RUTH MANUS
25 Março 2015 | 11:08
Pra morrer, basta estar vivo. Todos sabemos dessa incômoda verdade. É inevitável, de vez em quando, pensar sobre esse assunto cruel que torna insignificante a imensa maioria das nossas preocupações, metas e conquistas.
Pensamos na dor de perder os avós, no pavor do dia em que perderemos nossos pais (esperando que a vida seja generosa o suficiente para não morrermos antes deles), na angústia de pensarmos se morreremos antes ou depois daquele que amamos. Mas, estranhamente, quase nunca colocamos os amigos nessa roda. Parece que os enxergamos como pessoas alheias a essa estapafúrdia ideia de morte.
Até que um deles morre.
Sério: como pode?! Amigos não devem morrer! Amigos não podem morrer! Amigos não foram feitos pra morrer!
Abre-se em nós uma imensa ferida que até pode parar de doer, mas nunca sara. Barganha, revolta, transtorno. Inconformismo com o mundo. Sensação de injustiça, de desamparo, de descrença na vida. Sensação eterna de vazio.
Tem dias em que a gente simplesmente esquece que eles não estão aqui, outros em que faz questão de fingir que esqueceu. Nos imaginamos, hoje à noite, numa mesa de bar, rindo e falando mal da vida, como sempre foi. Nos imaginamos perto deles, como se nada tivesse acontecido, como uma espécie de afronta a essa piada de mau gosto do destino.
Quem permitiu que os amigos morressem e que esse buraco se instaurasse no nosso peito, para nunca mais sair?
E é tão duro ter que viver das lembranças. Ter que mendigar sonhos com eles antes de dormir. Ter que implorar por sinais nas noites de angústia em que eles indicariam o melhor caminho. É tão pouco ter que imaginar. É tão difícil fechar os olhos e buscar a presença de alguma forma. É tão, tão duro.
A saudade vai tentando massacrar a memória, o tempo vai deixando o passado meio desfocado e a gente precisa lutar para não deixar que as lembranças esmoreçam. Para não permitir que a eterna indignação da perda se torne mais relevante do que as coisas boas vividas.
Às vezes nos flagramos imaginando como eles estariam agora, se não nos tivessem sido roubados pelo tempo. Imaginamos se teriam engordado, se namorariam a mesma pessoa, se estariam felizes no emprego, se continuariam gostando daquela velha música. Imaginamos se ainda usariam aqueles sapatos e se o corte de cabelo seria o mesmo.
Mas acima de tudo: imaginamos o que eles diriam sobre essa vida que estamos levando. Se diriam que a calça que estamos vestindo é cafona, se teriam apoiado nosso pedido de demissão, se achariam que esse relacionamento em que estamos é uma fria, se diriam “vamos sair hoje, que eu quero te falar algumas coisas.”.
Mas eles não estão aqui. Não vai ter barzinho, não vai ter conselho, não vai ter crítica acompanhada de risada, não vai ter xingamento bem vindo. Não vai ter abraço no fim da noite.
Passam os meses, os anos. A gente fica aguardando o dia em que algo mude. Ou que a gente pare de questionar, ou que eles surjam de surpresa numa festa de aniversário, contando que tudo não passou de um grande engano.
A verdade é que o tempo pode até diminuir a dor, mas nunca cura essa falta. E que a gente tem que parar de sofrer, para permitir que eles voem. Mas que talvez a gente nunca se conforme. Que talvez a gente passe a vida inteira tentando entender. E não entenda.
Mas quem tem amigos sabe: amigos nunca vão embora. Nós nunca fomos embora deles, nunca os despejamos do nosso peito, nunca deixamos que eles virassem passado. Por que eles haveriam de fazer isso então? Não fariam. Eles estão por aí, em algum lugar, olhando por nós com aquele ar de reprovação, rindo do que nos fazia rir juntos, cantarolando as músicas de sempre.
Estão aqui, estão na gente, caminhando ao nosso lado, guiando nossos passos como sempre guiaram. Porque amigos não vão embora.
http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/por-que-os-amigos-morrem/
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