazer algo em sua companhia e ela responde, na maior simpatia, “Vamos na semana que vem. Nesta não dá”. Se você, ingenuamente, voltar a procurá-la na semana seguinte, vai deparar com outra sequência de dias ocupados, e com a proposta, claro, de que o chope, o almoço, o café ou o cinema fique para a ... “semana que vem”.
Mesmo o mais tonto dos homens – ou a mais distraída das mulheres – percebe o que a expressão significa na terceira vez em que ela aparece: aquele ser humano não está interessado em sair com você. Adiar o encontro ao infinito é uma forma educada de sinalizar que ele não vai acontecer.
Eu descobri o significado oculto de “semana que vem” por meio de um amigo. Foi ele quem me alertou para o novo padrão. A expressão apareceu uma vez na vida dele. Depois outra. Quando leu pela terceira vez as mesmas palavras no What’s Up, teve uma súbita compreensão, e, com ela, uma onda de vergonha retroativa: as mulheres estavam dizendo “não” há muito tempo, mas ele não tinha notado.
Toda rejeição nos faz sentir patéticos. Dá um desconforto profundo, que mistura vergonha pela situação e raiva de si mesmo. “Quem mandou eu me expor desse jeito”? Mas, quando a gente demora a perceber, é ainda pior. Além de patéticos, nos sentimos burros – e expostos ao ridículo.
Como só percebi o que “semana que vem” significa com ajuda do amigo, depois de ter ouvido as mesmas palavras umas 20 vezes, imaginem como eu estou me sentindo. Se alguém me disser “semana que vem” nos próximos dias, choro.
Mas, atenção: imprevistos também acontecem. Ontem, terça-feira, eu iria almoçar com um amigo e jantar com outra. O amigo cancelou 24 horas antes, por uma demanda inesperada no trabalho. Tentaremos “esta semana”. O pai da amiga rompeu os ligamentos e seria operado hoje. Noite no hospital para ela e jantar adiado para mim. Jantaremos, espero, na “semana que vem”.
Quero dizer, com isso, que compromissos também são cancelados contra a vontade das pessoas. Nem todo adiamento é sinal de desinteresse. Deve existir uma semana tão cheia de trabalho que torne impossível jantar, almoçar, tomar café, sentar no sofá, falar por Skype ou trocar um telefone reconfortante com alguém que você goste.
OK, pensando bem, não existe uma semana assim tão ocupada, mas vocês entenderam o espírito da coisa: fique ligado para não fazer papel de chato, mas não se deixe cair na paranoia.
Para nós, homens, é mais fácil. Temos experiência nesse tipo de coisa. A gente escuta evasivas desde os tempos bíblicos. Basta ingressar na adolescência para descobrir as centenas de formas que um “não” pode tomar na boca, no rosto e na linguagem corporal de uma mulher. A mais traumática, para mim, é também a mais banal.
- “Vamos dançar”?
- “Não”.
Que vergonha, na frente de todo mundo!
Agora, com a mudança dos costumes, também as mulheres estão experimentando a mesma sensação. Elas tomam a iniciativa no contado com os homens e levam de volta uma esnobada. Na balada, na escola, no trabalho, no Happn. Os bonitões, claramente, não estão aceitando qualquer convite: “Vamos marcar semana que vem”.
Não tenho juízo de valor a fazer sobre isso. É um fato da vida. As pessoas manifestam seu desejo e se confrontam com o desejo do outro. É importante que haja liberdade para as duas atitudes. Eu não gostaria de viver numa cidade onde não pudesse me aproximar (sem grosserias) das pessoas que me atraem. E ninguém gostaria de viver num lugar onde não fosse possível dizer não. É importante abraçar essa dimensão da nossa liberdade. Ela é essencial ao projeto.
Também gosto de pensar que existe ganho existencial no confronto com a realidade. Disse isso ao amigo chateado com as rejeições. Imagine se nos trancarmos em casa, se nunca nos expusermos, se tivermos medo de nos oferecer aos outros – o que será da nossa vida erótica ou sentimental?
É saudável o exercício de se abrir e tentar. O risco de lançar a ponte na direção do outro e ver o que acontece me emociona. Surpresas agradáveis nos esperam, assim como decepções. Uma e outra nos mostram que estamos vivos.
Há, claro, temporadas inteiras em que estamos tão frágeis que é melhor não nos expor ao julgamento alheio. Essas são as horas de recolhimento. Nesses momentos, amigos são a melhor companhia. Amantes que nos recebem sem conflitos também. Ambos nos protegem de uma forma que o jogo de sedução não permite. Seduzir implica em dar a gente estranha uma chance de nos ferir. Há dias em que não estamos para isso.
Ontem, o amigo que me alertou para a “semana que vem” veio com uma novidade. Conheceu uma garota interessante no Happn, depois de receber um “charme” dela. Vocês sabem como isso funciona? Se você marcou alguém e não deu match, existe a chance de apelar - mandar um charme, convidando a pessoa a olhar o seu perfil. Ela mandou, ele olhou, gostou, estão falando e combinando sair esta semana. Ou na outra. A vida dele, assim como a dela, continua na semana que vem. Não é uma tremenda boa notícia?

