Apesar de acontecerem em duas cidades diferentes e envolverem, de um lado, a elite política e judicial do país, e, do outro, servidores públicos, fardados ou não, os dois fatos derivam da mesma matriz: o baixo nível de respeito às instituições.
Não estou entrando no mérito se os policiais estavam acuados ou não. Isso não justifica a invasão de um templo religioso. Da mesma forma, não estou entrando no mérito da liminar do ministro do Supremo – que vem sendo duramente criticada por juristas pelo individualismo institucional. Isso não justifica o descumprimento de uma ordem judicial do STF.
O processo de impeachment (ou golpe ou granola, não importa o nome que você queira dar ao ocorrido) esgarçou instituições para se consumar e passou por cima de muita coisa. Era preciso retirar Dilma de lá e, para isso, tudo foi possível – de abraçar um notório corrupto que transformou a Câmara dos Deputados em seu playground particular até aceitar uma acusação frágil, baseada naquilo que todos os governos fizeram antes dela, ao invés de esperar pelos desdobramentos da Lava Jato.
Que seu governo estava ruim, isso é inegável – até ela deve concordar com isso. Mas a partir do momento que você joga fora as regras que construímos por um longo tempo para viver em mínima harmonia, reescrevendo-as diante de suas necessidades particulares e imediatas ou da opinião de seu grupo, isso abre uma ferida. Que não se fecha facilmente. Que infecciona.
Temos agora um conflito deflagrado entre o Poder Legislativo e o Poder Judiciário, mais Ministério Público. E Michel Temer não deve ter sucesso na mediação dessa situação porque não tem legitimidade para tanto. Sua legitimidade é o apoio dos patos amarelos que o ajudaram a chegar lá e esperam que ele entregue a fatura na forma da redução do tamanho do Estado.
Aliás, uma coisa é a reforma da Previdência surrar a dignidade de trabalhadores braçais dos mais baixos estamentos sociais ao impor uma idade mínima de 65 anos para a aposentadoria impactando a quem, não raro, começou a trabalhar antes dos 14. Outra coisa é a ''classe baixa com poder de consumo'' (que o governo Lula rebatizou despudoradamente de classe média baixa) se ligar que terá que trabalhar por, pelo menos, 49 anos para poder ter uma aposentadoria integral. Se a ficha desse povo cair de verdade, a legitimidade de Temer valerá menos que uma nota de três reais.
Mas a perda de respeito às instituições também já desceu ao nível da rua. Eu que não sou religioso, muito pelo contrário, fiquei consternado ao ver a polícia militar do Rio invadindo um local sagrado para milhões de pessoas e, a partir dali, lançar bombas em manifestantes. Isso não é sociopatia por parte de alguns policiais, mas sim sintoma dessa perda de respeito a instituições.
A imprensa, que já foi melhor ranqueada entre as instituições de respeito do país também anda em baixa. Jornalistas apanham sistematicamente da polícia e de manifestantes. Parte da sociedade não entende um ataque a um jornalista como um ataque à liberdade de expressão, um pilar da democracia, como na verdade é. Vê isso como uma manifestação do descontentamento ao estado das coisas. Incendiada por conteúdos superficiais distribuídos principalmente pelas redes sociais e não acostumada ao debate público de ideias, à aceitação da diferença de opinião e à empatia pelo outro, parte para a ignorância.
Isso sem contar que, em um ambiente de equilíbrio institucional e de bom funcionamento da democracia, não consigo imaginar um ministro de Estado gravando um presidente da República para se proteger de ataques do próprio governo e denunciar desvios de função. Muito menos um outro ministro de Estado usar seu cargo para tentar liberar um embargo de um prédio, no qual ele tem um apartamento de luxo, imposto pelo órgão de patrimônio histórico.
Iniciado, o processo de derretimento das instituições e do respeito da população a elas não pode ser freado do dia para a noite.
Demanda nova pactuação política e social, aliada a muito suor em articulações para a construção de consensos.
Ou seja, a dúvida que fica é se a reação em cadeia não é inevitável e nos levará inexoravelmente para o buraco.
