IVAN MARTINS
12/12/2015 - 10h35 - Atualizado 12/12/2015 15h05
Eu achava que era coisa de filme. Na vida real, nunca soube de uma mulher ofendida jogar um copo de bebida no ofensor. Mas aconteceu em Brasília, na noite de quarta-feira, durante uma festa de políticos na casa do senador Eunício Oliveira, do PMDB. O jornal O Globo contou direitinho.
Conversavam numa roda, entre outras pessoas, a ministra da Agricultura Kátia Abreu e o senador Ronaldo Caiado, que é médico. Ele contava que numa ocasião teve de aplicar uma injeção na ministra. Nesse momento, o senador José Serra interveio, dirigindo-se a Kátia Abreu em tom de brincadeira:
- O que eu tenho ouvido é que você tem fama de ser muito namoradeira.
Ao que ela, passados alguns segundos, retrucou:
- Me respeite que sou uma mulher casada e mesmo quando solteira, ao contrário de você, nunca traí.
Com essas palavras, diz O Globo, Kátia atirou o copo na direção de Serra.
Se ainda houvesse dúvida sobre a veracidade do episódio, elas foram desfeitas pelo Twitter da ministra no dia seguinte:
- Reagi a altura de uma mulher que preza a sua honra. Todas as mulheres conhecem bem o eufemismo da expressão “namoradeira”
- Foi infeliz, desrespeitoso, arrogante e machista.
Vamos tentar por dois minutos abstrair os nomes famosos e imaginar a cena com duas pessoas quaisquer. Ela é didática. Um homem se aproxima de uma mulher que conversa com outros homens e diz de forma casual:
- Tenho ouvido que você tem fama de ser muito namoradeira.
Essa frase é um catálogo de horrores. Começa com “tenho ouvido”, que sugere que quem fala é porta-voz de fofocas. Depois, segue com “você tem fama”, que informa, maldosamente, acintosamente, sobre uma suposta reputação da mulher, que prolifera às costas dela. Ao final, se explica que a fama dela é de ser “muito namoradeira”. Isso quer dizer, literalmente, que ela teve ou tem muitos namorados. Figurativamente, implica dizer que é uma mulher de vários parceiros sexuais. Entre amigos íntimos, num ambiente extremamente liberal, poderia soar como elogio. Em qualquer outra situação, sobretudo para uma mulher casada, tende a ser uma agressão, e provavelmente expressa um julgamento moral - mas não só isso.
O pior dessa frase é que ela contém uma aula de machismo. Dita em público, sobretudo diante de outros homens, ela carrega a intenção velada (consciente ou inconsciente) de intimidar a mulher. Equivale a uma acusação de promiscuidade, que costuma embaraçar as pessoas e colocá-las na defensiva. Quem fala uma coisa dessas se coloca (intencionalmente ou não), numa posição acusatória, de poder, porque comentários desse tipo expõem e fragilizam as mulheres, que vivem numa cultura (a nossa!) em que ser “galinha” pode ser a pior coisa do mundo. Mesmo quando tenta se vestir de piada, é bullying, que todos sabem ser uma tentativa de dominação. Machismo, enfim.
Ninguém sabe o que o senador Serra tinha em mente quando disse o que disse – ele afirma que foi uma brincadeira e já pediu desculpas por meio de seus assessores - mas a reação pública da ministra mostra que ela se sentiu ofendida. Em se tratando de Brasília, onde a disputa por poder está atrás de cada gesto, pode ter parecido a ela que estava em curso uma tentativa psicológica de intimidação. Ela e Serra, afinal, estão em campos opostos na questão política mais importante dos últimos anos. O senador trabalha pelo impeachment da presidente Dilma, enquanto a ministra a defende. A divulgação intensa que ela deu ao episódio, ferindo a reputação do senador, também faz parte da luta política.
A reação espetacular de Kátia Abreu, arremesando copo e bebida contra Serra, foi típica de uma mulher valente de índole conservadora: ela defendeu sua honra agressivamente, enquanto questionava a honra do senador. Poderia, se fosse outra pessoa, ter reagido de forma igualmente altiva, mas com postura liberal. Nesse caso, a acusação de promiscuidade sexual sequer faria sentido e a resposta seria diferente: “Sim, eu faço sexo, qual é o problema? Você não faz?” Ambas são reações de quem é capaz de se defender, porém. Muitas mulheres ficariam simplesmente paralisadas diante de uma insinuação de promiscuidade, mesmo feita em tom jovial. Acontece todos os dias. O peso da moral conservadora é avassalador e se aplica sobre as mulheres de forma particularmente opressiva. É preciso ter força interior e presença de espírito para reagir à altura e não se deixar assustar.
Faz alguns anos, um amigo jornalista dividiu comigo a história que um empresário contara a ele. Esse empresário estava numa disputa acirrada de negócios e, do outro lado da mesa, opondo-se obstinadamente a ele, havia uma executiva famosa, de quem ele conhecia um parceiro sexual. Num intervalo da negociação, o sujeito se aproximou da executiva, que estava sozinha, e disse a ela três ou quatro grosserias pesadas sobre a vida sexual dela com o amante. Ela ficou tão chocada com a baixaria, sentiu-se tão atordoada, que dali em diante deixou de ser um problema para o sujeito fechar o negócio. Teve medo. Segundo o meu amigo, o empresário contava essa história cheio de orgulho pela sua astúcia e ousadia. Às vezes, baixaria funciona. Outras vezes, não.
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/12/infeliz-desrespeitoso-arrogante-e-machista.html
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