Por Elio Gaspari, de O Globo
Na essência da política de cotas há um aspecto que exaspera seus adversários: um estudante que vai para o vestibular sem qualquer incentivo de ações afirmativas tira uma nota maior que o cotista e perde a vaga na universidade pública. Quem combate esse conceito em termos absolutos é contra a existência das cotas, cuja legalidade foi atestada pela unanimidade do Supremo Tribunal e aprovada pelo Congresso Nacional (com um só discurso contra, no Senado). É direito de cada um ficar na sua posição, minoritária também nas pesquisas de opinião.
Uma coisa é defender as cotas quando a distância é pequena, bem outra seria admitir que um estudante que faz 700 pontos na prova deve perder a vaga para outro que conseguiu apenas 400. O que é diferença pequena? Sabe-se lá, mas 300 pontos seria um absurdo.
Os adversários das cotas previam o fim do mundo se elas entrassem em vigor. Os cotistas não acompanhariam os cursos, degradariam os curriculos e fugiriam das universidades. Puro catastrofismo teórico. Passaram-se dez anos, Ícaro Luís Vidal, o primeiro cotista negro da Faculdade de Medicina da Federal da Bahia, formou-se no ano passado e nada disso aconteceu. Havia ainda também as almas apocalípticas: as cotas estimulariam o ódio racial. Esse estava só na cabeça de alguns críticos, herdeiros de um pensamento que, no século XIX, temia o caos social como consequência da Abolição.
Mesmo assim, restava a distância entre o beneficiado e o barrado. O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais divulgou uma pesquisa que foi buscar esses números no banco de dados do Sistema de Seleção Unificada. Neste ano as cotas beneficiaram 36 mil estudantes. Pode-se estimar que em 95% dos casos a distância entre a pior nota do cotista admitido e a maior nota do barrado está em torno de 100 pontos. Em 32 cursos de medicina (repetindo, medicina) a distância foi de 25,9 pontos (787,56 contra 761,67 dos cotistas).
O Inep listou as vinte faculdades onde ocorreram as maiores distâncias. Num caso extremo deu-se uma variação de 272 pontos e beneficiou uns poucos cotistas indigenas no curso de História da Federal do Maranhão. O segundo colocado foi o curso de Engenharia Elétrica da Federal do Paraná, com 181 pontos de diferença. A distância diminui, até que no 20º caso, do curso de Ciências Agrícolas do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Federal do Rio Grande do Sul, ela ficou em 128 pontos.
Pesquisas futuras explicarão como funcionava esse gargalo, pois, se a distância girava em torno de 100 pontos, os candidatos negros e pobres chegavam à pequena área, mas não conseguiam marcar o gol. É possível que a simples discussão das ações afirmativas tenha elevado a autoestima de jovens que não entravam no jogo porque achavam que universidade pública não era coisa para eles. Neste ano 864.830 candidatos (44,35%) buscaram o amparo das cotas.
A política de cotas ocupou 12,5% das vagas. Num chute, pode-se supor que estejam em torno de mil os cotistas que conseguiram entrar para a universidade com mais de cem pontos abaixo do barrado, o que vem a ser um resultado surpreendente e razoável. O fim do mundo era coisa para inglês ver.
Elio Gaspari é jornalista
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=487735&ch=n
Economista que não economiza em palavras... Porque mesmo sem motivo eu gosto de falar.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013
A força do acaso
Por Ivan Martins, da Época On-line
Tem gente que acredita em destino. Eu acredito que é o acaso quem rege a nossa existência de forma quase absoluta.
Penso no encontro acidental dos nossos pais, no desejo que poderia não ter surgido entre eles, no espermatozóide que chegou à frente de milhões de outros na corrida mais importante das nossas vidas. Quanto disso foi planejado? Nada, assim como costumam ser acidentais os nossos próprios encontros amorosos, a concepção dos nossos filhos e as circunstâncias imprevistas que nos levam a fazer amigos importantes, escolher carreira e definir a cidade onde iremos morar.
O imprevisto invade a nossa vida enquanto no debruçamos cheios de planos sobre o calendário do ano que vem.
Acho o acaso tão importante que defendo que ele deveria ser incorporado aos nossos critérios de eleição afetiva. Não adianta observar os candidatos a parceiros apenas em situações controladas, como se o amor fosse um experimento de laboratório. Se o sujeito a convidou para jantar, teve três dias para arranjar as coisas e aparece (cheiroso e bem vestido) com uma rosa vermelha e reservas para o bistrô mais concorrido da cidade, ponto para ele por Organização & Método – mas isso não deveria encerrar o período de observação.
Para saber quem realmente é o cara, melhor seria estar com ele na noite em que o pneu do carro furasse na Marginal. Ele respira fundo, sorri para você e desce para resolver o assunto ou, tudo ao contrário, se põe a dizer palavrões em voz baixa e reclamar que não deveria ter saído de casa – culpando você, indiretamente, pelo contratempo?
Qualquer mulher pode ser encantadora num fim de semana de outono no Rio de Janeiro em que não haja uma brisa fora de lugar, mas como ela reage quando a companhia aérea perde as malas e vocês ficam com a roupa do corpo em Buenos Aires, num frio de 11 graus? Eu gostaria de saber essas coisas antes de me apaixonar.
Se o futuro pudesse ser desenhado numa planilha Excel, o melhor a fazer por si mesmo seria conquistar a analista de sistemas mais atraente da empresa e fazer dela a mulher da sua vida, mas nós sabemos que as coisas não são tão simples. Num mundo dominado pelo acaso, é importante ter ao seu lado alguém capaz de lidar com os imprevistos e as frustrações, porque eles vão se repetir o tempo inteiro. Planejar não é suficiente para ser feliz.
Quando o inesperado se intromete e atrapalha os nossos planos, então testamos o nosso temperamento e o de quem nos acompanha – além de uma coisinha de enorme importância chamada compatibilidade.
Sexta-feira passada eu tentei ir à praia. Reservei pousada, abasteci o carro e caí na estrada com a mulher, no horário em que o trânsito arrefece em São Paulo. Tudo planejado. Quatro horas depois, estava no pé da Serra do Mar metido no maior congestionamento da minha vida, com a chuva caindo torrencialmente, água subindo e o rádio contando histórias de morte e quedas de barreira. Depois de momentos de quase pânico, decidimos sair da estrada e procurar refúgio em Cubatão, uma das cidades menos turísticas do mundo ocidental.
Rodamos pelas ruas semi-alagadas e desertas, batendo à porta dos poucos hotéis, todos muito simples e totalmente tomados pelos refugiados da estrada. Ao final, fomos acolhidos no Lopes, que fica em frente à delegacia da cidade. De início não havia vagas, mas permitiram gentilmente que passássemos a noite no sofá da recepção, protegidos da chuva, das enchentes e dos ladrões que agem nos congestionamentos. Nas circunstâncias, estava ótimo. Duas horas depois, surgiu algo ainda melhor – um sujeito que alugara a suíte do Lopes para uma farra na madrugada não apareceu, e nós herdamos as acomodações. Com sauna, hidromassagem, TV a cabo e meio ar condicionado. Um luxo.
Ali passamos um longo fim de semana. Houve passeios a pé, compras no comércio alagado da cidade, pizza de brócolis com catupiry e uma sessão de cinema no complexo do Parque Anilina. Vimos o novo filme do Bruce Willis, dublado. Eu gostei, minha mulher disse que não iria comentar. Voltamos a São Paulo às 6 da manhã de domingo, quando a estrada reabriu. Nós havíamos sobrevivido, e o casamento também.
Eu consigo pensar em meia dúzia de mulheres com quem essa mesma situação teria virado um pesadelo. Posso ver uma delas reclamando e me recriminando até que eu perdesse a cabeça e fosse parar algemado na delegacia em frente ao hotel, depois de um acesso de loucura. Sou capaz de enxergar uma outra, sentada à beira da cama, empurrando para trás os cabelões e dizendo para a amiga no celular: “Cubatão, você acredita? Cubatão... Não, o carro dele não passa na enchente. Lembra que ele acha os jipões ridículos? Pois é”. Essa conversa não aconteceria dessa forma porque não houve sinal da TIM em Cubatão no fim de semana, mas a cena é totalmente plausível.
Não estou aqui fazendo críticas a certos tipos de pessoas. Acho, na verdade, que a culpa pelo clima detestável que se cria durante as crises não é de cada uma das partes, mas da interação ruim entre elas, a tal da compatibilidade. Diante do mesmo perrengue, mas em outra companhia, a pessoa funcionaria bem. É uma questão de quantidade de afeto e de respeito, claro, mas é também uma questão de afinidade. Se os modos do outro o irritam normalmente, isso não vai melhorar sob a pressão de uma crise. Quando a crise acontece, portanto, é um bom momento para observar seus sentimentos: você tem vontade de proteger o outro, fica feliz por ele estar ali, ou gostaria, do fundo do coração, que ele e o seu jeito professoral desaparecessem e você pudesse chamar um amigo querido? É importante saber.
Da minha parte, fico feliz por ter passado pelo teste de Cubatão. Ela reforçou minha convicção de que a vida, embora tenha de ser planejada no dia a dia, é, essencialmente, algo sobre o qual eu não tenho controle. Só posso me assegurar, precariamente, que quando o acaso tomar as rédeas eu tenha ao meu lado alguém capaz de rir comigo, de me dar conforto e de oferecer aquilo que homens e mulheres têm oferecido uns aos outros por milhares de anos – uma pequena chama de afeto capaz de iluminar os nossos corações cheios de medo e de aflição.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
Tem gente que acredita em destino. Eu acredito que é o acaso quem rege a nossa existência de forma quase absoluta.
Penso no encontro acidental dos nossos pais, no desejo que poderia não ter surgido entre eles, no espermatozóide que chegou à frente de milhões de outros na corrida mais importante das nossas vidas. Quanto disso foi planejado? Nada, assim como costumam ser acidentais os nossos próprios encontros amorosos, a concepção dos nossos filhos e as circunstâncias imprevistas que nos levam a fazer amigos importantes, escolher carreira e definir a cidade onde iremos morar.
O imprevisto invade a nossa vida enquanto no debruçamos cheios de planos sobre o calendário do ano que vem.
