quarta-feira, 5 de junho de 2013

Culpa e ressentimento


Na primeira vez, em Antes do amanhecer, de 1995, eles eram dois jovens cheios de esperanças em relação à vida que os esperava. O romance entre eles foi um sonho de uma noite de verão. Na segunda vez, em Antes do anoitecer, de 2004, eles se encontram em Paris com o peso das suas escolhas se fazendo sentir. Ele casado, pai e infeliz. Ela sozinha, temerosa de que aquilo que sentia por ele não fosse se repetir outras vezes na vida. A conversa tornou-se séria, merecedora de mais atenção. Ao final do filme, eles não se despediram. Agora, nove anos depois, sabemos, afinal, o que aconteceu com eles – e com o amor da vida deles.
Estou falando, claro, de Antes da meia-noite, o filme que estreia no Brasil na sexta-feira (7). É a terceira parte da única série de sucesso do cinema que não está baseada em violência ou aventuras juvenis. As fantasias que Céline e Jesse nos oferecem são de outro tipo. Constituem escapismo romântico para adultos – e algo mais, que vem crescendo a cada filme. 
Se você tem 20 anos, o filme pode parecer meio amargo. Se você tem 30, pode parecer que a vida não tem saídas. Aos 40, talvez tudo no filme lhe pareça bom demais. Ou você perceba que aquela forma beligerante de romance é o melhor que pode acontecer – se você optar por ser casado, monogâmico, pai ou mãe de família.
É claro que há outras opções existenciais, mas não é nesse filme que elas serão exploradas. Jesse e Celine formam um casal disposto a vencer as crises. São caretas. Estão lá para exibir os conflitos de quem fica, não de quem desiste e vai embora. Afinal, depois de nove anos de casado eles ainda se amam vertiginosamente – de um jeito que apenas o cinema permite amar.

Não vou contar o filme, mas queria sublinhar algo que, nele, me parece extremamente perturbador, e que guarda semelhança profunda com a realidade – a nova atitude de homens e mulheres no interior do casal.

No passado, sobretudo na ficção do cinema, o homem era dominante, de um jeito emocional e prático. À mulher bastava ser linda e risonha, que o sujeito cuidava do resto. Isso mudou. Neste filme, que se destina a plateias modernas, o homem é uma criatura inteligente e engraçada, quase um bufão que não faz mais do que aplacar os sentimentos exaltados e o enorme ressentimento da fêmea que ele ama.

 A Céline interpretada por Julie Delpy (que ajudou a escrever o roteiro) entra em combustão espontânea a cada cinco minutos, e cabe ao personagem-marido de Ethan Hawke, o Jesse, acalmá-la e aquietá-la. Ela é apaixonada, explosiva, determinada a romper com tudo e mandá-lo às favas, mas ele não vai permitir. Cheio de amor, e cheio de culpa (afinal, ele não sabe nada sobre a casa ou sobre a vida das filhas), ele rasteja, contemporiza, seduz e se adapta. De certa forma, representa boa parte de nós.
As relações de casal modernas estão assim. Os homens lidam com mulheres cada vez mais ocupadas e ressentidas. O trabalho, os filhos, a dupla jornada, a TPM. Eles também estão cansados, mas a carga delas é pior – por isso, como Jesse, eles se curvam ao mau humor da companheira, por isso relevam e tentam acalmá-la e compensá-la. No centro da relação estão a culpa e o ressentimento, e a combinação desses dois sentimentos estabelece a dinâmica dos casais.
Exagero? Provavelmente. Aí estará você, leitora, gemendo por um marido tipo Jesse, culpado e flexível, em vez do macho cheio de direitos que tem em em casa. Mas lembre que o seu é um exemplar em extinção. Em poucos anos ele terá desaparecido e sobrarão dois tipos de homens na praça – os que dividem todas as tarefas da vida, e têm menos culpa, e os que não dividem, garantindo com charme, grana e alguma subserviência o direito a ser bem tratados. Que tipo você prefere ter em casa?
Talvez valha perguntar, também, que tipo de mulher você quer ser. A Céline de Antes da meia-noite oferece uma referência muito contemporânea e talvez um pouco triste. Ela parece viver entre a lembrança do grande amor que virou outra coisa e a insatisfação erótica e prática com a vida real, num espaço de grande insatisfação. O trabalho dela ficou em segundo plano, a realização dela também. Sobraram as filhas, o marido e ... o ressentimento.
Nos dois filmes anteriores da série, todas as possibilidades estavam abertas. Na primeira vez eles eram muito jovens e só havia futuro à frente deles. Na segunda vez, aos 30 e poucos, eles já viviam com as consequências dos seus atos e se tratava de acertar o rumo enquanto havia tempo. Agora, as escolhas foram feitas. O resultado não é perfeito, mas a vida é assim. Ela apresiona tanto quanto liberta. Novas escolhas são sempre possíveis, mas em circunstâncias cada vez mais limitadas. E mesmo as opções certas machucam. Há algo se que se possa fazer? Optar, viver – e ir ao cinema de vez em quando assistir a um bom filme... 

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