A impressão, por enquanto, é que todo mundo representa a si mesmo e aos interesses do seu grupo, corporativo, econômico, político. O bem do país? Foda-se.
Leia-se por ''buraco'' a eleição, por vias democráticas, de uma figura antidemocrática em 2018 ou a busca por soluções autoritárias por parte de uma população cansada do clima de ''vale tudo'' e de ''ninguém e de ninguém''.
Eu diria ''Que Deus nos ajude''. Mas ele deve estar ocupado com o povo de farda que invadiu sua casa.
''Tem um lado meu que acha uma pena, obviamente, tudo isso que está acontecendo no Brasil'', lamenta a atriz Bianca Comparato quando pergunto se ela acha que há algum paralelo entre 3%, a primeira série que o serviço de vídeos Netflix produz no Brasil, e o momento político brasieiro atual. ''Mas tem um outro lado meu, que é mais otimista, que acha que é um processo de amadurecimento, que estamos podendo olhar para nós mesmos pela primeira vez, de verdade, sem ingenuidade. E esse embate faz parte. É uma pena o sofrimento que isso causa pra tanta gente. E a série fala muito disso, do sofrimento de quem não consegue. E quem disse quem é bom o suficiente? Quem definiu isso?''
A série, que estreia sua primeira temporada de uma vez só na próxima sexta-feira, dia 25, chega falando sério. O visual, a direção e as atuações instigam o espectador como qualquer outro seriado Netflix – e isso parece vir da fusão de experiências tanto da equipe quanto do elenco. A mistura veteranos como João Miguel, Zezé Motta e a própria Bianca Comparato com novatos desconhecidos (Michel Gomes, Vaneza Oliveira e Rodolfo Valente) foi dirigida pelo uruguaio César Charlone, ex-sócio de Fernando Meirelles e responsável pela fotografia de filmes como Cidade de Deus, O Jardineiro Fiel e Ensaio Sobre a Cegueira. Mas a premissa da série e sua narrativa foi desenvolvida e dirigida por seus criadores originais. ''Sou um showrunner de uma ideia alheia'', brinca o diretor uruguaio, que envolveu-se com a produção do seriado anos depois que seu criador, Pedro Aguilera, o estreasse no YouTube (assista aos três primeiros episódios da versão original aqui). Charlone entrou mais como um coordenador e supervisor, ajudando Aguilera e os três diretores originais, Jotagá Crema, Daina Giannecchini e Dani Libardi, a encontrar o rumo que queriam para o seriado, cujos oito primeiros episódios chegam de uma só vez.
Falada em português, a série de ficção científica se passa em um futuro próximo em que o Brasil divide-se em duas castas: grande parte da população mora numa região referida como Continente e quando completam vinte anos de idade têm a oportunidade de passar para onde reside uma elite financeira num lugar conhecido como Mar Alto, que abriga os 3% da população que batiza o seriado. Acompanhamos, portanto, um grupo de jovens que passa justamente pelo processo de seleção, uma série de jogos, entrevistas e atividades que vão definir quem pode passar para o outro lado. É uma alegoria que funciona como uma crítica à ditadura econômica mundial – e um de seus principais critérios de seleção, a chamada ''meritocracia''. ''Este tema faz parte da nossa sociedade e a gente tem mais ferramentas pra falar sobre isso e pra entender isso agora. São boas pra série também'', explica Aguilera.
''Quando o Pedro (Aguilera, criador e roteirista de 3%) pensou nisso lá atrás, ele havia se inspirado no vestibular, embora ele não quisesse falar diretamente de vestibular'', continua Bianca. ''A gente amadureceu muito essa ideia. Mantemos essa angústia juvenil, mas tem uma coisa mais política envolvida. Fala de uma sociedade onde, por mérito, você consegue as coisas e se você não for bom o suficiente acabou a vida pra você. Isso fala muito pra nossa sociedade, não só pra jovens. Se você for parar pra pensar, economicamente, não são nem 3% que detém a riqueza do Brasil – nem do mundo.''