Acho o acaso tão importante que defendo que ele deveria ser incorporado aos nossos critérios de eleição afetiva. Não adianta observar os candidatos a parceiros apenas em situações controladas, como se o amor fosse um experimento de laboratório. Se o sujeito a convidou para jantar, teve três dias para arranjar as coisas e aparece (cheiroso e bem vestido) com uma rosa vermelha e reservas para o bistrô mais concorrido da cidade, ponto para ele por Organização & Método – mas isso não deveria encerrar o período de observação.
Para saber quem realmente é o cara, melhor seria estar com ele na noite em que o pneu do carro furasse na Marginal. Ele respira fundo, sorri para você e desce para resolver o assunto ou, tudo ao contrário, se põe a dizer palavrões em voz baixa e reclamar que não deveria ter saído de casa – culpando você, indiretamente, pelo contratempo?
Qualquer mulher pode ser encantadora num fim de semana de outono no Rio de Janeiro em que não haja uma brisa fora de lugar, mas como ela reage quando a companhia aérea perde as malas e vocês ficam com a roupa do corpo em Buenos Aires, num frio de 11 graus? Eu gostaria de saber essas coisas antes de me apaixonar.
Se o futuro pudesse ser desenhado numa planilha Excel, o melhor a fazer por si mesmo seria conquistar a analista de sistemas mais atraente da empresa e fazer dela a mulher da sua vida, mas nós sabemos que as coisas não são tão simples. Num mundo dominado pelo acaso, é importante ter ao seu lado alguém capaz de lidar com os imprevistos e as frustrações, porque eles vão se repetir o tempo inteiro. Planejar não é suficiente para ser feliz.
Quando o inesperado se intromete e atrapalha os nossos planos, então testamos o nosso temperamento e o de quem nos acompanha – além de uma coisinha de enorme importância chamada compatibilidade.
Sexta-feira passada eu tentei ir à praia. Reservei pousada, abasteci o carro e caí na estrada com a mulher, no horário em que o trânsito arrefece em São Paulo. Tudo planejado. Quatro horas depois, estava no pé da Serra do Mar metido no maior congestionamento da minha vida, com a chuva caindo torrencialmente, água subindo e o rádio contando histórias de morte e quedas de barreira. Depois de momentos de quase pânico, decidimos sair da estrada e procurar refúgio em Cubatão, uma das cidades menos turísticas do mundo ocidental.
Rodamos pelas ruas semi-alagadas e desertas, batendo à porta dos poucos hotéis, todos muito simples e totalmente tomados pelos refugiados da estrada. Ao final, fomos acolhidos no Lopes, que fica em frente à delegacia da cidade. De início não havia vagas, mas permitiram gentilmente que passássemos a noite no sofá da recepção, protegidos da chuva, das enchentes e dos ladrões que agem nos congestionamentos. Nas circunstâncias, estava ótimo. Duas horas depois, surgiu algo ainda melhor – um sujeito que alugara a suíte do Lopes para uma farra na madrugada não apareceu, e nós herdamos as acomodações. Com sauna, hidromassagem, TV a cabo e meio ar condicionado. Um luxo.
Ali passamos um longo fim de semana. Houve passeios a pé, compras no comércio alagado da cidade, pizza de brócolis com catupiry e uma sessão de cinema no complexo do Parque Anilina. Vimos o novo filme do Bruce Willis, dublado. Eu gostei, minha mulher disse que não iria comentar. Voltamos a São Paulo às 6 da manhã de domingo, quando a estrada reabriu. Nós havíamos sobrevivido, e o casamento também.
Eu consigo pensar em meia dúzia de mulheres com quem essa mesma situação teria virado um pesadelo. Posso ver uma delas reclamando e me recriminando até que eu perdesse a cabeça e fosse parar algemado na delegacia em frente ao hotel, depois de um acesso de loucura. Sou capaz de enxergar uma outra, sentada à beira da cama, empurrando para trás os cabelões e dizendo para a amiga no celular: “Cubatão, você acredita? Cubatão... Não, o carro dele não passa na enchente. Lembra que ele acha os jipões ridículos? Pois é”. Essa conversa não aconteceria dessa forma porque não houve sinal da TIM em Cubatão no fim de semana, mas a cena é totalmente plausível.
Não estou aqui fazendo críticas a certos tipos de pessoas. Acho, na verdade, que a culpa pelo clima detestável que se cria durante as crises não é de cada uma das partes, mas da interação ruim entre elas, a tal da compatibilidade. Diante do mesmo perrengue, mas em outra companhia, a pessoa funcionaria bem. É uma questão de quantidade de afeto e de respeito, claro, mas é também uma questão de afinidade. Se os modos do outro o irritam normalmente, isso não vai melhorar sob a pressão de uma crise. Quando a crise acontece, portanto, é um bom momento para observar seus sentimentos: você tem vontade de proteger o outro, fica feliz por ele estar ali, ou gostaria, do fundo do coração, que ele e o seu jeito professoral desaparecessem e você pudesse chamar um amigo querido? É importante saber.
Da minha parte, fico feliz por ter passado pelo teste de Cubatão. Ela reforçou minha convicção de que a vida, embora tenha de ser planejada no dia a dia, é, essencialmente, algo sobre o qual eu não tenho controle. Só posso me assegurar, precariamente, que quando o acaso tomar as rédeas eu tenha ao meu lado alguém capaz de rir comigo, de me dar conforto e de oferecer aquilo que homens e mulheres têm oferecido uns aos outros por milhares de anos – uma pequena chama de afeto capaz de iluminar os nossos corações cheios de medo e de aflição.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
terça-feira, 26 de fevereiro de 2013
segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013
Presente
Tem gente que entra de graça na vida, e se torna especial.
"Bruno,
"Bruno,
Você chegou como quem não quer nada,
E logo de graça, surgiu aí uma amizade danada
Como imaginar que um lugarejo, como Funilândia, com um show pouco convencionak,
Seria palco, de uma amizade tão sensacional?
São Paulo? Ah, São Paulo ficou ali,
E entre uma ponte aérea e outra, você sempre dá um jeito de passa por aqui.
Dias marcados no calendário, opa! Semana que vem o Bruno tá aqui!
Temos que marcar algo pra sair
Atrasos de meia ou uma hora eram normais.
O ponto de encontro? Sempra a casa da Nat, e isso não muda jamais.
Risos, bebedeiras, encontros casuais, onde estivermos a alegrai é garantida,
E foda-se, se somos vistos como anormais.
As farras são muitas,
Na maioria das vezes, regadas a vinho,
E como esquecer o show do Gustavinho?
Alguns contratempos, aconteceram.
Você, perdido no meio da multidão, liga avisando,
Que aguarda debaixo do latão.
Em menos de um minuto, lá estavam Chris e Juninho,
Também de lata na mão
E não parou por aí. Lembra daquela gatinha?
Passou mal e no posto médico, todos fomos parar,
Menos você, que na barraquinha,dizia estar.
Mal sabia,
Que uma pessoa muito furiosa, te esperava para te atacar com uma garrafa,
Adivinha quem era? A Rafa
Poderia até ser uma ilusão de ótica,
Mas a pobre da Thammy, inocente, ainda levou fama de até Paquita Erótica.
Outros programas, vieram logo em seguida,
Como o pic-nic, na serra, onde tivemos o prazer de conhecer o Cacá.
Corre daqui, corred pra lá, vem pra cá Cacáaaaa
Tomou iogurte, pulou no lago e ainda ganhou um afago.
O programa foi ótimo!
Natureza, comida boa e boas companhias, inclusive a presença ilustre da Ana.
Só faltou mesmo algumas músicas do Luan Santana.
Nada nos preocupava,
Nem mesmo o que poderia acontecer com a camada de ozônio
Não fosse o Cacá, que parecia estar com o demônio.
O show de Thaeme e Thiago, teve muito bom!
Não fosse aquela banda que abriu o show, tocando forró.
Tomo mundo suado, fedendo e cansado. Ai que dó!
Enquanto todas as pessoas aguardavam o show,
Estávamos lá, fazendo zona.
A prova disso, é o video que você gravou, onde a Nat parecia estar lokona
Ahãm, a gente é mesmo fã! Olha o seu passado, olha o seu histórico.
No mais, só temos a agradecer, pela sua companhia,
mas vale lembrar,
que quando você nasceu, a gente já corria!
Feliz Aniversário!
Com carinho,
Christian, Thammy , Junio e Natália."
quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
Sensitiva
E quando a massagista da empresa fala que, durante a massagem, deu pra sentir que eu sou
- bonzinho
- bastante afetivi
- bastante carinhoso
- com bastante energia boa
O que pensar?
Ta dando de cima? Ta tão na cara?? Ela diz pra todos???
#duvidas
- bonzinho
- bastante afetivi
- bastante carinhoso
- com bastante energia boa
O que pensar?
Ta dando de cima? Ta tão na cara?? Ela diz pra todos???
#duvidas
Que fronteira atravessar
De Mirian Leitão, de O Globo
Até o governo sabe que não se acaba com a miséria com alguns reais a mais e a travessia de uma barreira arbitrária como os R$ 70 de renda familiar per capita. Mas o passo que foi dado ontem é mais um dentro de uma trajetória que começou há algum tempo e que significa dar o mínimo aos mais pobres. Cada governo fez uma parte. A de Dilma foi focar nos extremamente pobres.
O debate em torno do Bolsa Família tem alguns mitos. Um deles é a ideia de que os pobres seriam incentivados a ter mais filhos para receber mais. Não há qualquer comprovação estatística disso. Outra, de que as pessoas param de trabalhar para viver do benefício. Ele é tão pequeno que não sustenta ninguém, e o Ministério de Desenvolvimento Social tem estudos e dados que comprovam o oposto.
O importante é pensar o que virá depois do programa e ter como meta construir esse futuro. Que o Brasil tinha que criar uma rede de proteção social mínima para os milhões de miseráveis e pobres do país, não há dúvida. Por isso, a ideia surgiu de forma embrionária logo após a estabilização, floresceu no governo passado, e agora passou a ter metas ousadas, como a erradicação da extrema pobreza.
O passo dado ontem garante apenas que todas as famílias que estão no programa atravessem essa fronteira dos R$ 70 per capita por família a cada mês. Isso correspondia quando foi estabelecido a US$ 1,22 por dia. O dólar se encareceu, mas aqui se trabalha com o dólar paridade do poder de compra, que não oscila da mesma forma que as flutuações da moeda.
