segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Um embrulho de papel brilhante


Breve itinerário amoroso de uma filha que não sabe como cuidar dos pais

ELIANE BRUM
Enviar por e-mail
|
Imprimir
|
Comentários
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)
A espio chegando, com seus pés tortos por um milhão de problemas, uma bolsa pesada na mão e uma mala de rodinhas. É minha mãe e acabou de descer do ônibus com meu pai. Vejo que ela me procura com olhos ansiosos na rodoviária de Porto Alegre, já pronta pra reclamar que estou atrasada. Eu poderia me apressar. Em vez disso, estaciono minhas botas atrás de uma das colunas. Tento fixar esse momento. Naquele instante eu sei que aquela cena é irrepetível, e de súbito essa revelação me engolfa. Faz alguns anos, já, que a percepção da passagem do tempo se faz nítida em mim. Sinto-me como se estivesse no fundo de uma piscina, ouvindo à distância o burburinho surdo dos outros. Respiro e estou de novo na superfície. Guardo a cena inteira numa dobra do meu corpo, desprego-me da coluna e surjo sorridente diante deles.  
Estamos todos ali, na cidade em que já não vivo há muito, para uma consulta com o médico da capital. Naquele dia, eu apalpo essa nova geografia na qual ainda preciso descobrir se sou montanha, rio, um lago. Talvez apenas uma árvore não muito grande, não muito forte. Quando a hora de cuidar dos pais nos alcança, os filhos que se importam encontram-se não apenas em território desconhecido, mas acabam por encontrar um território desconhecido dentro de si.   
Quero protegê-los, mas não sei como. Devo chamar um táxi ou esperar pelo meu pai, como sempre foi? Devo tomar a iniciativa e fazer eu as perguntas para o médico ou devo permanecer como coadjuvante? Devo andar no lado externo da calçada ou devo respeitar o lugar do meu pai, que como todo homem de sua geração sempre se manteve como um escudo entre a rua e as mulheres, na intrincada arte do footing? Ele esclarece: “Vá para o meio, para conversar com a tua mãe”. Não vá para o meio porque sou eu que protejo vocês. Eu compreendo a enormidade dessa cena banal. Mas nada digo. Apenas deslizo para dentro. 
Mais tarde, depois da consulta, levo-os para jantar num shopping em frente ao centro médico. Vou de balcão em balcão da praça de alimentação em busca de algo que meu pai possa comer. Ele agora tem muitas alergias. “Você não pode só fazer um pão com queijo mozzarella?”, eu pergunto. Logo, estarei quase implorando. Mas parece que ninguém pode fazer pão com queijo. As franquias são todas formatadas, as atendentes me olham como se eu estivesse pedindo olhos de macaco com pão de urtiga australiana. Será que eu não compreendo que não é possível sair do padrão? Comer no shopping ganha contornos de um sonho persecutório. Sinto-me incapaz de levar comida para o meu pai.  
Naquele momento, não apenas confronto a fragilidade recém-descoberta deles, mas também a minha. Ao despedir-me de meus pais, temo que algo possa acontecer porque não estarei ali para protegê-los, mas internamente duvido que possa de fato protegê-los. Imagino catástrofes, há um torniquete ao redor do meu coração quando pego o avião de volta. Sei bem agora que posso no máximo cuidar deles, como eles cuidaram de mim – e, de um modo muito particular, ainda cuidam. Ninguém pode proteger ninguém, essa é só mais uma ilusão. E, mesmo quando acreditamos compreender a vida, somos empurrados para um novo vazio e restamos às tontas. 
Antes de eu pegar o avião, eles o ônibus, minha mãe me empurra um pacotinho em papel de presente brilhante. Eu sei o que é. Minha mãe sempre me dá um pijama. Não só para mim, para todos. É um carinho e um desejo, o de nos ver na cama, aquecidos, a salvo, como num tempo em que, todos sabemos, nunca existiu. O pijama já vem lavado, devidamente desinfetado de todos os germes da loja e das mãos que o cobiçaram antes dela. O pijama vem lavado dos males do mundo, minha mãe confiante no poder redentor dos produtos modernos de limpeza. Não posso nem quero imaginar uma vida sem pacotes de papel brilhante com um pijama cheirando a amaciante dentro.  
Na semana seguinte voltamos a nos encontrar, agora para a cirurgia do meu pai. Minha mãe de novo está com sua bolsa pesada, uma mala de rodinhas e seus pés claudicantes. É um mistério como ela consegue andar tão rápido e ir a todos os lugares com aqueles pés. Mas ela sempre está uma curva adiante de nós, em vários sentidos. Qualquer um levaria o básico ao preparar a mala para uma viagem de saúde. Pijama, roupas de baixo, talvez um roupão, escova de dentes, essas coisas. Minha mãe, eu tinha certeza, carregava também uma caixa de docinhos. Docinhos mesmo, estes de aniversário de criança. Glaceados, caramelizados, trufados, bombas de glicose concentrada.  
Minha mãe jamais viaja sem uma caixa de docinhos. Já carregou caixas de docinhos no colo por mais de mil quilômetros. Se há alguma criança nos arredores, os docinhos surgem no formato de bichos, carros, gurias de tranças. Por quê?, pergunto com a boca cheia de leite condensado. “Os doces de Ijuí são diferentes”, ela diz, com o tom das verdades absolutas. Minha mãe sempre demonstrou afeto com comida. Desisti de levar o feijão dela congelado, de Ijuí para São Paulo, quando o líquido viscoso, impregnado de linguiça caseira, escorreu pelo compartimento das bagagens de mão do avião e pingou a milímetros da cabeça do passageiro ao meu lado. Foi uma decisão difícil de comunicar a ela.  
A caixa de docinhos era ali uma garantia de que algo permanecia imutável numa vida cujo controle nos escapava. Algo doce. Era a segunda vez que nos preparávamos para a cirurgia. Na primeira, o plano de saúde avisara que não cobriria o “procedimento” na hora da internação, com o respeito habitual. Desta vez, a pressão de meu pai subia porque o esqueceram na emergência do hospital. De novo eu tentava protegê-lo. E de novo fracassava.  
No dia seguinte, minha mãe me sussurraria na sala de espera. Meu pai estava desacordado em algum lugar do bloco cirúrgico. E eu tentava não imaginar o corpo aberto do meu pai. Ela sussurra, então: “Nós nos despedimos, sabe. Ele disse que a vida comigo foi muito mais do que ele sonhou e que ele foi muito feliz”. Eu queria dizer que ainda seriam felizes, mas não encontrei voz. Eu sabia que eles temiam essa cirurgia com um medo novo. E que mesmo depois dela o medo talvez não fosse embora. Quase 60 anos de casamento, e o amor dos meus pais é escandalosamente vivo. Vivo a ponto de sobreviver a despedidas desse tipo. 
Algumas horas mais tarde, quando tudo já havia acabado, estremecemos ao ouvir o celular: “Ele está pedindo os óculos na UTI. Diz que precisa enxergar”. Minha mãe guardava naquela bolsa pesada dela os olhos e os dentes do meu pai. Será que é por isso que está tão pesada?, pensei. À noite, eu teria pesadelos com os dentes do meu pai na bolsa da minha mãe. Meu pai sempre pareceu usar os dentes com parcimônia, mas era apenas aparência. É verdade que ele mastiga cada bocado de comida quase tantas vezes e com tanta paciência quanto um macrobiótico, mas a vida, não. Na vida ele finca os dentes. E, desconfio eu, também em algumas partes da minha mãe, mas isso eu prefiro não investigar. 

