quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

A alegria que não depende dos outros

IVAN MARTINS
14/12/2016 - 08h42 - Atualizado 14/12/2016 13h33

A vida é cheia de desapontamentos, sobretudo com pessoas. A gente espera algo delas, quer que pensem como nós, acha que sentem a mesma coisa que sentimos. Mas não. Elas têm seus próprios desejos e planos. São diferentes de nós, e por isso é comum que nos desapontem, mesmo que gostem da gente.
É fácil sentir-se frustrado com quem nos atrai.
Lembrei-me disso nesta semana, ao sair com um amigo que passou 2016 brigando com o mundo. Depois de uma relação em que se sentiu rejeitado, ele virou um poço de ressentimento. Deu um jeito de brigar com todas as mulheres que gostavam dele. Depois, brigou com as mulheres que não se apaixonaram por ele. Não sobrou ninguém para brigar. Agora, jura que vai passar o Natal e o Ano-Novo na casa dos pais, no interior, onde espera não brigar com mais ninguém. Duvido.
A raiva é um sentimento duradouro, e a dele, claramente, ainda não acabou.
Quando a gente se aproxima de alguém e é recusado, um sentimento viscoso nos invade. Por mais que estejamos acostumados, dói. Às vezes é alguém que mal conhecemos, de quem esperávamos quase nada, e, mesmo assim, machuca. Quando é alguém que admiramos e desejamos, pior.
O “não” de hoje ecoa outros “nãos” dentro da gente, maiores e mais importantes, fazendo um barulho desgraçado. Afinal, somos traumatizados com rejeição, sensíveis à frustração. Nossa resposta é sempre raiva, escancarada ou secreta.
Como desejar é biologicamente inevitável, e se frustrar com os desejos também, a vida parece necessariamente cheia de fúria. Mas não.
Há dentro de nós uma alegria que não depende dos outros.
Ela aparece, por exemplo, depois de uma crise, depois de um susto, depois de um drama, quando a situação volta ao normal e a gente parece que recomeçou a respirar. Nessas ocasiões é bom ficar sozinho. A gente sente que está vivo, nem ansioso e nem amargurado. Vivo, somente. Fica claro, então, que a vida tem uma dimensão solitária, tão boa e tão intensa quanto as outras – a gregária, cercada de amigos e família, e a íntima, quando estamos a sós com alguém – e, assim como elas, é perfeitamente acessível.
Se a gente consegue entrar nesse estado de autonomia e conforto, a urgência das relações externas diminui, e com ela a frustração. As conexões se tornam naturais. Se alguém quiser gostar da gente, gostará. Se quiser ser amigo, será. Sem desespero. Sem chantagens. Não há motivo para brigar com o mundo.
Isso não significa que o “não” daquela criatura de olhos escuros não vá doer. Sempre dói. Mas lidaremos com ele de maneira mais elegante, com menos frustração e menos raiva – como alguém que já rejeitou e foi rejeitado, e sabe que essas coisas acontecem.
Se me perguntam como se atinge esse estado de graça, a resposta é simples: não faço ideia. Sei que ele existe, porque já experimentei. E sei que é possível voltar a ele, por já ter voltado. Mas permanecer ali, na solidão contente, não é fácil. Exige maturidade, tem algo a ver com a idade, pode estar ligado à personalidade. Há gente naturalmente feliz e mais independente do que outras.
O que eu sei – com toda certeza – é que não se pode viver de frustração e ressentimento, com raiva.
Em algum momento da nossa história, precisamos fazer as pazes com o mundo e com a gente mesmo, ainda que provisoriamente. Não dá para não passar a vida desejando quem não nos quer e sofrendo com isso. Há que achar paz dentro da gente, para que os outros possam encontrá-la em nossa companhia.

http://epoca.globo.com/sociedade/ivan-martins/noticia/2016/12/alegria-que-nao-depende-dos-outros.html 

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