http://epoca.globo.com/sociedade/ivan-martins/noticia/2017/02/semana-que-vem.html 

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

La La Land

Reclamamos de Trump. Mas adoramos erguer muros por aqui

Leonardo Sakamoto

Donald Trump deu, nesta quarta (25), ordem para que um muro gigantesco, separando os Estados Unidos e o México, comece a ser erguido. Na verdade, que continue a ser construído – uma vez que parte dele já foi colocado por administrações anteriores. Considerando as barreiras já existentes, o conjunto deverá ter cerca de 3 mil quilômetros no total. Uma sandice monumental que, veja só, poderá ser vista do espaço.
Dou o braço a torcer: apostava que ele não seria capaz de tal idiotice, prometida repetidas vezes na campanha eleitoral a fim de enganar os incautos que culpam os ''de fora'' pelos próprios problemas sociais, econômicos e de segurança interna.
Muros assim são um símbolo da ignorância humana. Mais do que cimento e/ou aço, são instrumentos que auxiliam na construção do discurso do medo – que brada que o outro, o bárbaro, precisa ser mantido à distância para o bem da sociedade. Na verdade, contudo, quem está sendo controlada é a sua população.
E a própria economia. Pois, ao ameaçar impor taxas sobre produtos mexicanos para financiar o muro, ele pode estar dando início ao desmonte do tratado de livre comércio da América do Norte (Nafta). Trump parece burro, mas não é.
O sentimento de proteção entregue por muros altos, cercas eletrificadas, circuitos fechados de TV e seguranças particulares é uma ficção do autoengano. Na prática, voltam-se contra seu criadores. Que acham que deixam os perigos de fora quando, na prática, transformam a própria vida em uma triste prisão.
Por outro lado, o aumento da migração de pessoas por esperança ou desalento – fugindo de guerras e de catástrofes ambientais, econômicas e sociais – para um país com maior oportunidades de emprego e maior qualidade de vida tem mostrado o que certas nações têm de pior.
Os Estados Unidos erguem um muro entre eles e o México para regular o fluxo de faxineiros, operários e serventes. Na Inglaterra, brasileiros levam bala no metrô. Na Espanha, turistas, se piscarem, são tidas como profissionais do sexo (com todo o respeito a elas) querendo invadir o território. Parte da União Europeia transforma o Mediterrâneo em um cemitério ou dá rasteira em famílias que fogem da guerra.
O que poucos contam é que parte das guerras e das catástrofes ambientais, econômicas e sociais que levaram à migração foram causadas por governos e empresas de países que, agora, fecham as portas a essas pessoas.
Em todo o mundo, culpamos os migrantes por roubar empregos, trazer violência, sobrecarregar os serviços públicos porque é mais fácil jogar a responsabilidade em quem não tem voz (apesar de darem braços para gerarem riqueza para o lugar em que vivem) do que criar mecanismos para trazê-los para o lado de dentro do muro que os separa da dignidade – que, inclusive, gera recursos através de impostos.
Grande parte desses migrantes faz o trabalho sujo que poucos querem fazer, limpam latrinas, recolhem o lixo, extraem carvão. Até porque os países que recebem esses trabalhadores ganham com sua situação de subemprego e o não pagamento de todos os direitos. Não se enganem: a porosidade de fronteiras ajuda na regulação do custo de mão de obra.
Também gostamos muito de erguer muros por aqui, concretos ou simbólicos.
Em São Paulo, por exemplo, a xenofobia tem perdido a vergonha e brotado do esgoto. Ataques violentos a bolivianos e haitianos foram registrados. Pedidos de devolução de refugiados sírios são lidos nas redes sociais.
Se centenas de milhares de bolivianos, paraguaios, haitianos, senegaleses, chineses fossem às ruas, bloquear São Paulo, pedindo para que fossem respeitados como os estrangeiros ricos que vêm trabalhar na cidade, seriam duramente reprimidos. Deportados até.
E muitos autointitulados ''cidadãos de bem'', que consideram que o tratamento que os EUA dispendem aos seus migrantes, com deportações e muros, é o ó do borogodó, ficariam incomodados com protestos de nossos migrantes. ''O que eles querem mais? Calem a boca e continuem costurando!” Como sempre foi até agora.

