quarta-feira, 29 de abril de 2015

Ficantes

IVAN MARTINS
29/04/2015 09h18 - Atualizado em 29/04/2015 10h37

Cada tempo da vida tem sua forma de amar. Ficar, definitivamente, é uma delas. Para os momentos de dúvida, para os momentos de troca, para os momentos que se definem pela transitoriedade. Ficamos como quem vai de um canto ao outro, acompanhados. Imagine uma viagem de ônibus em direção à praia, na manhã de sábado. O ficante está ao lado, tornando as coisas melhores. A gente se despede na chegada, embora tenha sido bom. Podemos nos voltar a ver, mas não é certo. Aquele momento acabou, reticências.
Ficar é leve, necessariamente. Um ato de carinho destituído de drama. Na ausência de um futuro glorioso, ou de um passado que nos ligue e magoe, podemos ser nós mesmos, sem complicações. O compromisso é a simplicidade e o agora. O beijo sem pressa, o sexo sem lágrimas, a conversa sem recriminações. Pela manhã, alguém se levanta e sai sem fazer barulho, talvez deixando um bilhete sobre a mesa. “Foi bom”.
Com os ficantes se aprendem coisas, claro. É tudo novidade. O corpo, as palavras, os gostos. Estamos na presença de uma pessoa estranha, afinal. As poucas horas tornam-se intensas. Há códigos a serem desvendados, prazeres a serem descobertos. Isso é bom, aquilo não funciona. Diante de você há um livro inteiro, mas foi combinado, sem dizer palavra, que não se irá além da página 5, 20, 30 talvez. Operaremos no modo básico, apenas com as funções essenciais do sentimento amoroso. E seremos felizes assim, por enquanto.
 
UM AMOR DEPOIS DO OUTRO, o novo livro de Ivan Martins (Foto: Foto: Divulgação)
Destituído de ambição, o ficar produz memórias eternas. Em 10 ou 20 anos, você se lembrará de um gesto sob o chuveiro, do sol refletindo no ombro dela na praça, daquele olhar na penumbra, repleto de ternura inesperada. Esses momentos irão se costurar como retalhos secretos à sua biografia. Serão parte inalienável do que você é. Comporão, discretamente, o repertório da sua vida. Ajudarão a entender quem você é, assim como aquilo que é capaz de provocar nos outros. Ficar ensina a gostar, mas, sobretudo, ensina a ser gostado.
Haverá um dia, claro, em que ficar já não será suficiente. Você estará pronto, seu coração estará maduro, seus sentimentos renovados esperarão, ansiosos, pelo momento de se voltar para alguém. Não mais por uns dias ou por algumas horas, mas com a promessa de ser para sempre. Você desejará, então, dividir uma casa, viajar para longe, criar um cão, receber os amigos. Você almejará ter planos e uma vida em comum. Nesse momento radiante, os ficantes ficarão para trás. Não como erros ou como desvios. Certamente não como perda de tempo. Terão sido parte da jornada, etapas de um caminho, pedaços de uma obra em andamento, parte de você.

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