É uma medida arbitrária. Essas famílias continuarão vivendo com um valor muito pequeno. Além disso, continuarão sendo procurados brasileiros muito pobres que estão em áreas muito remotas ou nem sabem como entrar no programa. O governo acha esse remanescente é pequeno.
De tudo o que ouvi nesses dias que conversei sobre esse assunto com as autoridades o mais interessante foi que está sendo feito um cruzamento de dados entre o cadastro único e os dados do Ministério da Educação.
O objetivo é localizar as escolas onde a maioria das crianças está no programa Bolsa Família e essas escolas terão prioridade na implantação do programa de escola em tempo integral. Faz sentido e abre-se a chance de que através da educação de qualidade essas crianças não estarão, quando se tornarem adultas, dependentes de programas similares.
Outro ponto que incomoda muita gente é o custo do programa, que estaria subindo muito. De fato: em 2010, o programa custava um pouco mais de R$ 15 bilhões; em 2013, está em R$ 23 bi, sem esse acréscimo. São 13 milhões de famílias e 50 milhões de pessoas beneficiárias com esse valor. Com o acréscimo de ontem - que melhora a vida de 2,5 milhões de pessoas dentro desses 50 milhões - o governo vai gastar R$ 750 milhões. É muito? Apenas um dos empréstimos desastrados do BNDES para ajudar empresas familiares custou isso: o do LBR.
Não é que o erro do banco justifique aumentar o gasto indefinidamente. Mas o custo total do Bolsa Família é 2% do Orçamento do governo. A questão não é apenas o custo por ano, é a existência de uma efetiva porta de saída. O governo diz que tem porta de saída, que cada família fica no programa por dois anos, e que entre as várias exigências está a de manter a criança ou adolescente na escola.
O que o governo tem que construir agora é a estratégia de tirar as pessoas do programa por melhoria estrutural em suas vidas. Isso vai definir se o programa é mais um assistencialismo ou um projeto para mudar o país. O que o Brasil tem que se perguntar é que fronteira quer atravessar.
Miriam Leitão é jornalista
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=486932&ch=n
Até o governo sabe que não se acaba com a miséria com alguns reais a mais e a travessia de uma barreira arbitrária como os R$ 70 de renda familiar per capita. Mas o passo que foi dado ontem é mais um dentro de uma trajetória que começou há algum tempo e que significa dar o mínimo aos mais pobres. Cada governo fez uma parte. A de Dilma foi focar nos extremamente pobres.
O debate em torno do Bolsa Família tem alguns mitos. Um deles é a ideia de que os pobres seriam incentivados a ter mais filhos para receber mais. Não há qualquer comprovação estatística disso. Outra, de que as pessoas param de trabalhar para viver do benefício. Ele é tão pequeno que não sustenta ninguém, e o Ministério de Desenvolvimento Social tem estudos e dados que comprovam o oposto.
O importante é pensar o que virá depois do programa e ter como meta construir esse futuro. Que o Brasil tinha que criar uma rede de proteção social mínima para os milhões de miseráveis e pobres do país, não há dúvida. Por isso, a ideia surgiu de forma embrionária logo após a estabilização, floresceu no governo passado, e agora passou a ter metas ousadas, como a erradicação da extrema pobreza.
O passo dado ontem garante apenas que todas as famílias que estão no programa atravessem essa fronteira dos R$ 70 per capita por família a cada mês. Isso correspondia quando foi estabelecido a US$ 1,22 por dia. O dólar se encareceu, mas aqui se trabalha com o dólar paridade do poder de compra, que não oscila da mesma forma que as flutuações da moeda.
É uma medida arbitrária. Essas famílias continuarão vivendo com um valor muito pequeno. Além disso, continuarão sendo procurados brasileiros muito pobres que estão em áreas muito remotas ou nem sabem como entrar no programa. O governo acha esse remanescente é pequeno.
De tudo o que ouvi nesses dias que conversei sobre esse assunto com as autoridades o mais interessante foi que está sendo feito um cruzamento de dados entre o cadastro único e os dados do Ministério da Educação.
O objetivo é localizar as escolas onde a maioria das crianças está no programa Bolsa Família e essas escolas terão prioridade na implantação do programa de escola em tempo integral. Faz sentido e abre-se a chance de que através da educação de qualidade essas crianças não estarão, quando se tornarem adultas, dependentes de programas similares.
Outro ponto que incomoda muita gente é o custo do programa, que estaria subindo muito. De fato: em 2010, o programa custava um pouco mais de R$ 15 bilhões; em 2013, está em R$ 23 bi, sem esse acréscimo. São 13 milhões de famílias e 50 milhões de pessoas beneficiárias com esse valor. Com o acréscimo de ontem - que melhora a vida de 2,5 milhões de pessoas dentro desses 50 milhões - o governo vai gastar R$ 750 milhões. É muito? Apenas um dos empréstimos desastrados do BNDES para ajudar empresas familiares custou isso: o do LBR.
Não é que o erro do banco justifique aumentar o gasto indefinidamente. Mas o custo total do Bolsa Família é 2% do Orçamento do governo. A questão não é apenas o custo por ano, é a existência de uma efetiva porta de saída. O governo diz que tem porta de saída, que cada família fica no programa por dois anos, e que entre as várias exigências está a de manter a criança ou adolescente na escola.
O que o governo tem que construir agora é a estratégia de tirar as pessoas do programa por melhoria estrutural em suas vidas. Isso vai definir se o programa é mais um assistencialismo ou um projeto para mudar o país. O que o Brasil tem que se perguntar é que fronteira quer atravessar.
Miriam Leitão é jornalista
http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=486932&ch=n
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
A missionária nua
De Ivan Martins, da Época
Eu a conheci na faculdade. Baixinha, sorridente, era muito sensual sem ser bonita. Gostava de mim, mas também gostava de outro sujeito, mais velho, e provavelmente de mais alguns, de quem eu nunca soube. Era generosa. Aguerrida. Uma vez, conversando sobre sexo, me disse que, num mundo sem preconceitos, seria prostituta. Não apenas pelo prazer de transar, que era enorme nela, mas pela possibilidade de ajudar. “Tem tanto homem triste por aí”, ela me disse. “Gente feia, doente, mas que é bonita por dentro. Essas pessoas precisam de carinho.” Ela achava que seu corpo poderia ser usado para reduzir as dores do mundo.
Ontem, vendo As sessões – o filme em que Helen Hunt interpreta a terapeuta que ajuda um homem paralisado a perder a virgindade – eu acho que entendi, 30 anos depois, o que a minha amiga queria dizer. E que tipo de pessoa era ela.
A terapeuta do filme, inspirada numa mulher de verdade, ajuda as pessoas com dificuldade sexuais a descobrir o prazer. Conversa com elas, toca e se deixa tocar, transa. Trabalha em conjunto com uma psicóloga, discutindo as necessidades e dificuldades do paciente. Uma dessas profissionais, que ainda hoje atua na Califórnia, deu entrevistas recentes à imprensa brasileira e disse já ter atendido mais de 900 pessoas, homens em sua maioria. Não deve ser gente particularmente bonita. Muitas nem serão agradáveis. Mas a terapeuta se despe e se deita com elas do mesmo jeito. É um trabalho, mas também uma missão.
Há um pouco da minha amiga nessa terapeuta do sexo, mas talvez haja um pouco dela em cada mulher.
As mulheres fazem sexo porque gostam, mas fazem também porque nós, homens, precisamos disso desesperadamente. Fazem por carinho e às vezes por pena. Fazem para ver – eu já ouvi isso – os nossos olhos brilharem de satisfação. Elas nos dão de presente seus corpos macios e nós, muitas vezes, abrimos o pacote com pressa, famintos, sem sequer perceber que há um bilhete com dedicatória. Ao contrário do paralítico do filme, que entende o tamanho da graça que recebe, nós não choramos felizes e comovidos. Mas talvez devêssemos. Assim como na profissional descrita pelo filme, há um quê de santa (e de puta, naturalmente), em cada mulher que nos recebe entre as suas pernas - com as nossas dores e os nossos medos, com as nossas vaidades e injustificadas aspirações.
Por essas razões, e por outras que não entendo inteiramente, o filme me deixou terrivelmente comovido.
Talvez porque eu ainda sinta, como um garotinho impúbere, que as mulheres que se deixam despir, tocar e penetrar realizam um ato de profunda e impagável generosidade para com os homens. Talvez porque eu me perceba, como o paralítico do filme, como todos os homens que eu conheço, assustadoramente dependente da atenção, do corpo e do afeto femininos. Talvez, ainda, porque, assim como personagem do filme, e como todos, homens e mulheres, eu seja capaz de antever, no momento mesmo em que o prazer explode, a iminência da perda e a profundidade da separação que se insinuam. O sexo que acabou nunca é o bastante, nunca é suficiente, nunca é exatamente o que buscávamos. Queremos amar e ser amados. Queremos tudo.
Minha amiga, aos 20 e poucos anos, intuía isso tudo. Por isso sonhava em colocar o seu corpo a serviço das almas e dos corpos doentes. Se vivesse em outro país, talvez isso virasse uma carreira. Aqui, é provável que essa vocação tenha simplesmente adormecido, como tantas coisas que a gente sufoca na juventude para nos tornarmos adultos produtivos. Mas, onde quer que esteja, tenho certeza que se minha amiga vir o filme reconhecerá, naquela mulher que goza com o corpo sofrido de um bom homem, a possibilidade de sentimentos que estão muito além do hedonismo e do moralismo. Tomara que ela veja o filme – e que o papa Bento XVI veja também. Nunca é tarde para se perceber certas coisas.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-martins/noticia/2013/02/missionaria-nua.html
Eu a conheci na faculdade. Baixinha, sorridente, era muito sensual sem ser bonita. Gostava de mim, mas também gostava de outro sujeito, mais velho, e provavelmente de mais alguns, de quem eu nunca soube. Era generosa. Aguerrida. Uma vez, conversando sobre sexo, me disse que, num mundo sem preconceitos, seria prostituta. Não apenas pelo prazer de transar, que era enorme nela, mas pela possibilidade de ajudar. “Tem tanto homem triste por aí”, ela me disse. “Gente feia, doente, mas que é bonita por dentro. Essas pessoas precisam de carinho.” Ela achava que seu corpo poderia ser usado para reduzir as dores do mundo.
