Lembra do que você sentia quando tudo começou?
Faça o teste: as coisas que você se lembra de uma paixão antiga são aquelas que aconteceram no começo. Primeiras conversas, primeiro sexo, primeira viagem, primeira vez na casa da família. Se você for mulher, talvez se lembre de sensações, mais que de eventos: a expectativa, as surpresas, o prazer de conquistar e ser conquistada. Por alguma razão, esses momentos inaugurais ficam gravados na memória como uma espécie de trauma feliz. Eles se tornam a nossa referência, uma régua existencial contra a qual comparamos o que vem depois: maior, igual, melhor, diferente, pelo-amor-de-Deus!
Para o nosso azar, a régua continua medindo depois que nos metemos numa relação estável. Acasalados, nós temos amor, cumplicidade, transamos de forma intensa e regular. Nada, rigorosamente, nos faz falta. Mas a memória, como um farol oceânico quebrado, segue mandando flashes periódicos sobre os velhos tempos – e nós, miseravelmente, somos obrigados a admitir que aquela intensidade nos faz falta.
Gostaríamos, se isso fosse possível, de estar lá e cá ao mesmo tempo. Ter a paz profunda e protetora de agora, com as emoções aceleradas de então. Ter o gozo profundo e a segurança da intimidade conquistada, mantendo a surpresa e o arrebatamento do sexo inicial. No mundo ideal, a mulher amada e familiar, cuja presença faz nosso coração bater tranquilo, nos chamaria, no meio da noite, com uma voz estranha – e se abriria, magicamente, a possibilidade de transar com uma desconhecida.
Como o mundo ideal e a magia não existem, somos forçados a lidar com a realidade. Nela, temos de escolher, todos os dias, entre aquelas emoções iniciais e as outras, muito mais serenas, que nem sequer parecem emoções. Pense nisso: a gente se acostuma de tal forma ao conforto de uma relação estável que ela parece despida de sentimentos. O carinho e o afeto de tão presentes na rotina se tornam invisíveis. A gente só enxerga brigas, frustrações, irritações comezinhas. Qual o valor daquele abraço no meio da noite, que parece reparar alguma coisa que estivera quebrada ao longo do dia? Qual a importância daquele olhar de despedida matinal, que parece conter, simultaneamente, tantas mensagens de reafirmação? Quando a gente perde essas coisas, quando briga e fica sozinho, a importância da rede invisível se revela de forma instantânea. A alma nos cai aos pés, como dizem os espanhóis. Daí a dor inexplicável de quem achava que nada tinha a perder...
Não é bom subestimar o poder de sedução das primeiras emoções. Para muitos, - sobretudo aqueles com grande capacidade de seduzir -, as sensações iniciais são uma espécie de vício. Como uma droga, mesmo. A pessoa precisa da trepidação para sentir-se viva. Tem necessidade do estado de exaltação amoroso para estar bem. O resto, o que vem depois, o momento em que o rio se espraia, manso, depois da corredeira – isso não tem graça. Então é preciso estar sempre correndo atrás da novidade, da primeira vez, da empolgação e da descoberta. É um jeito de viver – acreditando que a próxima relação, essa sim, trará a paz que se andou buscando a vida inteira.
No livro Como pensar mais sobre sexo, que eu li outro dia e adorei, o filósofo Alain de Botton diz que a gente rotineiramente deseja coisas demais, contraditórias entre si. Depois de tentar sem muito sucesso sugerir fórmulas para superar a fadiga emocional dos namoros e casamentos prolongados, ele acaba concluindo que, no fundo, todos nós temos de fazer escolhas difíceis. Ou bem se vive como um adolescente cheio de tesão enquanto der, ou bem se abre mão de um punhado de coisas e tenta se construir relações duradouras e família, enquanto der. Sim, porque a vida e a biologia não vão parar, esperando que a gente se decida. O tempo avança e atropela as nossas hesitações.
Da minha parte, eu tento fazer força para não tomar como um fato da vida aquilo que eu tenho todos os dias. Tento lembrar que aquela criatura ali ao lado poderia estar em outro lugar, com outra pessoa, em vez de estar aqui, me mimando com o seu carinho e a sua zelosa atenção. Pensar essas coisas dá alguma insegurança, mas ela é boa. Ela ajuda a lembrar da importância do que a gente tem. Obriga a agir com mais atenção, com mais paciência, com mais delicadeza até no trato com a parceira. Com sorte, esse estado de alerta ajuda a fazer coisas que surpreendam e encantem. Propicia gestos que alimentem a paixão. Não como no começo, não exatamente como no tempo em que o amor era novo, mas o suficiente para lembrar que ele existe. Aqui e agora, não apenas no passado.
(Ivan Martins escreve às quartas-feiras)
Nenhum comentário:
Postar um comentário