''A ideia começou lá em 2009 e a inspiração vem de livros como Admirável Mundo Novo e 1984 – eu não conhecia Jogos Vorazes'', explica Pedro. Bianca já tinha assistido aos filmes: ''Acho a Jennifer Lawrence ótima. Vi os filmes da série Divergente e fiquei muito feliz com a quantidade de ator bom fazendo esse tipo de filme.'' Mas Charlone desconversa quando compara-se 3% com estes filmes recentes: ''A gente não vai competir com um produto desses. A nossa riqueza é a brasilidade'', explica, sublinhando que quis refletir uma brasilidade diferente daquela que vendemos. ''Gosto daquela coisa que, quando alguma coisa não funciona, vem alguém e dá uma porrada. Ou daquela sensação que sempre acontece em qualquer país do mundo quando você chega no aeroporto, mas quando chega no Brasil sempre tem alguém que fala 'tinha que ser no Brasil…''', explica o diretor, às gargalhadas.
Essa brasilidade, marca visual das produções de Charlone, foi perseguida com um olho no futuro e outro no presente. ''Gosto de dar muita ênfase em sotaques diferentes'', explica, enfatizando também que não quis entregar uma história de bandeja para o público. ''O Brasil tem essa fissura dos produtores com a bilheteria, essa coisa com a comédia, que querer agradar o público'', continua o uruguaio, explicando que o tom pessimista da série o atraiu. ''Isso abre um horizonte muito legal pra novas gerações contarem histórias'', continua.
Mas a frieza distópica da versão original ganhou pluralidade e cores no novo seriado. ''O tom original era muito sério, frio, policialesco'', lembra Aguilera, ao comentar as mudanças sofridas na série durante estes anos, que ainda ''tem elementos muito parecidos, mas outros muito diferentes. Mas a angústia dos jovens, que é a essência, ainda tá lá.'' ''É uma série essencialmente brasileira'', completa Bianca. ''Tem uma sujeira, cores, elementos rústicos. É futuro e é Brasil.''
Estive no set de gravação de 3% e além dessa brasilidade era possível notar a clara naturalidade nas atuações, sem afetações no texto ou diálogos que pudessem deixá-la caricata, claro reflexo da forma como Charlone gosta de deixar os atores, filmando-os livremente, quase em tom documental. Ele anima-se com o formato das séries, que diz ser ''o grande acontecimento audiovisual deste século.'' ''Eu sou assíduo frequentador da Santa Ifigênia e sempre vejo o pessoal vendendo DVDs piratas de filmes… Agora vendem séries'', conta, mencionando Sopranos e Mad Men como referências básicas inclusive para o cinema atual. Pedro também tem suas séries favoritas – House of Cards, The Wire, Breaking Bad -, que podem não se refletir na temática de 3% mas que estão presentes na forma como ele gostaria de segurar o espectador.
Bianca cita outro seriado do Netflix como referência. ''Black Mirror é uma experiência forte pra gente no 3%'', continua a atriz. ''É um futuro que é palpável, não é, sei lá… como o filme Prometheus… Black Mirror tem isso, tem uma coisa que tá mais pra frente, mas as primeiras cenas você nem entende em que época se passa…'' Ela concorda quando menciono que a ficção científica tem esse papel de metáfora para entender a realidade atual. ''Um dos motivos de eu topar fazer a série foi esse. A série é um alerta. Se a gente não parar, a gente vai chegar nisso. É uma catástrofe econômica. E não é só sobre o Brasil, é sobre um modelo econômico mundial, os poucos que têm, os muitos que não têm.''
Celebramos, hoje, a República. Regime que veio, não nos enganemos, através de um golpe militar em 15 de novembro de 1889 e não através de um caminho legal. Como uma assembleia eleita para decidir sobre a forma de governo seria impensável naquele momento apesar do crescente movimento republicano, as forças econômicas e militares catalisaram o processo e defenestraram o imperador.
Isso me faz monarquista? Afe, não… Sou um republicano crítico à história de meu país e que tem aversão à forma como determinados grupos sociais ressignificam a história de acordo com seus interesses, chamando as coisas pelos nomes que elas não têm. Em tese, deveríamos aprender com o nosso passado para construir o futuro. Em tese.