Ontem, vendo As sessões – o filme em que Helen Hunt interpreta a terapeuta que ajuda um homem paralisado a perder a virgindade – eu acho que entendi, 30 anos depois, o que a minha amiga queria dizer. E que tipo de pessoa era ela.
A terapeuta do filme, inspirada numa mulher de verdade, ajuda as pessoas com dificuldade sexuais a descobrir o prazer. Conversa com elas, toca e se deixa tocar, transa. Trabalha em conjunto com uma psicóloga, discutindo as necessidades e dificuldades do paciente. Uma dessas profissionais, que ainda hoje atua na Califórnia, deu entrevistas recentes à imprensa brasileira e disse já ter atendido mais de 900 pessoas, homens em sua maioria. Não deve ser gente particularmente bonita. Muitas nem serão agradáveis. Mas a terapeuta se despe e se deita com elas do mesmo jeito. É um trabalho, mas também uma missão.
Há um pouco da minha amiga nessa terapeuta do sexo, mas talvez haja um pouco dela em cada mulher.
As mulheres fazem sexo porque gostam, mas fazem também porque nós, homens, precisamos disso desesperadamente. Fazem por carinho e às vezes por pena. Fazem para ver – eu já ouvi isso – os nossos olhos brilharem de satisfação. Elas nos dão de presente seus corpos macios e nós, muitas vezes, abrimos o pacote com pressa, famintos, sem sequer perceber que há um bilhete com dedicatória. Ao contrário do paralítico do filme, que entende o tamanho da graça que recebe, nós não choramos felizes e comovidos. Mas talvez devêssemos. Assim como na profissional descrita pelo filme, há um quê de santa (e de puta, naturalmente), em cada mulher que nos recebe entre as suas pernas - com as nossas dores e os nossos medos, com as nossas vaidades e injustificadas aspirações.
Por essas razões, e por outras que não entendo inteiramente, o filme me deixou terrivelmente comovido.
Talvez porque eu ainda sinta, como um garotinho impúbere, que as mulheres que se deixam despir, tocar e penetrar realizam um ato de profunda e impagável generosidade para com os homens. Talvez porque eu me perceba, como o paralítico do filme, como todos os homens que eu conheço, assustadoramente dependente da atenção, do corpo e do afeto femininos. Talvez, ainda, porque, assim como personagem do filme, e como todos, homens e mulheres, eu seja capaz de antever, no momento mesmo em que o prazer explode, a iminência da perda e a profundidade da separação que se insinuam. O sexo que acabou nunca é o bastante, nunca é suficiente, nunca é exatamente o que buscávamos. Queremos amar e ser amados. Queremos tudo.
Minha amiga, aos 20 e poucos anos, intuía isso tudo. Por isso sonhava em colocar o seu corpo a serviço das almas e dos corpos doentes. Se vivesse em outro país, talvez isso virasse uma carreira. Aqui, é provável que essa vocação tenha simplesmente adormecido, como tantas coisas que a gente sufoca na juventude para nos tornarmos adultos produtivos. Mas, onde quer que esteja, tenho certeza que se minha amiga vir o filme reconhecerá, naquela mulher que goza com o corpo sofrido de um bom homem, a possibilidade de sentimentos que estão muito além do hedonismo e do moralismo. Tomara que ela veja o filme – e que o papa Bento XVI veja também. Nunca é tarde para se perceber certas coisas.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-martins/noticia/2013/02/missionaria-nua.html
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
A Copa do Mundo será um outro carnaval
O Carnaval fracassou. Um conto ou livro de ficção poderia começar com essa frase. Afinal, o Carnaval nunca fracassa. A maioria de nós provavelmente nunca pensou nisso: nunca houve um Carnaval que tivesse fracassado e provavelmente jamais haverá. Aliás, as duas palavras soam incompatíveis. Seria necessária uma breve reflexão acerca das condições nas quais o Carnaval fracassaria.
O Carnaval é um evento nacional. Ainda que a mídia dê uma enorme ênfase aos Carnavais do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco, ele acontece em todos os Estados brasileiros e em todas as cidades. O fracasso do Carnaval, para que fosse noticiado dessa maneira, teria que ser um fenômeno nacional. Igualmente importante é que o Carnaval é um evento muito mais social do que estatal. É verdadeiro que as prefeituras patrocinam inúmeros desfiles, em todas as cidades do Brasil. É igualmente correto afirmar que os governos estaduais são peças importantes no financiamento de vários eventos carnavalescos. Ambos, governos estaduais e prefeituras, estão atendendo a uma demanda social de grande relevância. Não apoiar o Carnaval é algo que vai contra o governante. Se não o fizer, sofrerá desgaste junto a seus eleitores
O caráter social do Carnaval fica evidente em todos os desfiles que ocorrem: o Bola Preta e o Galo da Madrugada no sábado, as escolas de samba do Rio de Janeiro, os trios elétricos da Bahia, os blocos de frevo de Pernambuco, os inúmeros blocos de sujos e de piranhas que saem em centenas ou milhares de cidades brasileiras, tudo isso só é possível porque milhões de pessoas se mobilizam para a festa. Essas pessoas economizam dinheiro durante o ano para comprar ou confeccionar suas fantasias, pagar a viagem de Carnaval, comprar o abadá. Outros dedicam seu tempo para ensaiar com os demais músicos da banda de que participam, ou para memorizar o samba de sua e de outras escolas. O Carnaval só fracassará quando essa enorme ação coletiva deixar de existir.
Outra característica que impede que o Carnaval fracasse é que ele é carnavalizado. Isso mesmo, o Carnaval é carnavalizado. Muito dificilmente algo carnavalizado fracassa. Carnavalização é a celebração do riso e do cômico, é a subversão da ordem estabelecida por meio da sátira da realidade, por meio da realização do que não se faz durante a maior parte do tempo. A carnavalização é a realização do aspecto festivo da vida. Carnavalizar é relacionar extravagância e simplicidade, erudito e popular, exótico e banal, é misturar classes sociais, etnias e idades, é mesclar estilos, é quebrar tabus e liberar energia, instintos e desejos que em geral são disciplinados pelo oficialismo que rege o mundo a maior parte do tempo.
Não há a menor dúvida de que nossa Copa do Mundo será um evento nacional, social e carnavalizado e, assim sendo, não tem como fracassar.
Toda Copa do Mundo em qualquer país que seja, já é um evento nacional. No Brasil, serão 12 sedes que contemplarão todas as regiões do país. Haverá jogos em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Natal, Fortaleza, Brasília, Manaus e Cuiabá. Os brasileiros de todas as regiões terão a chance de estar próximos de uma das sedes, alguns irão aos estádios, muitos terão a chance de acompanhar os jogos em áreas públicas perto dos estádios, especialmente preparadas com telões, bares, restaurantes e toda a estrutura necessária para atender aos apaixonados por futebol carnavalizado.
Mais do que nacional, a Copa do Mundo, no país do futebol, será um evento social. As pessoas se mobilizarão para acompanhar os jogos, vão economizar para pagar suas viagens rumo às cidades-sede, para ver várias seleções em suas concentrações, obter autógrafos de estrelas do futebol. Não haverá indiferença, não apenas a respeito de nossa seleção, mas acerca de todas as delegações que desembarcarão no Brasil para disputar o torneio.
O motivo mais importante que impedirá o fracasso de nossa Copa do Mundo é que ela será carnavalizada. Vale repetir, a Copa é o maior evento do mundo do futebol que ocorrerá no país do Carnaval e do futebol. Ora, isso não pode ser desconsiderado. Quem ignora essa combinação não sabe o que faz o Brasil, não compreende nossas especificidades.
A primeira inversão da ordem - carnavalização - de uma Copa do Mundo é parar de trabalhar para assistir aos jogos de nossa seleção. Isso acontece em qualquer Copa do Mundo, mas tenderá a ser mais acentuado em 2014. Vamos parar de trabalhar para festejar, para nos reunirmos com os amigos em bares, em residências, em locais privados e públicos, com a prosaica finalidade de assistir a um jogo de futebol. As ruas ficarão desertas. As rodoviárias, aeroportos, locais públicos utilizados pelas pessoas para ir e vir em dias de trabalho ficarão à míngua de gente. As aglomerações ocorrerão apenas na frente de TVs e telões. Não parece que os americanos ou os alemães pararam de trabalhar para ver suas seleções jogarem em 1994 e em 2006.
Uma segunda carnavalização da Copa do Mundo é a forma como tomamos nossas ruas. Em períodos normais, é ilegal pintar meios-fios ou decorar as ruas com bandeirinhas, mas isso é permitido durante a Copa do Mundo. As ruas da maioria das cidades se tornarão palco de uma competição pública para se ver qual será a mais bem enfeitada. Jovens de todas as classes sociais se mobilizarão para arrecadar dinheiro para comprar tinta, tecidos e plásticos verde e amarelo, e vários artefatos decorativos. As prefeituras não vão multar ninguém por pintar e decorar as ruas. Além disso, como americanos no feriado de sua independência, muitos de nós iremos pendurar uma bandeira do Brasil na janela ou na porta de casa, e compraremos fogos de artifício para utilizá-los nos gols que imaginamos que a seleção fará.
Quem conhece e entende o Brasil sabe que a carnavalização do evento é inevitável. Até mesmo o pôster oficial da Copa, lançado na semana passada pela Fifa, está dentro do espírito carnavalesco. Assim como no Carnaval, a Copa do Mundo será um momento de um estado de espírito diferente. A vida normal será suspensa, será colocada dentro de parêntesis, que durarão desde pouco antes do início do evento até quando nossa seleção ainda estiver na disputa. É óbvio que a expectativa é que cheguemos à final. Tomara que não encontremos a Argentina de Messi pelo caminho.
O sr. Jérôme Valcke insiste em dar broncas no Brasil porque, como um bom suíço, ele não faz a menor ideia do que seja a carnavalização. Este artigo é carnavalizado, ele une o nosso Carnaval ao nosso esporte nacional utilizando como elo a incidência de cirurgias plásticas no Brasil. Trata-se de uma linguagem alegórica com a finalidade de mostrar nossas especificidades. Linguagem esta que é carnavalesca e, portanto, só permitida em um sóbrio jornal de negócios como o Valor em uma sexta-feira que antecede o Carnaval. Acaba de ser divulgada a pesquisa mundial sobre cirurgias plásticas estéticas. As brasileiras, comparadas com mulheres dos Estados Unidos, México, Itália, França, Alemanha e Espanha, preferem as cirurgias de aumento das nádegas e redução dos seios. Naqueles países, comparando-os com o Brasil, as mulheres preferem cirurgias de aumento dos seios.
