quinta-feira, 3 de abril de 2014

A maioria está errada

IVAN MARTINS
02/04/2014 09h53

Aos trancos e barrancos, o Brasil vai se tornando um país melhor para quem vive aqui. Um dia depois da pesquisa do IPEA que mostrou que 65% dos homens e mulheres brasileiros acreditam que mulheres que “usam roupa que mostra o corpo merecem ser atacadas” – quer dizer, sexualmente violentadas, estupradas, abusadas – entrou no ar, nas redes sociais, uma reação espontânea contra essa barbaridade.

O movimento chama-se “Não mereço ser estuprada”, foi criado pela jornalista Nana Queiroz, de 28 anos, e tem a cara da internet: quem apóia faz uma foto de si mesmo com uma placa repetindo o mote da campanha. É um selfie com conteúdo. As mulheres aderiram em peso, muitos homens entraram na onda e a página do Facebook do movimento conseguiu – além de centenas de fotos - quase 53 mil apoios. No domingo, o Fantástico entrevistou Nana Queiroz, falou da campanha e abriu as páginas do programa na internet para quem quisesse apoiar o protesto. Valeu Fantástico! Curti!

Muita gente ficou compreensivelmente amargurada com o resultado da pesquisa do IPEA. É duro descobrir que 58,5% das pessoas ao nosso redor (inclusive as mulheres, que foram 66% das pessoas entrevistadas pela pesquisa), acham que se as mulheres “soubessem se comportar” haveria menos estupros. Essa lógica é fruto da mais profunda ignorância.
>> A culpa é delas. É o que pensam os brasileiros sobre a violência contra a mulher

Na Arábia Saudita, talvez o país mais atrasado do mundo em termos de costumes, onde as mulheres não podem guiar automóveis ou andar sozinhas nas ruas, uma pesquisa entre homens concluiu que a culpa dos estupros é da maquiagem. Como as mulheres sauditas andam cobertas dos pés à cabeça, e os homens só lhes vêem os olhos, disseram que elas são estupradas porque usam rímel. Quer dizer: ao exibir apenas os olhos maquiados, elas não estão se comportando, por isso são violentadas.
Faz sentido essa conversa de má fé? Faz sentido atribuir às mulheres a culpa pela violência criminosa dos homens? Claro que não. Nem lá, nem aqui. No mundo inteiro, sabe-se que as mulheres são estupradas usando todo tipo de roupa - inclusive o uniforme militar, quando servem o exército.

A alegação de que “a culpa do estupro é delas” - por estarem usando saia curta, ou por estarem sozinhas na rua, ou por andarem de trem, voltando do trabalho – é uma ladainha machista que serve de desculpa para criminosos. No Brasil, os números do IPEA mostram que essa visão distorcida da realidade prolifera sobretudo entre pessoas de pouca instrução, assim como entre alguns grupos religiosos.

“Chama atenção o fato de que os católicos têm chance 1,4 vez maior de  concordarem total ou parcialmente com essa afirmação (a culpabilização do comportamento feminino pela violência sexual), e evangélicos 1,5 vez maior”, diz o estudo. Eu, que não sou religioso, mas cresci entre uma família católica e outra batista, não reconheço esse cristianismo do “estupro merecido”.

O que mais me chocou na pesquisa, porém, foi o apoio das mulheres à ideias que vão contra elas mesmas. Devem ser mulheres tristes, recalcadas, que foram ensinadas a difamar aquelas que agem com liberdade em relação ao próprio corpo. Por exibir pernas e decote, as “exibidas” mereceriam ser estupradas. O problema com essa ideia – além do preconceito sem justificativa contra a roupa e o comportamento dos outros - é que estuprador não escolhe assim.

Segundo o IPEA, 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes. E 11% são do sexo masculino, adultos ou meninos. Diante desses números, como fica a conversa sobre roupas? Vamos esconder as pernas dos nossos meninos de 10 anos ou seria melhor proibir as meninas de 12 anos de usarem vestidos? Da minha parte, acho mais produtivo denunciar à polícia os caras que andam pelas ruas assediando mulheres e meninas. Ou defendendo na internet o estupro e o encoxamento no transporte público. Esses são os verdadeiros culpados. As mulheres, adolescentes e crianças são vítimas.

Um dos efeitos surpreendentes da campanha de Nana Queiroz foi a reação direta dos grupos pró-estupro contra ela. Os amigos e simpatizantes dos estupradores foram à página dela no Facebook (homens e mulheres, vejam bem) para ameaçar, xingar e se gabar de já ter estuprado. Formou-se uma corrente de baixaria e ignorância de dar asco, que teve a resposta que merecia: mais apoio à atitude de Nana, mais repercussão na imprensa (inclusive internacional) e mais gente, muito mais gente, postando fotos e aderindo ao movimento.

É por isso que eu acho que o Brasil tem jeito.

No passado, uma pesquisa como essa do IPEA teria ficado apenas na constatação de que a maioria dos brasileiros (inclusive as mulheres) são moralmente a favor do estupro, desde que as mulheres estejam usando saia curta. Não haveria uma voz para rebater esse absurdo. Os machistas, os ignorantes e os moralistas teriam, por assim dizer, a última palavra. Agora, não.

Uma moça valente ficou indignada, fez um post no Facebook, e, de repente, abriu espaço para que milhares de pessoas mostrassem a sua indignação com a barbaridade exibida pela pesquisa. E isso acabou na TV, em horário nobre. Quer dizer, a turma do estupro pode ser maioria estatística, mas eles foram acuados pela reação da minoria moral – que, neste caso, acima de qualquer dúvida, representa não apenas a Lei, mas a Justiça e a Civilização como nós a entendemos no século XXI. Tudo em letras maiúculas.
 
Ivan Martins escreve às quartas-feiras.

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