Fico pensando na natureza da República brasileira e todos as suas rupturas institucionais ao longo do tempo. E pesquisando na rede, um elemento que chama atenção é a foto do ministério de Michel Temer. Ela se parece, e muito, com qualquer pintura do gabinete imperial de Pedro II, no século 19: homens (com uma exceção), brancos, mais velhos e bem de vida.
Que a História não caminha em linha reta, isso é sabido. Mas é fascinante como ela dá voltas tão longas que, às vezes, sobrepõe o passado e o presente no mesmo lugar.
Um ano antes, em 1888, a escravidão era formalmente abolida no Brasil. Porém, nunca conseguimos inserir a população libertada em plenos direitos e seus descendentes continuam a ser tratados como carne de segunda, a sofrer todo o tipo de preconceitos e a receber bem menos que os brancos pela mesma função, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho. O país mudou apenas subordinar a escravidão ao capitalismo, indo ao encontro de um pedido dos empresários (mão de obra barata) e de uma das frases de caminhoneiro que nosso presidente mais gosta: ''não fale de crise, trabalhe''.
No início da República, as mulheres conquistaram o direito ao voto. Mas seguem sendo um grupo pequeno no Congresso Nacional, nas Assembleias e Câmaras de Vereadores, sem falar de cargos executivos e no Poder Judiciário. Poucos partidos possuem políticas claras para garantir a quantidade de candidatas previsto em lei e dar a elas a mesma competitividade que a dos homens e, por isso, têm sido punidos pela Justiça Eleitoral. Isso sem contar que são mortas, espancadas e assediadas diariamente e ainda têm que ouvir de parcela da população que elas se ''vitimizam''.
A República está, hoje, em mais uma encruzilhada. Há uma desmotivação muito grande com quem é eleito para administrar a ''coisa pública''. E, nesse contexto, os eleitos (ou não) para os cargos públicos vão empurrando o Brasil ao período imperial.
No Congresso Nacional, propostas para o desmonte de mais e um século de lutas republicanas seguem à toda.
Desmonte de direitos trabalhistas (liberação da terceirização para qualquer atividade da empresa e redução da idade mínima para poder trabalhar de 14 para 10 anos), de direitos indígenas (transferência do poder de demarcação de Terras Indígenas para deputados e senadores), de direitos da infância e da adolescência (redução da maioridade penal para 16 anos), de direitos civis (proibição de adoções por casais do mesmo sexo), do direito à liberdade (alteração do conceito de trabalho escravo contemporâneo para diminuir as possibilidades de punição), de direitos reprodutivos (proibição do aborto nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e má formação fetal), da seguridade social (imposição de idade mínima de 65 anos para aposentadoria) e da própria existência de um Estado social (imposição de tetos para o crescimento de investimentos em áreas como educação e saúde).
Quiçá, como já disse aqui, não completemos, em breve, a transição ao passado com a aprovação da pena de morte, do fim do voto feminino, da revogação da Lei Áurea e da derrubada da República? Talvez por outro golpe – afinal, gostamos tanto deles.
Creio que, desde que se mantenha o feriado, a maior parte da população nem irá se importar.
Tanto a eleição presidencial brasileira de 2014 quanto o recente pleito que escolheu Donald Trump presidente dos Estados Unidos podem ser vistos como momentos nos quais a frágil costura dos plurais e contraditórios retalhos sociais de ambos os países se rompeu.
Como detesto esse linguajar de sociólogo de botequim, traduzo para o vernáculo: momentos que deu ruim.
O ódio e a intolerância não foram criados nessas horas, mas fermentam há muito tempo, talvez desde sempre, nessas que ''foram'' as duas maiores sociedades escravistas modernas. E que seguem seus genocídios de jovens pobres e negros pela ação direta ou pela anuência do Estado.
A incapacidade de colocar-se no lugar do outro e entender que ele merece a mesma dignidade que sonhamos pra nós mesmos esteve sempre presente. Mas não estava distribuída pela internet, conectada pelas redes sociais ou amplificada pela popularização de smartphones.
Na última campanha presidencial, PSDB e PT quase levaram o país às vias de fato, incitando a população e municiando-a para o confronto digital. Esse conflito deflagrado e fermentado pelo rancor do resultado das urnas (um susto para muita gente por desmentir o que a bolha do algoritmo da rede social vendia na timeline) foi apenas o início. Na sequência, a escalada de violência durante o processo que levou ao impeachment levou pessoas a apanharem na rua por usarem bicicletas ou camisas da ''cor errada''.
