segunda-feira, 27 de abril de 2015

O pai de cada filho

ISABEL CLEMENTE
26/04/2015 10h03

"Então eu fiz com ele exatamente como ele fazia comigo. Disse assim: pai, imagina uma nuvem azul e respira fundo..."

"Ele fazia isso com você!?"

"Para eu relaxar...sim."

"De noite, na hora de dormir? Ele te botava para dormir!?"

"Sim, botava sim..."

"Sempre?"

"Ih, fez muito!"

"Sério, mesmo, papai te botava para dormir e te ajudava a relaxar!? Eu não sabia disso..."
"Principalmente quando eu estava com bronquite, aí ele dizia que a nuvem azul percorria todo o meu corpo até entrar pelo nariz e deixar meu pulmão todo azul."

"Que bonitinho..."

"É, era bonitinho sim."

O espanto era meu em conversa recente com minha irmã mais velha, a Sílvia, que tinha 14 anos quando eu nasci (ela vai me matar por ter contado isso). Entre nós duas, ainda vieram mais dois filhos. Sou portanto a quarta, a caçula ou a "raspa do tacho", expressão que só fui entender na íntegra aos dez anos quando cheguei na roça e vi o doce de leite sendo feito num tacho de barro.

Saber que papai a fazia dormir me deixou surpresa, nem com raiva nem com ciúme. Apenas surpresa porque eu não sabia que ele tinha tempo para isso. Incorporei esse dado novo ao perfil dele na minha cabeça e tratei de passar uma informação que ela também não tinha.

"Bem, o meu pai trazia um copão de água gelada na cama quando eu tinha sede", disse, como quem conta uma grande novidade.

"Copão?"

"Sim, de requeijão, todo suado por fora de tão gelada que a água estava. E eu tinha sede toda noite."

"Não sabia disso não."

Ele fez isso, durante muito tempo, inclusive um tempo quando ela já não estava mais com a gente por ter casado e saído de casa, e eu ainda era suficientemente criança para pedir muitos copos d´água à noite. A mamãe, em compensação, me botava para dormir, contava histórias e parava sempre quando a Chapeuzinho ia pela estrada afora..."

"Dormia?"

"Dormia. Quando acordava para contar o lobo mau já estava com a vovó na barriga ou era o caçador já resolvendo o problema..."

O pai da minha irmã tinha 25 anos quando ela nasceu. Morava de aluguel. Foi estudar Economia. Ela era filha única.

O meu pai era funcionário da Petrobras, com casa própria e duas linhas de telefone. Eu era a caçula de quatro.

O pai do meu irmão não deu bronca nele quando veio a primeira nota zero, mas chamou-o para refazer todo o exercício e mostrar que ele sabia.

O pai da minha outra irmã também a botava para dormir. Como terceira na linha filial, no entanto, ela acha que ele já não tinha tanta paciência com os pesadelos.

O pai do meu irmão botava a camisa dele suada para secar na frente do ar condicionado enquanto ele relaxava do futebol. Esse pai parece com o meu. Os dois têm mania de gelado. Até hoje.

O pai da minha irmã mais velha deu patins para ela e a estimulava a subir no trepa-trepa.

O meu pai andava de bicicleta comigo aos domingos e, coincidentemente, também queria que eu enfrentasse meus medos, os de fora em forma de manifestações da natureza (cavalos, cachorros, ondas) e os de dentro. "Você pode, Bebel". E eu ia lá e fazia, cheia de medo.

"Ele sempre pensava em algo que fosse ter algum retorno de aprendizado quando a gente era pequeno", me diz a irmã mais velha.

Toda vez que meus irmãos dizem "a gente" eles se referem a eles mesmos porque quando nasci eles acham que não eram mais tão pequenos assim.

O meu pai adorava arrumar o sótão, e aquele lugar da casa era tão inacessível que hoje eu sei o quanto de aprendizado também cabia naquela concessão que ele fazia ao me convidar para subir a escada rumo ao telhado. Ainda mais quando meus irmãos não estavam nem um pouco interessados naquilo. Eu era filha única da aventura no sótão.

As pessoas são assim, diferentes ao longo da vida. Não se pode esperar que um indivíduo seja o mesmo o tempo todo. O rigor típico da educação do primeiro filho cede espaço para algum relaxamento, ou preguiça, ou uma nova compreensão da vida depois. Vai saber. Irmãos lidam com os mesmos pais em versões alteradas pela química do tempo.

Como primeiros ou últimos da fila, teremos vantagens e desvantagens por ser quem somos. E, de qualquer forma, ainda que numa hipótese absurda, os pais fossem as mesmíssimas pessoas ao longo de toda uma vida, um filho não é igual ao outro e, tal qual elementos de tabela periódica, produzem efeitos inesperados a depender da combinação.

Nós seis - pai, mãe e quatro filhos - juntos éramos muito diferentes de apenas três no final, quando eu sobrei na casa dos pais. Cada vez que um daqueles elementos saiu para inaugurar um outro núcleo familiar com sua química irreproduzível, a minha química também foi sendo modificada por aquela ausência de disputas por lugares no sofá, pelo canal da televisão, pelo direito de falar no telefone por muito tempo, pelo silêncio maior.

O pai da nuvem azul e o pai do copo gelado são versões diferentes de um indivíduo, um pai forjado por amor, intempéries, decisões e combinações tão variadas que só poderia ser uma pessoa única para cada um de seus filhos.

A colunista estará de férias e só voltará a publicar neste espaço no dia 23 de maio.
Isabel Clemente escreve aos domingos
http://epoca.globo.com/colunas-e-blogs/isabel-clemente/noticia/2015/04/o-pai-de-cada-filho.html

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