Por fim, logo após a fundação da vila de São Paulo, José de Anchieta, com a ajuda de índios catequizados, ergueu um muro de taipa e estacas para ajudar a mantê-la ''segura de todo o embate'', como descreveu o próprio jesuíta. Sim, São Paulo já foi uma cidade fisicamente murada. Os indesejados eram índios carijós e tupis, entre outros, que não haviam se convertido à fé cristã e, por diversas vezes, tentaram tomar o arraial, como na fracassada invasão de 10 de julho de 1562. Tecnicamente, porém, os invasores eram os brancos portugueses. Mas a história é contada sempre pelo lado do vencedor.

http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2017/01/26/reclamamos-de-trump-mas-adoramos-erguer-muros-por-aqui/ 

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

Somos todas vadias

POR RUTH MANUS
04/01/2017, 10h22



Mulheres morrem todo dia. Homens também. Homens morrem de câncer, de enfarto, de bala perdida. Mulheres morrem de câncerde enfarto, de bala perdida. Mas homens não morrem por serem homens. E mulheres morrem por serem mulheres. É uma lógica simples.

Mulheres morrem não apenas na chacina de Campinas. Mulheres morrem viajando na América Latina. Mulheres morrem no Oriente Médio. Mulheres morrem na China, na Índia, no Canadá. Morrem aí, do lado da sua casa. Morrem porque são mulheres. Porque nasceram mulheres e porque mulheres se fizeram.

Mulheres morrem por ciúmes. Morrem porque olharam para o lado. Morrem porque tentaram ir embora. Porque tentaram. Mulheres morrem porque atrasaram o jantar. Porque saíram para jantar. Porque quiseram uma vida que fosse além de servir o almoço e servir o jantar.

Mulheres morrem por serem mais bonitas do que deveriam. Por serem menos bonitas do que deveriam. Mulheres morrem porque sempre devem. Sempre estão devendo. Mulheres morrem por fazer muito sexo. Por fazer pouco sexo. Por não querer fazer sexo. Por pensar demais em sexo. Por pensar demais.

Mulheres morrem por causa da saia. Por causa da blusa. Do perfume. Do sapato. Da maquiagem. Do cabelo. Mulheres morrem porque alguém decidiu que poderia interpretar e julgar uma peça de roupa, a cor de um batom e um corte de cabelo. Cortes. Porque julgam que certos cortes não são para mulheres. E que outros são: o da navalha, o do canivete, o da faca.

Mulheres morrem e não são vítimas. Mulheres levam tiros, facadas, chutes na cabeça. E seguem sem ser a vítima. Mulheres provocam. Mulheres dão causa. Mulheres não medem consequências. Mulheres sempre poderiam ter feito melhor. Mulheres tentam avisar. Tentam denunciar. Mas são sempre elas que deveriam ter tomado mais cuidado. Ter ficado dentro de casa. Ou ter trancado a casa. Ou ter fugido de casa.

Poderia dizer que as mulheres que morrem são filhas de alguém. Esposas de alguém. Irmãs de alguém. Mães de alguém. Mas elas são mulheres, apenas mulheres. Que não deveriam precisar ser nada de ninguém para ter importância. Mas precisam. Deixou filhos, deixou um marido inconsolável, deixou um pai debruçado sobre seu caixão. Só assim elas importam. Porque se ela for só uma mulher, ela será só uma mulher.