E vermelho se tornou a cor errada por um longo tempo. Da mesma forma, a perseguição ideológica de um certo ''macarthismo à brasileira'' se instalou, bem como um clima de caça às bruxas a toda ideologia que não seja aquela que não se afirma como ideologia e que, por isso, mais ideológica é. Debater história na sala de aula virou delito passível de demissão. A parte mais preconceituosa e discriminatória do politicamente incorreto se tornou revolucionária na voz de alguns autointitulados humoristas. Trabalhadores estrangeiros passaram a ser alvos de xenofobia explícita, como os haitianos alvejados com projéteis em São Paulo. Grupos extremistas pegaram carona nesse processo, usando o contexto para pautar suas ideias violentas e absurdas.
Ao mesmo tempo, muito chorume circulou nas eleições norte-americanas, principalmente aquele incitado pelo agora eleito presidente e seus discursos carregados de machismo, homofobia, xenofobia, racismo. E a campanha de sua adversária, se não destilou preconceito e ódio como fez Trump, também não pode ser inocentada pelo clima de conflito estabelecido. Se candidaturas são levadas como guerras, essa deixou mortos de todos os lados.
Agora, no rescaldo eleitoral, surgem aqui e ali histórias de continuidade do preconceito deflagrado, de gente que se sente mais à vontade do que nunca para colocar violência para fora. É difícil separar quais são os casos reais dos casos que foram inventados pelo lado perdedor a fim de aumentar a narrativa do terror diante dessa vitória – como se esse medo precisasse de amplificação… Mas, mesmo que se confirme apenas uma parte do que circula, já será uma tragédia.
Claro que prefiro que a realidade sobre nós mesmos venha à tona. Manter tudo no armário tem a vantagem de oferecer aos cidadãos uma tranquilidade forjada suficientemente ampla para que cada um toque sua vida. Mas como todo processo que não natural, uma hora essa construção se desfaz. Ou se desnuda.
Acho que os próximos tempos serão importantes para tanto o Brasil quanto os Estados Unidos olharem para suas entranhas e discutirem que tipo de sociedade querem ser. Devido à pluralidade de sua composição, não é possível imaginar que o melhor modelo não seja o de seguir a vontade da maioria, garantindo, contudo, o respeito à dignidade de todas as minorias. Para isso, será necessário pensar novas formas de fortalecer a esfera pública e trazer para dentro dela a própria população. Já ficou claro que a mídia, de lá e daqui, podem até formar opiniões, mas conhecem pouco sobre quem é, o que quer e o que pensa os cidadãos brasileiro e norte-americano.
Por fim, o discurso violento e opressor – mais palatável e que mexe com nossos sentimentos mais primitivos e simples – ecoa e repercute. Esse discurso basta em si mesmo. Não precisa de nada mais do que si próprio para ser ouvido, entendido e absorvido.
O problema é que não se qualifica o debate, para evitar a hegemonia desse discurso violento, apenas através de ações individuais. Você precisa de uma ação em escala, o que teríamos – na minha opinião – através do Estado – que é o espaço que regula a concepção de educação e os parâmetros educacionais. Ou seja, lá como aqui, precisamos repensar o ensino para melhorar esse debate público.
Como fazer isso em um tempo em que o Estado, aqui como lá, estará tomado por quem não vê a deflagração do tecido social como um problema, mas que surfa nesse medo e nessa insegurança, e que acha que o modelo de educação pública está fadado ao fracasso, é um desafio que teremos que responder. O mais rápido possível, se quisermos ter um futuro.
Nesse fim de semana perdi um amigo de faculdade. Rolou todo aquele processo: desacreditei, pedi para 5 pessoas diferentes confirmarem a notícia, chorei, fiquei transtornada, olhei as últimas mensagens que trocamos, sonhei que tinha sido só um pesadelo. Mas não, foi isso mesmo, nesse estranho ciclo da vida.
