O que acontece quando o nosso desejo desafia a lei da gravidade
IVAN MARTINS
31/07/2013 07h48
Conheço um sujeito que se apaixonou pela cunhada. Um dia começou a pensar nela antes de dormir. Pouco depois, percebeu que não via a hora de encontrá-la nas reuniões de família. Não que fosse uma beldade, ele me disse. Era apenas uma gordinha brejeira, diferente da pálida elegante que ele namorava. De tanto desejar a mulher do irmão, começou a imaginar que ela também o queria. Achou que percebia olhares, sorrisos, raspões de corpo na porta da cozinha. Um dia, meio bêbado no almoço de domingo, na casa dos pais, teve certeza de que ela tocava os pés dele embaixo da mesa. Uma loucura.
Como não era personagem do Nelson Rodrigues, nem a vida dele uma tragédia suburbana, num dado momento o surto passou, antes que ele tivesse tempo de fazer qualquer loucura. De alguma maneira, percebeu que, em vez paixão, o que estava sentindo era puro assanhamento - explicável, em boa medida, pelos problemas dele com a namorada. Quando as coisas recomeçaram a funcionar na intimidade dele, a cunhada voltou a ser apenas a mulher sorridente e carinhosa que sempre fora.
Por trás dessa história inofensiva existe algo que eu chamo de “afetos impossíveis”. O alvo desses sentimentos insolúveis pode ser qualquer pessoa, mas a situação é sempre a mesma: uma fantasia amorosa invade a nossa consciência e ocupa o espaço da vida real. Em vez de mandá-la para o ralo dos devaneios inconfessáveis, nós abraçamos a aberração. Então os problemas começam.
Há homens maduros que se apaixonam pela filha do vizinho. Há professoras que ficam obcecadas por alunos adolescentes. Há garotas transtornadas por outras garotas que nada querem com elas. Até gente enamorada do amigo ou da amiga cabe nessa definição. O que liga todos esses casos é a ausência de esperança. O que os torna parecido é o fato de esporem os caprichos do nosso desejo.
Nós queremos tudo, o tempo inteiro. Afeto, sexo, admiração, objetos. É um milagre de sanidade que a máquina de querer que somos nós consiga estabelecer com o mundo – e com outras pessoas transbordando de vontades – alguma relação civilizada. Na maior parte do tempo, mantemos sob controle o aparato desenfreado de querer. Aplicamos sobre ele o duro princípio da realidade. Eu quero, mas Fulana não quer. Eu tenho vontade, mas não posso. Já tentamos e não deu certo. São mecanismos racionais de defesa que funcionam. Secretamente ainda queremos, mas esses mecanismos nos ajudam a socar a vontade inconfessável no porão da alma, lá embaixo, onde só entramos escondidos uma vez por ano, geralmente bêbados.
Quando permitimos que uma vontade assim escape do porão ela vira um afeto impossível, espécie de Godzila emocional destruindo o centro de Tóquio, que somos nós. Desejo pela cunhada, paixão pelo amigo gay, o impulso de procurar aquela mulher que agora está casada com dois filhos. Que tal escrever, de novo, para aquela pessoa que trata você como lixo? Ou reatar o romance destrutivo que pôs à mostra o que há de pior em você?
Não é preciso ser tabu para ser um afeto impossível. Cada um de nós conhece melhor que ninguém o rosto do seu mostro e os contornos do porão sombrio de onde ele saiu. São desejos sem correspondência na realidade. Autoindulgências perigosas. Situações trágicas, no sentido de que o seu desfecho é mais ou menos inevitável desde o início. Coisas que nos machucam, e, no limite, são capazes de nos destruir. Quem se concede esse tipo de fantasia está fadado a dar com os burros n’agua 9,5 em cada 10 vezes. Mas muitos insistem em tentar.
Afinal, hoje em dia vivemos para realizar os nossos desejos. Acreditamos que a satisfação das nossas fantasias é a única forma de felicidade - na vida material e nas relações afetivas. Em vez de cultivar o senso de proporção e de realidade, agimos, na vida amorosa, como consumidores afoitos para quem tudo está disponível. Acreditamos no triunfo do desejo mesmo que ele dispute com a lei da gravidade.
Pois eu acho que os limites existem. Cunhada não pode, filha do vizinho é demais, gente maluca não dá. Quem apenas nos faz sofrer está fora da lista, paixão platônica por amigos é burrice, dependente químico precisa de médico. Nem tudo que desejamos é legítimo, afinal. Nem tudo pode. Um dia temos de aprender a dizer não para nós mesmos e olhar os erros de frente. Aprender com as decepções. Em vez de ilusão, realidade. Em vez de devaneio, mundo real. Os afetos impossíveis resultam em boas histórias do Nelson Rodrigues – mas são histórias que ninguém quer levar na própria biografia.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)