De Ivan Martins, da Época Online
Como se diz por aí, o Brasil é um país muito louco. No carnaval, louquíssimo. No Rio de Janeiro, uma delícia.
Nos últimos três dias, andando pelas ruas lindas e malcheirosas da cidade, eu vi de tudo - do travesti dando show no vagão do metrô à alegria simples das meninas que saem do bloco para dar um mergulho no Posto de Ipanema. Mas é preciso apreciar, entender, ou, pelo menos, estar aberto à perplexidade.
Acho que a palavra-chave nestes dias é liberdade.
O travesti - esta perfeita alegoria de tudo que vai por aí – sofre os diabos durante o ano, mas, no carnaval a rua é dele. Ontem de noite, segunda-feira, um deles estava entretendo a galera no vagão do metrô que ia de Ipanema ao Catete. Desfilava, provocava, desafiava os gringos em inglês – “Do you Love me?” – e abusava da galhofa sentando no colo de marmanjos e velhinhos. Era o momento dele, com intensa cumplicidade da platéia. Fiquei pensando se haveria outro lugar no mundo, ou outras circunstâncias, em que aquele ser humano cheio de peculiaridades pudesse ser tão ele mesmo, e de uma forma tão extravagante.
Mas aí tem o outro lado. No domingo, no bloco Exalta Rei – aquele que canta música do Roberto Carlos – eu vi uma cena revoltante. Dois rapazes estavam se beijando no meio da rua, na confusão do bloco, como tantos casais hetero, quando um cara pegou o celular e foi filmar bem de pertinho, da forma mais invasiva, comentando em voz alta com os amigos dele “o amor é lindo”. Uma puta sacanagen. Os rapazes que estavam se agarrando fingiram não ter visto a provocação, e é fácil entender por quê. Mandar um cara desses para o inferno, como seria o caso, pode ser o início de uma briga e talvez de uma surra. Qualquer um pensa duas vezes.
A liberdade, portanto, é relativa. O travesti debochado tem lugar na festa, como um bufão. O casal gay tem de ser mais cauteloso: um beijo no lugar errado pode atrair atenção e confusão. Uma lástima.
Há outras divisões dentro da festa. As pessoas pobres, em sua maior parte negras, trabalham vendendo e carregando mercadorias enquanto os que podem (brancos, em boa parte) festejam. Na próspera Zona Sul do Rio de Janeiro, nestes dias, se vêem famílias inteiras comendo e dormindo na rua, enquanto descansam do trabalho braçal. Faz lembrar tristemente as cenas do Rio nos séculos 18 e 19, que ficou célebre no mundo inteiro como uma espécie de centro mundial da escravidão.
Outra divisão descarada é por gosto. Há as tribos de arrumadinhos e as tribos de debochados. Há os que se fantasiam para ficar bonitos e o quem usam a festa para fazer galhofa – e, quem sabe, pegar alguém. Eu nunca canso de me espantar com a quantidade de homens vestidos de mulher nas ruas. Ninguém parece mais feliz do que eles. Este ano, havia uma profusão de Mulheres Maravilhas nas ruas do Rio. Homens e mulheres. Mas a fantasia mais comum no Rio é a de fortão. Só pra homens. O sujeito malha o ano inteiro e sai no carnaval expondo o peitoral descoberto. Não veste nenhuma fantasia, que é para não reduzir o impacto. Acho um exagero de narcisismo, mas é carnaval...
O equivalente dos fortões são as gostosas. Elas saem fantasiadas apenas com a pele queimada de sol, as pernas perfeitas e o bocão com batom vermelho. A fantasia nem importa, desde que mínima. Minha mulher acha meio cafona. Eu olho, olho, e não consigo concordar com ela.
Fiquei comovido, no bloco do Boitatá, com uma banda que parecia ter vindo de Copenhague, na Dinamarca. Nas escadarias do Palácio Tiradentes, eles tocavam músicas brasileiras de carnaval com paixão e afinação, percussão e sopro na maior afinação. Em frente aos músicos, meia dúzia de garotas igualmente dinamarquesas executavam graciosas coreografias de samba. Uma lindas. Fiquei pensando na felicidade desse pessoal. Eles vieram de tão longe, ensaiaram tanto, e foram recebidos com a maior festa, e muitos aplausos, no carnaval do Rio. Sensacional.
Um registro: ao contrário das previsões, o ministro Joaquim Barbosa não foi um sucesso de carnaval. Em quatro dias no Rio, eu vi apenas uma máscara – repito, uma – do presidente do Supremo. Vai ver que bombou em Brasília.
Se a gente pensa em milhões de pessoas nas ruas, por tantos dias, é quase espantoso que não aconteçam mais coisas violentas ou trágicas. Ocorrem situações terríveis, como as mortes no desfile de Santos, mas, quando se pensa no tamanho da festa... Poderia ser muito pior.
Acho que existe, nesta cidade, neste país, um know-how de celebração e convívio pacífico. Outras culturas produzem um cotidiano muito melhor organizado, pacífico e seguro, mas eles não têm o poder de festejar como nós fazemos. Pense nos japoneses, nos alemães, nos ingleses. No mundo globalizado alegria é poder. No mundo obcecado por trabalho e produtividade, por regras e regulamentos, o potencial para cair na farra sem culpa e sem desastres é um tremendo diferencial.
Há quem não goste, claro. Há quem deteste o carnaval e as multidões, e que não tenha nenhum prazer ouvindo as músicas ou vendo as pessoas fantasiadas pela rua. Por esses, eu só lamento. É como viver na Suíça e odiar a neve ou nascer na Itália e detestar a passionalidade das pessoas. O sujeito assim está condenado a viver resmungando, reclamando que o Brasil deveria ser como Tal e Qual país, onde tudo funciona... Bom, um dia o Brasil vai funcionar melhor também, e ainda teremos a alegria que os outros não têm.
Agora, por favor me dêem licença que é terça-feira, meio dia, e tem muito bloquinho saindo. Viva o Carnaval!
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-martins/noticia/2013/02/liberdade-liberdade.html
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