Na semana anterior, estava falando com as amigas mais próximas da faculdade para marcarmos um encontro do pessoal todo. Queríamos fazer isso por saudades de alguns, mas, sejamos sinceros, também para analisar muitos outros. Eu já sabia como seria esse encontro. Meia dúzia de sorrisos para cada duas dúzias de cochichos. Comentaríamos quem engordou, quem está ficando careca, quem está ganhando muito, quem se perdeu na carreira. Abraçaríamos alguns, criticaríamos tantos outros (sobretudo aqueles de quem guardamos pequenas mágoas ou outras merdinhas).
Até que esse amigo morreu, e eu percebi o quão ridículo era este espírito de reencontro. Será mesmo que nós somos tão pequenos? Que não somos capazes de nos encontrar de peito aberto, com um pouco mais de transparência? Que não somos capazes de desejar verdadeiramente que todos estejam bem e felizes? Que não somos capazes de abandonar ressentimentos tão insignificantes?
Na noite em que soube da perda desse amigo coloquei tudo em questão. Agi diferente. Olhei com mais cuidado para os lados antes de atravessar a rua. Não quis beber álcool no jantar. Mandei uma mensagem pacífica ao meu ex, que também era amigo dele. Liguei para a minha mãe. Olhei para o meu namorado dormindo e agradeci. Fiquei com os olhos abertos, estatelados em direção ao teto a madrugada toda, repensando coisas, revendo cenas e pensando, angustiada, no quão efêmera é essa vida na qual você curte a foto de um amigo instagram de manhã e à noite descobre que ele está morto.
Acordei, tomei meu remédio da tireoide e respeitei os 30 minutos de jejum, que costumo fingir que só precisam ser uns 10. Mandei uma mensagem no grupo dos meus amigos de infância, dizendo o quanto os amo e o quanto a distância me incomoda. Uma de nós morreu aos 19 anos e parece que, quase 10 anos depois, nós esquecemos parte da união e da incondicionalidade que isso nos proporcionou. Demos espaço às merdinhas. Mas naquela manhã eu sabia perfeitamente que merdinhas eram só merdinhas.
Marquei exame de sangue e dentista. Decidi pedir aos meus irmãos que não deixem minhas sobrinhas serem filhas únicas. Comprei frutas orgânicas. Pendurei os quadros novos e coloquei outras fotos nos porta-retratos. Joguei fora umas coisas meio velhas que estavam na despensa. Cortei folhas amareladas das plantas da varanda. Respondi mensagens pendentes. Pedi desculpas.
Marcamos o encontro do pessoal da faculdade em homenagem a ele. Acho que vamos todos sem máscaras.
Sigo sem entender bem o sentido destas perdas. Sigo um pouco confusa com estas estranhas decisões do destino. Sigo um pouco desnorteada. Parece que a única coisa que entendo, por enquanto, é que a gente não deveria precisar perder alguém querido para voltar a tentar ser o melhor que a gente pode.
Em vez de anjo da guarda, eu queria ter nos bastidores da minha vida uma equipe de roteiristas profissionais, com poder de mudar minha história.
Cada vez que estivesse a ponto de fazer algo definitivo, a cena seria congelada ao meu redor – todos parados como estátuas, no meio de um gesto ou de uma palavra – e eu ouviria ponderações sobre a melhor maneira de agir.
“Se você disser isso, ela irá embora em uma semana”, avisaria o roteirista, de prancheta na mão, ajeitando os óculos de acetato azul. “É isso mesmo que você deseja?” Mesmo hesitando, eu diria, “sim”, ao que ele, sorrindo, falaria em voz alta, para alguém oculto atrás das paredes. “OK, deixa correr!” E a cena teria sequência, para o bem ou para o mal.
Imagine de quantas dores e arrependimentos seríamos poupados se a vida nos desse essa pequena oportunidade. Os roteiristas saberiam o que as alternativas de futuro nos reservam e ajudariam, com pequenas advertências e empurrões, a tomarmos o caminho mais divertido até o final feliz.
Só que as coisas não são assim.
A gente lida todos os dias com situações que vão afetar o resto da nossa vida, armados com limitada inteligência, pouca experiência e o nosso temperamento, que tanto ajuda quanto atrapalha. Sempre sob pressão do tempo.