Homens morrem. Morrem por causa do tráfico, por causa da briga, por causa do ódio. Homens não morrem por questões de gênero. Mulheres morrem. Morrem porque seguem não sendo livres. Livres para opinar, livres para mudar de ideia, livres para ir embora, livres para dizer “nunca mais”.

Mulheres morrem porque homens resolvem que elas são vadias. Vadias por não aguentar mais. Vadias por dizer basta. Vadias por errar como tantos deles erram. Vadias por querer o que todos eles querem. Vadias por acreditar que poderiam ser iguais. Vadias por querer viver.

Mulheres morrem porque, independentemente do que façam, alguém se achará no direito de matá-la por julgá-la vadia. Não é um direito?! No fim, não importa quem somos, o que fazemos ou o quanto merecemos viver, porque aos olhos de alguém somos todas vadias e isso é o que basta para que mulheres morram.

http://emais.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/somos-todas-vadias/ 

Ele

POR RUTH MANUS

21/12/2016, 13h21

Ele é muita coisa.
Ele é muito mais coisa do que eu precisava que ele fosse.
É café. É cerveja. É placebo. É chá de erva doce.
Ele é muitas das horas de cada um dos meus dias.
Com quem eu divido as maiores angústias e os sagrados remédios pra azia.
É um ombro ossudo que poderia ser desconfortável.
Mas é o ombro que eu passei a chamar de lar.
É o braço firme que me puxa quando tento cruzar a rua sem olhar.
É a toalha úmida que eu uso quando a minha ficou pendurada no varal.
É sujeito nos meus textos que eu tento, sem sucesso, usar de modo impessoal.
Ele é tudo o que eu não sou.
É terra, pé no chão, é cada um dos silêncios que minha boca desrespeitou.
Ele é aquele que sempre volta.
Nem sempre às 18. Às vezes demora.
Mas ele é desse tipo bom, que volta, sempre volta.
Ele é desses que trabalha além do expediente.
Que trabalha muito, mas nunca o bastante para tornar-se ausente.
Ele é um domingo à noite, hora sem pressa.
Ele é a moeda que cai do lado certo quando a gente arremessa.
Ele é a cozinha bagunçada.
É tentativa e erro.
Panela com coisa queimando sem qualquer indício de desespero.
Ele é combustível.
Tipo raro.
Que me quer com asas, voando em céu claro.
Ele não vê no sucesso uma ameaça.
Vê meta conjunta, parceria, mapa que a gente abre, rota que a gente traça.
Ele é gente grande, homem imenso.
Ele é ainda assim, muito maior do que eu penso.
Ele é chato. Mil manias restritivas de direitos.
Mas que nunca é definido por qualquer tipo de conceito.
Ele é muito.
Ele é tanto.
E é forte.
E ter muito
e ter tanto,
é ter tudo da sorte.

