Ruth Manus
20 Julho 2016 | 11h56
Para alguns, a decisão de viver de mala foi uma escolha. Deliberada, pensada, definida calmamente. Para outros, foi surpresa. Foi no susto, na marra, na raça. Para todos, viver de mala será sempre um misto de liberdade e tormento.
Viver de mala, na ponte aérea, no ônibus intercidades, na mudança semanal de casa, costuma trazer sensações duplas: a de pertencer a vários lugares e ao mesmo tempo não pertencer a nenhum. A de não ter a vida serena, repousada num único lugar e ao mesmo tempo ter uma vida livre, que se coloca numa sobre rodas e se leva para onde quiser.
A vida de mala é desgastante. Uma peça que a gente sempre esquece. Um sapato que nunca cabe naquele canto. Um dorzinha persistente nas costas por causa da alça, do peso, por puxar tanto e sempre aquele necessário trambolho. Sempre tem algo que falta, algo que sobra, algo que a gente insiste em esquecer.
Depois de um certo tempo, a mala já funciona como um braço ou uma perna. Ela já faz parte da gente. Já conhecemos seus defeitos. O zíper que enguiça na curva, a alça que trava na hora de levantar. Você sabe quanto ela deve pesar- apesar de frequentemente desrespeitar as regras que estabeleceu como limite.
A gente não entende muito bem o que sente. Por vezes, pára de se perguntar sobre isso, para evitar chororô ou outros resmungos. Porque isso cansa. Cansa não saber bem a diferença entre lar e residência ou entre domicílio e hospedagem. Cansa ver o xampu vazar outra vez, a camisa amassar outra vez, a etiqueta de identificação sumir outra vez. Às vezes é melhor a gente não se perguntar muita coisa.
Porque até a mala fica cansada do vai e vem. Ela começa a reclamar do tempo e da quilometragem. A roda já não roda do jeito que deveria rodar. As costuras rebelam-se contra os anos e contra os livros carregados ao longo deles. O tecido denuncia os esbarrões em quinas, a falta de cuidado fruto dos atrasos ou da falta de paciência.
A palavra “mala” é utilizada não apenas para designar o objeto que transporta nossa sobrevivência, mas também, com alguma injustiça, para designar uma pessoa chata, que incomoda, pesa, dificulta tanto quanto uma mala, por vezes, sem alça.
Sim, é uma designação injusta. Porque no fim, é você e ela. São vocês dois que se atrasam juntos, correm juntos, chegam juntos. É ela que te alegra ao aparecer nas esteiras, ao não ter sumido dos porões. Ela que te permite carregar essa vida que te escolheu de alguma forma.
Viver de mala é o avesso da vida confortável, em todos os sentidos. É não ter o conforto do mesmo travesseiro sempre, da presença dos amores palpáveis diariamente, da gaveta certa, te esperando cheia de tudo no fim do dia. Mas é também não ter o conforto na sua acepção negativa. O conforto do excesso de segurança, de não viver todas as hipóteses, de não embarcar, de não fechar aquele bom e velho zíper que tem som de asas.
Viver de mala é aprender que as raízes vivem dentro da gente. Que uma peça de roupa esquecida não é nada frente às estradas da vida. Que “lar” é onde houver amor. Amor de parceiro, de filho, de pai, de mãe, de irmão, de vocação, de trabalho. É encarar o cansaço, dobrar as roupas, encaixar os livros, apertar as tampas, fechar a mala e dizer para ela “vamos lá, vamos que a vida é curta demais para ficarmos presos a armários embutidos.”
http://vida-estilo.estadao.com.br/blogs/ruth-manus/viver-de-mala/
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