Ninguém nos dá meia hora para reagir a um insulto ou responder a uma pergunta simples: você me ama? A resposta tem de vir na hora, precisa e certeira, ou adeus, pode esquecer. É duro tomar decisões com a realidade em movimento, mas é isso que nos cabe.
Por causa da pressa e do improviso, sinto que a minha vida é uma orgia de conversas inacabadas.
Outro dia, faz pouco, terminou um grande amor, e ainda acho que não disse tudo, que não expliquei o suficiente. Todos os dias me pego conversando com quem passou pela minha vida sem ouvir a frase verdadeira, o pedido sincero de desculpas, a confissão absoluta, a declaração arrebatada, a ironia cortante, o cala-boca contumaz.
Os diálogos inexistentes me perseguem como uma matilha de cachorros de rua.
Uma mulher que eu amei, e que já não me amava, disse que falava comigo todos os dias. Em silêncio, no trabalho. Em voz alta, em casa. Comigo acontecia o mesmo. Meus diálogos com ela se estendiam noite adentro, cheio de idas e vindas, labirínticos e nostálgicos. Eu precisava dizer coisas que não tivera coragem ou perspicácia de dizer ao seu tempo. E as dizia. Às vezes, no meio de um sonho, ainda digo. Até acordado penso em frases poderosas que refariam fatos e removeriam o tempo e os sentimentos. Frases que nunca serão ditas.
Outro dia, sentada no sofá de casa, alguém me lembrou de outras conversas que jamais ocorrerão: entre pai e filha, entre amiga e amigo, mesmo entre irmãos que se amam. No coração das relações mais íntimas moram palavras terríveis, que nunca serão pronunciadas. Para quê? A verdade tem o dom de destruir, revelando o oposto de nossos afetos. Melhor calar a boca.
No interior das relações amorosas, ocorre o contrário: o silêncio nos consome. As frases que não são ditas se acumulam e impedem a circulação dos sentimentos. As pessoas se deitam lado a lado, caladas, noite após noite, cheias de queixas e ressentimentos. As manchas de silêncio tornam a relação irrespirável.
É preciso falar, portanto. É preciso explicar, corrigir, alertar, reclamar, exigir. Soluçar, também. As conversas nos salvam de nós mesmos.
Morro de medo das pessoas que andam pelas ruas falando sozinhas. É como se as coisas não ditas tivessem se apossado delas. Algumas gritam nos viadutos na direção dos carros. Outras falam baixinho, numa espécie de monólogo delicado. Todas conversam, contam, argumentam com alguém que não está mais lá, mas segue presente de alguma forma. A mente dos malucos está presa aos diálogos e decisões passados.
Por isso eu queria uma equipe de redatores a minha disposição, permanentemente.
Se eu me calasse, permitindo por raiva ou teimosia que coisas boas se estragassem, eles diriam: pare com isso, não seja criança, acerte as coisas, já! Se eu agisse com indiferença pelos sentimentos dos outros, eles também congelariam a cena. Diriam: “Olhe, veja como ela está sofrendo, abrace-a!”. Quando eu me omitisse por medo, quando eu me calasse por cautela, quando eu resolvesse gritar na hora errada, com a pessoa errada, com o amor da minha vida, me interromperiam: “Não faça isso! Não seja covarde! Não despeje nos outros as suas frustrações!”.
Na falta dessa equipe de apoio, vou me virando sozinho. Falo com a analista, converso com os amigos, divago em voz alta na companhia de Carlota e Elizabeth, minhas gatas. Sempre depois dos fatos consumados, infelizmente. Sempre olhando o retrovisor. Esta é outra realidade imutável: podemos lidar apenas com o que já passou. A gente vive, erra, pensa e (quem sabe?) aprende a não se afogar novamente nas palavras: as ditas e as não ditas.
Houve um tempo em que tudo parecia muito estável e muito seguro. Tudo e todos. Eles eram todo dia os mesmos e nós achávamos graça nas mesmas piadas, assistíamos os mesmos programas na TV, gostávamos das mesmas bandas. Nossos tímidos planos de viagens eram conjuntos, nossos planos para o fim de semana harmonizavam perfeitamente. Esse tempo passou.