http://emais.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/ele/ 


A alegria que não depende dos outros

IVAN MARTINS
14/12/2016 - 08h42 - Atualizado 14/12/2016 13h33

A vida é cheia de desapontamentos, sobretudo com pessoas. A gente espera algo delas, quer que pensem como nós, acha que sentem a mesma coisa que sentimos. Mas não. Elas têm seus próprios desejos e planos. São diferentes de nós, e por isso é comum que nos desapontem, mesmo que gostem da gente.
É fácil sentir-se frustrado com quem nos atrai.
Lembrei-me disso nesta semana, ao sair com um amigo que passou 2016 brigando com o mundo. Depois de uma relação em que se sentiu rejeitado, ele virou um poço de ressentimento. Deu um jeito de brigar com todas as mulheres que gostavam dele. Depois, brigou com as mulheres que não se apaixonaram por ele. Não sobrou ninguém para brigar. Agora, jura que vai passar o Natal e o Ano-Novo na casa dos pais, no interior, onde espera não brigar com mais ninguém. Duvido.
A raiva é um sentimento duradouro, e a dele, claramente, ainda não acabou.
Quando a gente se aproxima de alguém e é recusado, um sentimento viscoso nos invade. Por mais que estejamos acostumados, dói. Às vezes é alguém que mal conhecemos, de quem esperávamos quase nada, e, mesmo assim, machuca. Quando é alguém que admiramos e desejamos, pior.
O “não” de hoje ecoa outros “nãos” dentro da gente, maiores e mais importantes, fazendo um barulho desgraçado. Afinal, somos traumatizados com rejeição, sensíveis à frustração. Nossa resposta é sempre raiva, escancarada ou secreta.
Como desejar é biologicamente inevitável, e se frustrar com os desejos também, a vida parece necessariamente cheia de fúria. Mas não.
Há dentro de nós uma alegria que não depende dos outros.
Ela aparece, por exemplo, depois de uma crise, depois de um susto, depois de um drama, quando a situação volta ao normal e a gente parece que recomeçou a respirar. Nessas ocasiões é bom ficar sozinho. A gente sente que está vivo, nem ansioso e nem amargurado. Vivo, somente. Fica claro, então, que a vida tem uma dimensão solitária, tão boa e tão intensa quanto as outras – a gregária, cercada de amigos e família, e a íntima, quando estamos a sós com alguém – e, assim como elas, é perfeitamente acessível.
Se a gente consegue entrar nesse estado de autonomia e conforto, a urgência das relações externas diminui, e com ela a frustração. As conexões se tornam naturais. Se alguém quiser gostar da gente, gostará. Se quiser ser amigo, será. Sem desespero. Sem chantagens. Não há motivo para brigar com o mundo.
Isso não significa que o “não” daquela criatura de olhos escuros não vá doer. Sempre dói. Mas lidaremos com ele de maneira mais elegante, com menos frustração e menos raiva – como alguém que já rejeitou e foi rejeitado, e sabe que essas coisas acontecem.
Se me perguntam como se atinge esse estado de graça, a resposta é simples: não faço ideia. Sei que ele existe, porque já experimentei. E sei que é possível voltar a ele, por já ter voltado. Mas permanecer ali, na solidão contente, não é fácil. Exige maturidade, tem algo a ver com a idade, pode estar ligado à personalidade. Há gente naturalmente feliz e mais independente do que outras.
O que eu sei – com toda certeza – é que não se pode viver de frustração e ressentimento, com raiva.
Em algum momento da nossa história, precisamos fazer as pazes com o mundo e com a gente mesmo, ainda que provisoriamente. Não dá para não passar a vida desejando quem não nos quer e sofrendo com isso. Há que achar paz dentro da gente, para que os outros possam encontrá-la em nossa companhia.

http://epoca.globo.com/sociedade/ivan-martins/noticia/2016/12/alegria-que-nao-depende-dos-outros.html 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Sobre voltar

No fundo, estar "aqui" ou "lá", nem é o grande problema.

Tudo é questão de costume...

"Aqui" você acostuma com a presença.

Acostuma em ver Netflix a noite com a Ana
Em ter a cama arrumada
A sair com os amigos e tomar uma cerveja na 4a feira a noite.

Acostuma a comer costelinha com mandioca no almoço,
Que foi preparada especialmente porque você gosta disso.
A ver quem você gosta sempre. Tipo todo dia, se quiser.

"Aqui" você se acostuma com a proximidade.
Com a facilidade.
Com a agilidade.
Com ser "mimado".

Mas "lá", lá você também se acostuma.

Acostuma com a correria.
A ser um ótimo profissional.
A ajudar a desenvolver o seu time e fazer algo que você acredita e gosta.

Acostuma a achar as coisas caras,
Mas a entender que o seu salário no fim do mês é bem mais do que suficiente para pagar o que você quiser.

Quando vê, já está acostumado até com a distância
Com o avião no fim de quase toda sexta-feira.
Com o Whatsapp que tá sempre apitando
E os minutos ilimitados da TIM resolvendo vários problemas - nem que seja o da distância.

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Mas o foda, o "foda" mesmo é voltar
E tentar dar algum sentido ao "aqui" e ao "lá"
Ao mesmo tempo

E conectar mundos diferentes
Mundos distantes
Mundos deliciosos

A entender que aquilo e quem você ama está de um lado
E que a mega carreira profissional está do outro.

Aí nessa hora, é difícil entender.
Muito.

Até que passe uns dias.
E você entra no ritmo.
E você se acostuma com tudo.

E quando vê, já é fim de semana e você está voltando.

E quando vê, jé acabou o fimde semana e você também está voltando.

Mas até lá, o meio do caminho, o "voltar", esse sim é o difícil e dolorido.

É. Nessa hora você sabe que, realmente, o ano começou!