Minha mãe devolveu primeiro os olhos do meu pai, depois os dentes. No dia seguinte ele reclamaria que ela levou tempo demais para devolver os dentes dele. E ainda depois descobriríamos que a chave do cadeado da mala dele havia se perdido, junto com todas as chaves que abrem portas na vida deles. “Eu não sei quem perdeu as chaves, se fui eu ou ele”, balbuciou minha mãe, subitamente sem saber para onde levar seus pés. “Era um molho enorme de chaves.” Eu sabia que eram muitas e sabia que seriam encontradas. Em algum momento, nós sempre precisamos voltar a encontrar as chaves. 
Dias mais tarde, meus pais estão deitados na cama do hotel. Devagar, meu pai começa a se recuperar. Ele está lendo uma biografia de Getúlio Vargas. Minha mãe lê 50 tons de cinza. Ela reclama que é tão mal escrito quanto uma daquelas novelas românticas de banca de revista, mas não cogita abandonar a leitura. Quando ela se distrai por um instante, meu pai rouba o livro dela para dar uma assuntada. Não sei se encontra o que procura, porque logo depois volta para Vargas. Eu sinto que poderia passar a vida lendo os dois.  
Sei que empreendi um caminho de volta para casa, mas essa viagem é apenas interna. Quando um filho parte, nunca há volta. Não deve mesmo haver volta. Há apenas esse tempo roubado, no qual eu posso abraçá-los e fingir que ainda sei o meu lugar. Ou que algum dia soube.  
Antes da despedida, minha mãe se aproxima com seus pés impossíveis. Me alcança um pacote embrulhado em papel brilhante. Eu sei o que é. Sei também que, por enquanto, estamos todos bem.
Eliane Brum escreve às segundas-feiras.

Nenhum comentário:

Postar um comentário