CAMILA PAVANELLI DE LORENZI
04/11/2015 - 08h48 - Atualizado 04/11/2015 09h52
Depois de um tempo, é fácil esquecer que as pessoas mortas foram vivas. As pessoas mortas sobrevivem como lembranças. Aquela vez que fomos a Paris. À venda da esquina. Ao simba safári. E vamos nos convencendo disso, que as pessoas mortas das nossas vidas são amálgamas de lembranças sem existência real que não em nossas cabeças, nas nossas e, no máximo, nas daqueles que compartilham conosco a pessoa morta em questão. É difícil, é difícil lembrar que aquele dia da venda da esquina em que ela me ensinou o que era broto de bambu, não era para ser uma lembrança, era para ser apenas mais um dia igual a todos os outros que se repetiriam pela vida afora. A Paris tudo bem, a Paris as pessoas vão para trazer lembranças, mas à venda da esquina vamos apenas para comprar os ingredientes do almoço.
E então de repente a pessoa morta existe como lembrança não apenas para mim meu pai minha avó minha tia mas também para dezenas, centenas de pessoas que não conheço, que não me conhecem, que só sabem de mim como a filha daquela moça que morreu, coitada.
Esta semana conheci uma mulher que conheceu minha mãe – só de longe, só de vista. A mulher nem sabia que minha mãe tinha morrido, mas minha mãe já sobrevivia como lembrança na cabeça dela.
“Era uma mulher elegantíssima”, disse.
Contei sobre o acidente. Minutos depois, ela volta com o marido. Perguntou se ele se lembrava de algum acidente fatal, há não sei quantos anos, na avenida tal e tal. Sim, ele lembrava. A vítima do acidente tinha sido professora de francês dele.
“Era uma mulher lindíssima”, disse.
Adorei a diferença no adjetivo. A mulher enfatizou o processo, percebeu ali uma inteligência em se vestir, se maquiar, se portar. O homem enfatizou o resultado do processo, a beleza final.
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Uma amiga minha passou anos de sua vida bastante imersa e paralisada em um relacionamento amoroso naufragado. Fiquei com bastante aflição dessa amiga (não por acaso ela é e sempre será minha amiga). Eu, afundada no relacionamento amoroso primordial.
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E tem as fotos. Uma foto, no caso. Não a foto que está na sala, esta é a foto para a qual se olha e não mais se vê. Mas uma foto 5×7, dessas de passaporte, com a diferença de que minha mãe está posicionada obliquamente em relação à câmera, o olhar firmemente centrado no além. Uma mulher tão diferente de mim. A pele tão mais escura, o cabelo tão mais crespo, o olhar mais expressivo, o nariz menos escandaloso, a boca menos desmesurada. E essa mulher que está lá, que não tem nada a ver comigo – existiu. Essa mulher abriu conta no banco. Tocou Chopin no piano. Virou a noite preparando aula. E eu não sei nada sobre essa mulher exceto esses detalhes. Exceto o que me contam. Exceto que, às vezes, sobrevém o horror.
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“Pouco tempo depois que ela morreu, a escola de francês fechou, né?”, comentei com o homem de quem minha mãe tinha sido professora. Foi sim, ele respondeu. “Ela era a alma do negócio”.
Elegantíssima, lindíssima, alma do negócio – qualificadores que me são estranhos, que não brotaram da minha cabeça, que jamais apliquei a ela, e que não obstante não são menos legítimos que os meus. Eles não se aplicam à minha mãe. Eles se aplicam à mulher da foto.
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O horror em nada se parece com a ausência da mulher da foto. É difícil ligar os pontos e acreditar que a mulher que existiu, a mulher da foto, é a mesma pessoa que mora na minha cabeça. Tenho muito mais intimidade com a pessoa que mora na minha cabeça. Convivo com ela há vinte e três anos.
Com a mulher da foto, convivi apenas dez.
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Camila Pavanelli de Lorenzi é psicóloga formada pela USP, doutoranda de psicologia social e ativista ambiental, responsável pelo Boletim da Falta D’água em São Paulo. Escreve a coluna de hoje como parte do projeto #AgoraÉQueSãoElas, pelo qual, nesta semana, os homens colunistas cedem seus espaços para que mulheres tratem dos temas que lhes pareçam relevantes
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/ivan-martins/noticia/2015/11/mulher-da-foto.html
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