Até mesmo nos procedimentos médicos estéticos nossa especificidade é revelada. A preferência das brasileiras está relacionada com o nosso jogo de cintura futebolístico, com o drible, com a pedalada, com o samba no pé, tem a ver com o Carnaval e com o futebol. Na França, Delacroix pintou a Liberdade guiando o povo na figura alegórica de uma mulher do povo, robusta, com os seios de fora e pisando em cadáveres com os pés descalços. Dificilmente um quadro desse tipo teria no Brasil o sucesso de que desfruta na França.
Aqueles que insistem em não compreender o Brasil e suas especificidades carnavalescas, futebolísticas e estéticas ficarão surpresos com nossa Copa do Mundo. Eles se comportam como o Narciso às avessas de Nelson Rodrigues, aquele que sofre do complexo de vira-latas e vive cuspindo em sua própria imagem. Insistem em afirmar que nossa Copa será um fracasso. A inauguração dos primeiros estádios já ajudou a diminuir sua desenvoltura crítica. Os ataques que até pouco tempo eram contra tudo e contra todos agora se restringem aos aeroportos e à recém-batizada "mobilidade urbana". Já deram o braço a torcer à eficiência desconcertante dos nordestinos do Ceará, que foram os primeiros a entregar um estádio da Copa pronto. Todos ficarão prontos a tempo e provavelmente não ocorrerão problemas de transporte e deslocamento que venham a resultar na frase inicial deste artigo: a Copa do Mundo fracassou.
Dedico este artigo a Roberto DaMatta.
Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: Menos Imposto. Mais Consumo". E-mail: alberto.almeida@institutoanalise.com www.twitter.com/albertocalmeida
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Liberdade, liberdade
De Ivan Martins, da Época Online
Como se diz por aí, o Brasil é um país muito louco. No carnaval, louquíssimo. No Rio de Janeiro, uma delícia.
Nos últimos três dias, andando pelas ruas lindas e malcheirosas da cidade, eu vi de tudo - do travesti dando show no vagão do metrô à alegria simples das meninas que saem do bloco para dar um mergulho no Posto de Ipanema. Mas é preciso apreciar, entender, ou, pelo menos, estar aberto à perplexidade.
Acho que a palavra-chave nestes dias é liberdade.
O travesti - esta perfeita alegoria de tudo que vai por aí – sofre os diabos durante o ano, mas, no carnaval a rua é dele. Ontem de noite, segunda-feira, um deles estava entretendo a galera no vagão do metrô que ia de Ipanema ao Catete. Desfilava, provocava, desafiava os gringos em inglês – “Do you Love me?” – e abusava da galhofa sentando no colo de marmanjos e velhinhos. Era o momento dele, com intensa cumplicidade da platéia. Fiquei pensando se haveria outro lugar no mundo, ou outras circunstâncias, em que aquele ser humano cheio de peculiaridades pudesse ser tão ele mesmo, e de uma forma tão extravagante.
Mas aí tem o outro lado. No domingo, no bloco Exalta Rei – aquele que canta música do Roberto Carlos – eu vi uma cena revoltante. Dois rapazes estavam se beijando no meio da rua, na confusão do bloco, como tantos casais hetero, quando um cara pegou o celular e foi filmar bem de pertinho, da forma mais invasiva, comentando em voz alta com os amigos dele “o amor é lindo”. Uma puta sacanagen. Os rapazes que estavam se agarrando fingiram não ter visto a provocação, e é fácil entender por quê. Mandar um cara desses para o inferno, como seria o caso, pode ser o início de uma briga e talvez de uma surra. Qualquer um pensa duas vezes.
A liberdade, portanto, é relativa. O travesti debochado tem lugar na festa, como um bufão. O casal gay tem de ser mais cauteloso: um beijo no lugar errado pode atrair atenção e confusão. Uma lástima.
Há outras divisões dentro da festa. As pessoas pobres, em sua maior parte negras, trabalham vendendo e carregando mercadorias enquanto os que podem (brancos, em boa parte) festejam. Na próspera Zona Sul do Rio de Janeiro, nestes dias, se vêem famílias inteiras comendo e dormindo na rua, enquanto descansam do trabalho braçal. Faz lembrar tristemente as cenas do Rio nos séculos 18 e 19, que ficou célebre no mundo inteiro como uma espécie de centro mundial da escravidão.
Outra divisão descarada é por gosto. Há as tribos de arrumadinhos e as tribos de debochados. Há os que se fantasiam para ficar bonitos e o quem usam a festa para fazer galhofa – e, quem sabe, pegar alguém. Eu nunca canso de me espantar com a quantidade de homens vestidos de mulher nas ruas. Ninguém parece mais feliz do que eles. Este ano, havia uma profusão de Mulheres Maravilhas nas ruas do Rio. Homens e mulheres. Mas a fantasia mais comum no Rio é a de fortão. Só pra homens. O sujeito malha o ano inteiro e sai no carnaval expondo o peitoral descoberto. Não veste nenhuma fantasia, que é para não reduzir o impacto. Acho um exagero de narcisismo, mas é carnaval...
O equivalente dos fortões são as gostosas. Elas saem fantasiadas apenas com a pele queimada de sol, as pernas perfeitas e o bocão com batom vermelho. A fantasia nem importa, desde que mínima. Minha mulher acha meio cafona. Eu olho, olho, e não consigo concordar com ela.
Fiquei comovido, no bloco do Boitatá, com uma banda que parecia ter vindo de Copenhague, na Dinamarca. Nas escadarias do Palácio Tiradentes, eles tocavam músicas brasileiras de carnaval com paixão e afinação, percussão e sopro na maior afinação. Em frente aos músicos, meia dúzia de garotas igualmente dinamarquesas executavam graciosas coreografias de samba. Uma lindas. Fiquei pensando na felicidade desse pessoal. Eles vieram de tão longe, ensaiaram tanto, e foram recebidos com a maior festa, e muitos aplausos, no carnaval do Rio. Sensacional.
Um registro: ao contrário das previsões, o ministro Joaquim Barbosa não foi um sucesso de carnaval. Em quatro dias no Rio, eu vi apenas uma máscara – repito, uma – do presidente do Supremo. Vai ver que bombou em Brasília.
Se a gente pensa em milhões de pessoas nas ruas, por tantos dias, é quase espantoso que não aconteçam mais coisas violentas ou trágicas. Ocorrem situações terríveis, como as mortes no desfile de Santos, mas, quando se pensa no tamanho da festa... Poderia ser muito pior.
Acho que existe, nesta cidade, neste país, um know-how de celebração e convívio pacífico. Outras culturas produzem um cotidiano muito melhor organizado, pacífico e seguro, mas eles não têm o poder de festejar como nós fazemos. Pense nos japoneses, nos alemães, nos ingleses. No mundo globalizado alegria é poder. No mundo obcecado por trabalho e produtividade, por regras e regulamentos, o potencial para cair na farra sem culpa e sem desastres é um tremendo diferencial.
Há quem não goste, claro. Há quem deteste o carnaval e as multidões, e que não tenha nenhum prazer ouvindo as músicas ou vendo as pessoas fantasiadas pela rua. Por esses, eu só lamento. É como viver na Suíça e odiar a neve ou nascer na Itália e detestar a passionalidade das pessoas. O sujeito assim está condenado a viver resmungando, reclamando que o Brasil deveria ser como Tal e Qual país, onde tudo funciona... Bom, um dia o Brasil vai funcionar melhor também, e ainda teremos a alegria que os outros não têm.
Agora, por favor me dêem licença que é terça-feira, meio dia, e tem muito bloquinho saindo. Viva o Carnaval!
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-martins/noticia/2013/02/liberdade-liberdade.html
Como se diz por aí, o Brasil é um país muito louco. No carnaval, louquíssimo. No Rio de Janeiro, uma delícia.
Nos últimos três dias, andando pelas ruas lindas e malcheirosas da cidade, eu vi de tudo - do travesti dando show no vagão do metrô à alegria simples das meninas que saem do bloco para dar um mergulho no Posto de Ipanema. Mas é preciso apreciar, entender, ou, pelo menos, estar aberto à perplexidade.
Acho que a palavra-chave nestes dias é liberdade.
O travesti - esta perfeita alegoria de tudo que vai por aí – sofre os diabos durante o ano, mas, no carnaval a rua é dele. Ontem de noite, segunda-feira, um deles estava entretendo a galera no vagão do metrô que ia de Ipanema ao Catete. Desfilava, provocava, desafiava os gringos em inglês – “Do you Love me?” – e abusava da galhofa sentando no colo de marmanjos e velhinhos. Era o momento dele, com intensa cumplicidade da platéia. Fiquei pensando se haveria outro lugar no mundo, ou outras circunstâncias, em que aquele ser humano cheio de peculiaridades pudesse ser tão ele mesmo, e de uma forma tão extravagante.
Mas aí tem o outro lado. No domingo, no bloco Exalta Rei – aquele que canta música do Roberto Carlos – eu vi uma cena revoltante. Dois rapazes estavam se beijando no meio da rua, na confusão do bloco, como tantos casais hetero, quando um cara pegou o celular e foi filmar bem de pertinho, da forma mais invasiva, comentando em voz alta com os amigos dele “o amor é lindo”. Uma puta sacanagen. Os rapazes que estavam se agarrando fingiram não ter visto a provocação, e é fácil entender por quê. Mandar um cara desses para o inferno, como seria o caso, pode ser o início de uma briga e talvez de uma surra. Qualquer um pensa duas vezes.
A liberdade, portanto, é relativa. O travesti debochado tem lugar na festa, como um bufão. O casal gay tem de ser mais cauteloso: um beijo no lugar errado pode atrair atenção e confusão. Uma lástima.
Há outras divisões dentro da festa. As pessoas pobres, em sua maior parte negras, trabalham vendendo e carregando mercadorias enquanto os que podem (brancos, em boa parte) festejam. Na próspera Zona Sul do Rio de Janeiro, nestes dias, se vêem famílias inteiras comendo e dormindo na rua, enquanto descansam do trabalho braçal. Faz lembrar tristemente as cenas do Rio nos séculos 18 e 19, que ficou célebre no mundo inteiro como uma espécie de centro mundial da escravidão.