Hoje em dia é um pouco estranho. O tipos de humor mudaram. Cada um assiste uma série diferente- somente game of thrones ainda é capaz de unir parte de nós. Alguns ouvem Liniker enquanto outros elevam o volume ao máximo berrando sobre o cake by the ocean. Uns fumam, outros não comem carne, outros só sabem se divertir com muito destilado, outros insistem em propor restaurantes que cobram R$150 por cabeça. A gente acaba ficando confuso.
Poderia dizer que hoje tenho um rol muito mais rico e diverso de amigos. Opiniões diferentes, programas de vários estilos, trilha sonora variada. Mas eu não vou mentir: sinto falta de como tudo era antes. Sinto falta de quando a gente marcava um hamburger e pronto, chegava, ria, dividia a conta e estava tudo bem. Hoje tem que ter antecedência, tem debate sobre o lugar escolhido, tem uma leve sensação de que nossos velhos conhecidos, por vezes, se tornam novos desconhecidos- com hábitos, propostas e roteiros inéditos.
Talvez o sinal mais evidente seja o fato das nossas amizades terem passado a viver de lembranças. Nos encontramos e começamos a falar sobre aquele dia engraçadíssimo de 2001, sobre aquele namorado esquisito que a Ju tinha aos 15 anos, sobre o porre na viagem de formatura. Nos apegamos às nossas melhores memórias e parece que são só elas que ainda nos unem. Sentados numa mesa de restaurante, ruminamos o nosso delicioso passado e então eu me pergunto: o que estamos construindo para nos lembrarmos daqui outros 15 anos? Ou as memórias de escola e faculdade deverão perdurar até lá?
Dói bastante perceber os desencontros. Uma liga muito para a marca da roupa, outra só para a legenda partidária. Um milita contra a homofobia, outro ainda faz piada com homem que usa camisa cor de rosa. Uma namora um advogado e outra um artista plástico. É fácil entender porque encontramos refúgio tão seguro nas memórias. As diferenças do presente nos assustam e é mais fácil nos divertirmos com as semelhanças do passado.
Mas a parte mais difícil é assumir que a gente também mudou- e não foi pouco. É fácil culpar os outros, dizer que um era mais divertido antigamente, outro era mais maleável, o terceiro não namorava esse babaca de hoje, a quarta não era workaholic, o quinto não ficava citando filósofos no bar. Mas e a gente? A gente também não mudou? Também não frustra em certa medida as expectativas e as lembranças alheias? É claro que sim, o tempo não perdoa ninguém.
A única coisa que segue segura é o afeto. Só nos encontramos- quando as agendas permitem- por causa do afeto que perdura. É ele quem resiste às nossas divergências políticas, aos nossos cônjuges que não têm nada a ver um com o outro, aos nossos empregos que não dialogam, aos nossos interesses tão díspares. É o afeto que toma porrada, que vê aquela gente tão mudada, mas que permanece de pé e resiste, agarrando-as. É por ele que a gente insiste. É por ele que a gente não larga o osso.
E o afeto mora no melhor lugar possível: no outro. Aquela pessoa que mudou o corte de cabelo, o tipo de roupa e o discurso ainda é aquela na qual nosso afeto se instalou há tantos anos e se nega a ir embora. E talvez a gente precise entender que não é necessário usar o passado como escudo. Se o afeto ainda mora ali, nós ainda somos os mesmos. Todo o resto- bolsa, tom de voz, bebida e trabalho- é carcaça. A essência não mudou.
De fato é mais fácil culpar o outro, culpar a vida, maldizer o presente e vangloriar o passado do que trabalhar as diferenças com afeto. É chato chegar no bar e escolher carinhosamente, um assunto que agrade o outro. É mais fácil chegar e falar sobre o que nos interessa e reclamar que as conversas não fluem. Mas não tem jeito: todo amor dá trabalho. E, sabe? São eles. São os amigos da vida toda, ainda são eles. Eles valem a pena. Eles continuam sendo a base, mesmo que tenham mudado de cor. Não desistam de mim, queridos. Eu vou sempre insistir em nós.