Outra divisão descarada é por gosto. Há as tribos de arrumadinhos e as tribos de debochados. Há os que se fantasiam para ficar bonitos e o quem usam a festa para fazer galhofa – e, quem sabe, pegar alguém. Eu nunca canso de me espantar com a quantidade de homens vestidos de mulher nas ruas. Ninguém parece mais feliz do que eles. Este ano, havia uma profusão de Mulheres Maravilhas nas ruas do Rio. Homens e mulheres. Mas a fantasia mais comum no Rio é a de fortão. Só pra homens. O sujeito malha o ano inteiro e sai no carnaval expondo o peitoral descoberto. Não veste nenhuma fantasia, que é para não reduzir o impacto. Acho um exagero de narcisismo, mas é carnaval...
O equivalente dos fortões são as gostosas. Elas saem fantasiadas apenas com a pele queimada de sol, as pernas perfeitas e o bocão com batom vermelho. A fantasia nem importa, desde que mínima. Minha mulher acha meio cafona. Eu olho, olho, e não consigo concordar com ela.
Fiquei comovido, no bloco do Boitatá, com uma banda que parecia ter vindo de Copenhague, na Dinamarca. Nas escadarias do Palácio Tiradentes, eles tocavam músicas brasileiras de carnaval com paixão e afinação, percussão e sopro na maior afinação. Em frente aos músicos, meia dúzia de garotas igualmente dinamarquesas executavam graciosas coreografias de samba. Uma lindas. Fiquei pensando na felicidade desse pessoal. Eles vieram de tão longe, ensaiaram tanto, e foram recebidos com a maior festa, e muitos aplausos, no carnaval do Rio. Sensacional.
Um registro: ao contrário das previsões, o ministro Joaquim Barbosa não foi um sucesso de carnaval. Em quatro dias no Rio, eu vi apenas uma máscara – repito, uma – do presidente do Supremo. Vai ver que bombou em Brasília.
Se a gente pensa em milhões de pessoas nas ruas, por tantos dias, é quase espantoso que não aconteçam mais coisas violentas ou trágicas. Ocorrem situações terríveis, como as mortes no desfile de Santos, mas, quando se pensa no tamanho da festa... Poderia ser muito pior.
Acho que existe, nesta cidade, neste país, um know-how de celebração e convívio pacífico. Outras culturas produzem um cotidiano muito melhor organizado, pacífico e seguro, mas eles não têm o poder de festejar como nós fazemos. Pense nos japoneses, nos alemães, nos ingleses. No mundo globalizado alegria é poder. No mundo obcecado por trabalho e produtividade, por regras e regulamentos, o potencial para cair na farra sem culpa e sem desastres é um tremendo diferencial.
Há quem não goste, claro. Há quem deteste o carnaval e as multidões, e que não tenha nenhum prazer ouvindo as músicas ou vendo as pessoas fantasiadas pela rua. Por esses, eu só lamento. É como viver na Suíça e odiar a neve ou nascer na Itália e detestar a passionalidade das pessoas. O sujeito assim está condenado a viver resmungando, reclamando que o Brasil deveria ser como Tal e Qual país, onde tudo funciona... Bom, um dia o Brasil vai funcionar melhor também, e ainda teremos a alegria que os outros não têm.
Agora, por favor me dêem licença que é terça-feira, meio dia, e tem muito bloquinho saindo. Viva o Carnaval!
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-martins/noticia/2013/02/liberdade-liberdade.html
terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
A música da Copa
Lúcio Ribeiro, da Folha on line
Agora que a Copa no Brasil "está aí", que se tem discutido ferozmente nesta Folha o legado que ela vai ou não deixar para os brasileiros... Agora que os estádios novos vão sendo inaugurados e pôster e mascote do Mundial já são conhecidos... Como será que está a "Música da Copa"?
Minhas ligações com as coberturas de eventos musicais me fazem ficar muito curioso com a parte cantada do grande evento de 2014. Tanto o hino oficial quanto as canções que vão surgir como "oficiosas", adotadas pré ou durante o torneio.
Sobre a oficial, sabe-se que a Sony, uma das patrocinadores da Copa, será a responsável pela música-tema, que vai ser tocada na abertura, nas propagandas, nos estádios, nas Fan Fests (áreas de lazer com telões para aqueles que não conseguiram ingresso).
Seu andamento é mantido em segredo, mas até no fim do ano passado cogitava-se que a Sony Music ia encomendá-la a alguém de seu elenco de artistas. Nomes como Roberto Carlos, Skank, Arlindo Cruz e Zezé Di Camargo & Luciano fazem parte do "cast" da Sony brasileira. Ela será em português.
Música na Copa é um assunto sério. Pode marcar o evento, ajudar na "corrente pra frente", construir uma liga forte entre seleção e torcedores a ponto de motivar um e outro.
A canção oficial da última Copa, na África do Sul, ficou a cargo da colombiana Shakira. Sua "Waka Waka" correu o mundo, por mais que tenha tido uma reação "do contra" no país-sede, porque queriam um local fazendo a música. Quando lançada, "Waka Waka" foi primeiro lugar nas paradas de Alemanha, México, Espanha, Itália, França e Argentina.
Músicas não oficiais também marcaram Mundiais. Um rock da banda White Stripes, que nasceu em arquibancadas da Champions League e foi adotada por torcedores da Roma, virou o "Hino da Vitória" da Itália na Copa de 2006, na Alemanha. Até hoje cantam seu "Po popo popopoooopo" em estádios. A torcida do Inter gaúcho ecoa a música no Brasil.
Na Copa de 82, o então lateral Junior gravou o pagode "Povo Feliz", também conhecido como "Voa, Canarinho, Voa". No embalo da grande campanha da seleção de Telê na Espanha, a música vendeu aqui no país, em 20 dias, cerca de 600 mil cópias. Se o Brasil tivesse sido campeão, ela seria cantada até hoje. Mas o pagode acabou com fama de "pé frio" e ninguém suportava ouvi-lo depois do "evento Paolo Rossi".
Ao famoso grupo inglês New Order foi encomendado um tema para a campanha do English Team na Copa da Itália, em 1990. A canção se chamava "World in Motion" e até hoje é a única do New Order, banda de muitos sucessos musicais, a entrar no número 1 da parada inglesa. Tem gente que diz que a boa campanha britânica naquele Mundial (foi eliminada na semi nos pênaltis) se deve à comoção povo e time unidos pela música.
Capricha na música, Brasil.
Lúcio Ribeiro é jornalista de cultura pop, editor do blog Popload, no UOL, colaborador da "Ilustrada", mas acha que no fim gosta mais de futebol do que de música. Na versão impressa de "Esporte", escreve às terças sobre "qualquer assunto bom"
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/lucioribeiro/1226068-a-musica-da-copa.shtml
Agora que a Copa no Brasil "está aí", que se tem discutido ferozmente nesta Folha o legado que ela vai ou não deixar para os brasileiros... Agora que os estádios novos vão sendo inaugurados e pôster e mascote do Mundial já são conhecidos... Como será que está a "Música da Copa"?
Minhas ligações com as coberturas de eventos musicais me fazem ficar muito curioso com a parte cantada do grande evento de 2014. Tanto o hino oficial quanto as canções que vão surgir como "oficiosas", adotadas pré ou durante o torneio.
Sobre a oficial, sabe-se que a Sony, uma das patrocinadores da Copa, será a responsável pela música-tema, que vai ser tocada na abertura, nas propagandas, nos estádios, nas Fan Fests (áreas de lazer com telões para aqueles que não conseguiram ingresso).
Seu andamento é mantido em segredo, mas até no fim do ano passado cogitava-se que a Sony Music ia encomendá-la a alguém de seu elenco de artistas. Nomes como Roberto Carlos, Skank, Arlindo Cruz e Zezé Di Camargo & Luciano fazem parte do "cast" da Sony brasileira. Ela será em português.
Música na Copa é um assunto sério. Pode marcar o evento, ajudar na "corrente pra frente", construir uma liga forte entre seleção e torcedores a ponto de motivar um e outro.
A canção oficial da última Copa, na África do Sul, ficou a cargo da colombiana Shakira. Sua "Waka Waka" correu o mundo, por mais que tenha tido uma reação "do contra" no país-sede, porque queriam um local fazendo a música. Quando lançada, "Waka Waka" foi primeiro lugar nas paradas de Alemanha, México, Espanha, Itália, França e Argentina.
Músicas não oficiais também marcaram Mundiais. Um rock da banda White Stripes, que nasceu em arquibancadas da Champions League e foi adotada por torcedores da Roma, virou o "Hino da Vitória" da Itália na Copa de 2006, na Alemanha. Até hoje cantam seu "Po popo popopoooopo" em estádios. A torcida do Inter gaúcho ecoa a música no Brasil.
Na Copa de 82, o então lateral Junior gravou o pagode "Povo Feliz", também conhecido como "Voa, Canarinho, Voa". No embalo da grande campanha da seleção de Telê na Espanha, a música vendeu aqui no país, em 20 dias, cerca de 600 mil cópias. Se o Brasil tivesse sido campeão, ela seria cantada até hoje. Mas o pagode acabou com fama de "pé frio" e ninguém suportava ouvi-lo depois do "evento Paolo Rossi".
Ao famoso grupo inglês New Order foi encomendado um tema para a campanha do English Team na Copa da Itália, em 1990. A canção se chamava "World in Motion" e até hoje é a única do New Order, banda de muitos sucessos musicais, a entrar no número 1 da parada inglesa. Tem gente que diz que a boa campanha britânica naquele Mundial (foi eliminada na semi nos pênaltis) se deve à comoção povo e time unidos pela música.
Capricha na música, Brasil.
Lúcio Ribeiro é jornalista de cultura pop, editor do blog Popload, no UOL, colaborador da "Ilustrada", mas acha que no fim gosta mais de futebol do que de música. Na versão impressa de "Esporte", escreve às terças sobre "qualquer assunto bom"
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/lucioribeiro/1226068-a-musica-da-copa.shtml
Livro 02
Carcereiros, Dráuzio Varella
Depois de 23 anos frequentando cadeias, nao faz sentido especular como eu seria sem ter vivido essa experiencia; o homem é o conjunto dos acontecimentos armazenados em sua memoria e daquela que renegou ao esquecimento"
Depois de 23 anos frequentando cadeias, nao faz sentido especular como eu seria sem ter vivido essa experiencia; o homem é o conjunto dos acontecimentos armazenados em sua memoria e daquela que renegou ao esquecimento"
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013
O mindinho torto
Eliane Brun, da Época.
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/02/o-mindinho-torto.html
Trinta e dois mil anos atrás, um homem entrou numa caverna e pintou os animais que o assombravam do lado de fora. Simbolizou a vida, parindo nesse gesto a humanidade inteira. Talvez este homem tivesse um dedo torto. Mais especificamente, um mindinho torto. Entre as tantas maravilhas do documentário de Werner Herzog sobre a caverna de Chauvet, no sul da França, talvez a mais pungente seja a imperfeição que levou os pesquisadores a reconhecer o mesmo homem em lugares diferentes. Entre os tantos que criaram cavalos, mamutes, rinocerontes, ursos e leões de extraordinária beleza, este deixou sua mão impressa nas paredes. Singularizou-se, tornando-se todos e um. E hoje, sentados numa poltrona de cinema, com óculos 3D enfiados na cara, nós falamos com ele. E colocamos nossa mão sobre a dele.
Em A Caverna dos Sonhos Esquecidos, o cineasta alemão nos dá a única chance de testemunhar o que ele chamou de “nascimento da alma humana”: a primeira obra de arte da história, composta por centenas de pinturas feitas entre 32 mil e 30 mil anos atrás numa caverna. Há que se ter uma solenidade com tamanha quantidade de tempo. É preciso imaginar esses homens que deixaram do lado de fora um mundo frio e seco, dominado por grandes predadores, onde existia ainda um outro hominídeo, o neandertal, para fazer de nós o que somos, uma espécie capaz de transcender. Como disse um dos cientistas que investiga a caverna, chamar nossa espécie de “homo sapiens”, aquele que sabe, é inadequado. “Nós sabemos muito pouco. O mais correto, talvez, fosse chamar nossa espécie de ‘homo espiritualis’”.
A possibilidade de viver esse encontro com nosso espelho ancestral deveria ser garantida a todos, em qualquer lugar. Não entendo como não há excursões para assistir a esse filme, filas dando a volta no quarteirão. O documentário (trailer aqui) já passou no Brasil em mostras e festivais, em São Paulo está sendo exibido no CineSesc. Herzog fez um filme em 3D, para que pudéssemos ter uma experiência tão completa quanto possível ao penetrar na caverna que nunca foi – e provavelmente nunca será – aberta ao público, já que nossa mera respiração pode alterar o delicado equilíbrio do ambiente interno e comprometer o que foi conservado por 300 séculos. Penetramos na caverna dos sonhos esquecidos pelo cinema e, ao fazê-lo, estamos numa caverna dentro de outra caverna.
É bonita a forma como as cavernas se revelam para aqueles que se dispõem a escutá-las. Homens e mulheres andam pelo mundo apalpando as rochas, tentando sentir algum vento escapando de fendas invisíveis aos olhos. Foi assim com esta, descoberta em 1994 – ontem, portanto –, que leva o nome de Chauvet, um de seus descobridores. Em algum momento, milhares de anos atrás, sua entrada foi obstruída por um deslizamento de terra. E por isso ela se manteve intacta, como uma cápsula do tempo que só agora se mostrou. Cavalos, leões, mamutes, rinocerontes, hienas parecem ter sido pintados há pouco – e a qualidade artística é impressionante. Os bichos têm patas a mais possivelmente para dar a ideia de movimento, quem os pintou recriou vida querendo que a vida vivesse. As perguntas se sobrepõem, e a maioria delas nunca será respondida. São sonhos – e os sonhos escapam.
A única figura humana encontrada é uma mulher nua, diante de um bisão. É impossível mesmo para os cientistas alcançar essa imagem, porque nas profundezas da caverna o caminho para chegar a ela tem chão inseguro. Os pesquisadores preferem não arriscar, temerosos de comprometer a integridade do lugar. Sem chão para pisar, Herzog e sua equipe espetam a câmera numa vara e conseguem alcançar um ângulo em que o bisão está quase sobre o sexo da mulher. Muito, muito depois, no século XX da era cristã, Picasso pintaria uma mulher e o minotauro. É quase irresistível divagar. A sexualidade da mulher, que por milhares de anos se manteve nas trevas daquela caverna, é iluminada em nossos dias apenas para se mostrar inalcançável, uma interrogação sobre chão movediço.
Ao penetrar na caverna em que o primeiro entre nós sonhou, nos descobrimos prostrados de amor diante do mistério do que somos. E é amor o que parece mover Herzog para dentro e para dentro, assim como cada um dos cientistas. Mas há ainda uma beleza mais sutil que percorre o filme. É talvez uma segunda camada, e ela nos fala do mindinho torto. Herzog foi especialmente sensível ao conectar os humanos de ontem e de hoje, os artistas de 32 mil anos atrás com os cientistas que agora os investigam e interpretam. Nós com nosso outro paleolítico.
Em determinado momento, um descobridor de cavernas conta que, enquanto a maioria de seus colegas tenta adivinhá-las por um vento, um sopro, ele o faz pelo olfato. Sai cheirando rochas para que a diversidade ou a súbita alteração dos cheiros revele que há algo oculto dentro de montanhas supostamente maciças. Esta é a sua escolha, explica, porque é perfumista. Empolga-se um pouco mais e acaba anunciando que chegou a ser presidente da Associação Francesa de Perfumistas. Ao dizer isso, de imediato percebe que falou demais, que não faz nenhum sentido num filme com essa grandiosidade dizer algo assim – dizer de sua importante desimportância.
Fosse um cineasta menos atento à escuta, mais propenso a botar as pessoas a confirmar um discurso previamente determinado, e teria cortado o excesso na edição. Herzog escolhe manter, como escolhe manter em todos os depoimentos, porque, sim, faz todo o sentido esse esforço desajeitado, devastadoramente terno, por reconhecimento. Faz todo o sentido esse contar da vida, essa tentativa de singularidade que une todos nós. É o mindinho torto. É a beleza pungente do mindinho torto.
E assim vamos desvelando a marca humana pelas cavernas. Outro pesquisador decide contar sobre o contexto do homem pré-histórico enfiado numa pele de rena, como se fosse um deles. Não são jovens os cientistas, quase todos velhos homens que amam o que fazem, e aquele é um velho de olhos brilhantes, todo faceiro porque está paramentado como um homem do paleolítico, cujos vestígios dedicou a vida a investigar. Ele mostra para a câmera uma flauta esculpida em osso para explicar que o ouvido daqueles homens já escutava o mesmo que nós, e que naquele instrumento pré-histórico poderíamos tirar mesmo peças de séculos recentes. Ele então toca um pedaço do hino dos Estados Unidos. Em seguida, pelo menos foi o que me pareceu, fica sem jeito. Muito mais tarde, ao descobrir o filme de Herzog como uma outra cápsula do tempo, alguém poderá indagar: mas por que esta música e não outra? O que essa escolha nos diz?
Outro cientista tenta mostrar como nossos ancestrais matavam cavalos com uma lança incrivelmente perfurante e letal. Atira várias vezes, mas a sua é uma lança desajeitada, que não acertaria uma galinha no quintal. Segue tentando, até que Herzog diz o que todos pensamos: “Acho que os homens do paleolítico eram melhores do que você para matar cavalos com lanças”. Ele dá um sorriso encantador, meio encabulado, de criança surpreendida fazendo o que não deve. E a gente suspeita que, quando a câmera partir, ele vá seguir tentando e imaginando sabe-se lá o quê. Talvez que é um grande caçador das tundras geladas.
Em outro ponto, duas pesquisadoras, a mais velha e a mais jovem, estão postadas dentro da caverna para gravar seu depoimento. A mais velha, que deve ser a chefe, tem a prerrogativa. Ela nos conta então do homem do mindinho torto. Mas a mais jovem também está diante da câmera de Herzog, um dos grandes cineastas da atualidade, num documentário sobre uma das maiores descobertas arqueológicas, da qual ela também faz parte e com a qual colabora. Sem contar que sua família e seus amigos vão assistir, e o filme estará nos cinemas de Paris, do mundo inteiro. Como ela aparecerá nesse documentário – e na posteridade – muda como uma múmia?
A mais jovem então, toda circunspecta, com seus PhDs e pós-docs, repete uma frase que a outra tinha acabado de dizer, com o tom de quem faz uma revelação que vai alterar o curso dos acontecimentos. Sua intervenção nada acrescenta, no sentido do conteúdo científico, porque é uma repetição do que já foi dito pela outra. Pelo contrário, interrompe o raciocínio da mais velha. Mas tudo acrescenta, porque é exatamente isso. Ao falar sobre o homem que deixou sua mão de dedo torto estampada pela caverna, ela também precisou deixar a sua marca. A sua mãozinha. E não é feio, é bonito. É humano.
Quando percebe que falou demais, ao contar que tinha sido presidente da Associação Francesa de Perfumistas, o descobridor de cavernas bufa. Aquele jeito que já é um clichê na imagem rabugenta dos franceses, soprando o ar pela boca. É assim que se descobre as cavernas, por aquele sopro que escapa de um interior que se crê bem protegido. É assim que Herzog vai desvendando as profundezas tão humanas daqueles que investigam seus ancestrais de 32 mil anos, e esboçando um painel também da alma contemporânea, de quais são os sonhos daqueles que desejam ser lembrados.
Como disse um arqueólogo, o mais jovem entre todos os que aparecem no filme, um arqueólogo que antes foi artista de circo: “É preciso sair da caverna para compreender”. A câmera de Herzog é esse olhar de fora, o olhar do outro que nos enxerga e revela. Reconhece nosso mindinho torto. E nos ama também por causa dele.
Na caverna dos sonhos esquecidos, ursos que já não existem arranham uma parede com suas garras. Sobre essas marcas, alguns milhares de anos depois, um homem desenha um mamute. E 5 mil anos mais tarde, outro homem pinta outro mamute quase em cima. E hoje há também um homem, e este apenas olha – e se reconhece. Como em nossos interiores, quanto mais fundo, mais as bestas afiam suas unhas. E se as camadas de tempo nos levam mais e mais para a superfície, temos as imagens daquilo que pode ser exibido, as representações visíveis de nosso eu invisível.
Somos todos cavernas de sonhos esquecidos. Deixando escapar um sopro de vez em quando, na esperança de que alguém nos adivinhe. E nos ajude a lembrar de nossos desejos.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras)
http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/02/o-mindinho-torto.html
Trinta e dois mil anos atrás, um homem entrou numa caverna e pintou os animais que o assombravam do lado de fora. Simbolizou a vida, parindo nesse gesto a humanidade inteira. Talvez este homem tivesse um dedo torto. Mais especificamente, um mindinho torto. Entre as tantas maravilhas do documentário de Werner Herzog sobre a caverna de Chauvet, no sul da França, talvez a mais pungente seja a imperfeição que levou os pesquisadores a reconhecer o mesmo homem em lugares diferentes. Entre os tantos que criaram cavalos, mamutes, rinocerontes, ursos e leões de extraordinária beleza, este deixou sua mão impressa nas paredes. Singularizou-se, tornando-se todos e um. E hoje, sentados numa poltrona de cinema, com óculos 3D enfiados na cara, nós falamos com ele. E colocamos nossa mão sobre a dele.
Em A Caverna dos Sonhos Esquecidos, o cineasta alemão nos dá a única chance de testemunhar o que ele chamou de “nascimento da alma humana”: a primeira obra de arte da história, composta por centenas de pinturas feitas entre 32 mil e 30 mil anos atrás numa caverna. Há que se ter uma solenidade com tamanha quantidade de tempo. É preciso imaginar esses homens que deixaram do lado de fora um mundo frio e seco, dominado por grandes predadores, onde existia ainda um outro hominídeo, o neandertal, para fazer de nós o que somos, uma espécie capaz de transcender. Como disse um dos cientistas que investiga a caverna, chamar nossa espécie de “homo sapiens”, aquele que sabe, é inadequado. “Nós sabemos muito pouco. O mais correto, talvez, fosse chamar nossa espécie de ‘homo espiritualis’”.
A possibilidade de viver esse encontro com nosso espelho ancestral deveria ser garantida a todos, em qualquer lugar. Não entendo como não há excursões para assistir a esse filme, filas dando a volta no quarteirão. O documentário (trailer aqui) já passou no Brasil em mostras e festivais, em São Paulo está sendo exibido no CineSesc. Herzog fez um filme em 3D, para que pudéssemos ter uma experiência tão completa quanto possível ao penetrar na caverna que nunca foi – e provavelmente nunca será – aberta ao público, já que nossa mera respiração pode alterar o delicado equilíbrio do ambiente interno e comprometer o que foi conservado por 300 séculos. Penetramos na caverna dos sonhos esquecidos pelo cinema e, ao fazê-lo, estamos numa caverna dentro de outra caverna.
É bonita a forma como as cavernas se revelam para aqueles que se dispõem a escutá-las. Homens e mulheres andam pelo mundo apalpando as rochas, tentando sentir algum vento escapando de fendas invisíveis aos olhos. Foi assim com esta, descoberta em 1994 – ontem, portanto –, que leva o nome de Chauvet, um de seus descobridores. Em algum momento, milhares de anos atrás, sua entrada foi obstruída por um deslizamento de terra. E por isso ela se manteve intacta, como uma cápsula do tempo que só agora se mostrou. Cavalos, leões, mamutes, rinocerontes, hienas parecem ter sido pintados há pouco – e a qualidade artística é impressionante. Os bichos têm patas a mais possivelmente para dar a ideia de movimento, quem os pintou recriou vida querendo que a vida vivesse. As perguntas se sobrepõem, e a maioria delas nunca será respondida. São sonhos – e os sonhos escapam.
A única figura humana encontrada é uma mulher nua, diante de um bisão. É impossível mesmo para os cientistas alcançar essa imagem, porque nas profundezas da caverna o caminho para chegar a ela tem chão inseguro. Os pesquisadores preferem não arriscar, temerosos de comprometer a integridade do lugar. Sem chão para pisar, Herzog e sua equipe espetam a câmera numa vara e conseguem alcançar um ângulo em que o bisão está quase sobre o sexo da mulher. Muito, muito depois, no século XX da era cristã, Picasso pintaria uma mulher e o minotauro. É quase irresistível divagar. A sexualidade da mulher, que por milhares de anos se manteve nas trevas daquela caverna, é iluminada em nossos dias apenas para se mostrar inalcançável, uma interrogação sobre chão movediço.
Ao penetrar na caverna em que o primeiro entre nós sonhou, nos descobrimos prostrados de amor diante do mistério do que somos. E é amor o que parece mover Herzog para dentro e para dentro, assim como cada um dos cientistas. Mas há ainda uma beleza mais sutil que percorre o filme. É talvez uma segunda camada, e ela nos fala do mindinho torto. Herzog foi especialmente sensível ao conectar os humanos de ontem e de hoje, os artistas de 32 mil anos atrás com os cientistas que agora os investigam e interpretam. Nós com nosso outro paleolítico.
Em determinado momento, um descobridor de cavernas conta que, enquanto a maioria de seus colegas tenta adivinhá-las por um vento, um sopro, ele o faz pelo olfato. Sai cheirando rochas para que a diversidade ou a súbita alteração dos cheiros revele que há algo oculto dentro de montanhas supostamente maciças. Esta é a sua escolha, explica, porque é perfumista. Empolga-se um pouco mais e acaba anunciando que chegou a ser presidente da Associação Francesa de Perfumistas. Ao dizer isso, de imediato percebe que falou demais, que não faz nenhum sentido num filme com essa grandiosidade dizer algo assim – dizer de sua importante desimportância.
Fosse um cineasta menos atento à escuta, mais propenso a botar as pessoas a confirmar um discurso previamente determinado, e teria cortado o excesso na edição. Herzog escolhe manter, como escolhe manter em todos os depoimentos, porque, sim, faz todo o sentido esse esforço desajeitado, devastadoramente terno, por reconhecimento. Faz todo o sentido esse contar da vida, essa tentativa de singularidade que une todos nós. É o mindinho torto. É a beleza pungente do mindinho torto.
E assim vamos desvelando a marca humana pelas cavernas. Outro pesquisador decide contar sobre o contexto do homem pré-histórico enfiado numa pele de rena, como se fosse um deles. Não são jovens os cientistas, quase todos velhos homens que amam o que fazem, e aquele é um velho de olhos brilhantes, todo faceiro porque está paramentado como um homem do paleolítico, cujos vestígios dedicou a vida a investigar. Ele mostra para a câmera uma flauta esculpida em osso para explicar que o ouvido daqueles homens já escutava o mesmo que nós, e que naquele instrumento pré-histórico poderíamos tirar mesmo peças de séculos recentes. Ele então toca um pedaço do hino dos Estados Unidos. Em seguida, pelo menos foi o que me pareceu, fica sem jeito. Muito mais tarde, ao descobrir o filme de Herzog como uma outra cápsula do tempo, alguém poderá indagar: mas por que esta música e não outra? O que essa escolha nos diz?
Outro cientista tenta mostrar como nossos ancestrais matavam cavalos com uma lança incrivelmente perfurante e letal. Atira várias vezes, mas a sua é uma lança desajeitada, que não acertaria uma galinha no quintal. Segue tentando, até que Herzog diz o que todos pensamos: “Acho que os homens do paleolítico eram melhores do que você para matar cavalos com lanças”. Ele dá um sorriso encantador, meio encabulado, de criança surpreendida fazendo o que não deve. E a gente suspeita que, quando a câmera partir, ele vá seguir tentando e imaginando sabe-se lá o quê. Talvez que é um grande caçador das tundras geladas.
Em outro ponto, duas pesquisadoras, a mais velha e a mais jovem, estão postadas dentro da caverna para gravar seu depoimento. A mais velha, que deve ser a chefe, tem a prerrogativa. Ela nos conta então do homem do mindinho torto. Mas a mais jovem também está diante da câmera de Herzog, um dos grandes cineastas da atualidade, num documentário sobre uma das maiores descobertas arqueológicas, da qual ela também faz parte e com a qual colabora. Sem contar que sua família e seus amigos vão assistir, e o filme estará nos cinemas de Paris, do mundo inteiro. Como ela aparecerá nesse documentário – e na posteridade – muda como uma múmia?
A mais jovem então, toda circunspecta, com seus PhDs e pós-docs, repete uma frase que a outra tinha acabado de dizer, com o tom de quem faz uma revelação que vai alterar o curso dos acontecimentos. Sua intervenção nada acrescenta, no sentido do conteúdo científico, porque é uma repetição do que já foi dito pela outra. Pelo contrário, interrompe o raciocínio da mais velha. Mas tudo acrescenta, porque é exatamente isso. Ao falar sobre o homem que deixou sua mão de dedo torto estampada pela caverna, ela também precisou deixar a sua marca. A sua mãozinha. E não é feio, é bonito. É humano.
Quando percebe que falou demais, ao contar que tinha sido presidente da Associação Francesa de Perfumistas, o descobridor de cavernas bufa. Aquele jeito que já é um clichê na imagem rabugenta dos franceses, soprando o ar pela boca. É assim que se descobre as cavernas, por aquele sopro que escapa de um interior que se crê bem protegido. É assim que Herzog vai desvendando as profundezas tão humanas daqueles que investigam seus ancestrais de 32 mil anos, e esboçando um painel também da alma contemporânea, de quais são os sonhos daqueles que desejam ser lembrados.
Como disse um arqueólogo, o mais jovem entre todos os que aparecem no filme, um arqueólogo que antes foi artista de circo: “É preciso sair da caverna para compreender”. A câmera de Herzog é esse olhar de fora, o olhar do outro que nos enxerga e revela. Reconhece nosso mindinho torto. E nos ama também por causa dele.
Na caverna dos sonhos esquecidos, ursos que já não existem arranham uma parede com suas garras. Sobre essas marcas, alguns milhares de anos depois, um homem desenha um mamute. E 5 mil anos mais tarde, outro homem pinta outro mamute quase em cima. E hoje há também um homem, e este apenas olha – e se reconhece. Como em nossos interiores, quanto mais fundo, mais as bestas afiam suas unhas. E se as camadas de tempo nos levam mais e mais para a superfície, temos as imagens daquilo que pode ser exibido, as representações visíveis de nosso eu invisível.
Somos todos cavernas de sonhos esquecidos. Deixando escapar um sopro de vez em quando, na esperança de que alguém nos adivinhe. E nos ajude a lembrar de nossos desejos.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras)
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